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Pediatria Simples

A Alma Perdida

Decidi recentemente lançar os olhos para esta outra promessa do Salmo 23... "Ele refrigera minha alma", "Renova minhas forças" (NVT), "Ele me deolve a paz de espírito" (BV), "Ele traz minha alma de volta" (PESHITA). No original são apenas duas palavras mas que estão tendo um impacto maravilhoso no meu coração.

'SHUB' é o mesmo usado na lei do ano do jubileu quando alguém não tinha nenhum recurso para resgatar sua dívida... 'Será devolvida no Jubileu, e ele então poderá voltar para a sua propriedade.' Que coisa maravilhosa saber que Ele devolve minha alma (mesmo que eu não tenha nada com o que pagar)... Descobri também que 'shub' é o termo que as mulheres de Belém usaram para se alegrar com Noemi por ocasião do nascimento do filho de Rute e Boaz: 'O menino dará a você nova vida...' 

Estou entendendo [ainda em processo] que não preciso que Deus me restaure o ministério nem o prestígio; preciso que Ele restaure meu fôlego original [comunhão plena com Ele, de deleite exclusivo na presença e comunhão com Ele]... Algo que os Efésios conheceram como primeiro amor. Talvez eu não tenha caído como os Efésios, mas basta um tropeção para me desligar e perder o contato com o fôlego divino.

'Já que Deus é o maior e todos os deuses, Ele não permitiria que nenhum mal existisse em sua obra, a menos que sua onipotência e bondade fossem tamanhas que promovessem o bem mesmo a partir do mal.' AGOSTINHO

Li um conto da ganhadora do Nobel de literatura Olga Tokarczuk chamado 'A Alma Perdida':

Era uma vez um homem que trabalhava com muita pressa e sem descanso, e que havia muito tempo já tinha deixado a própria alma em algum lugar distante. Sem a alma, a vida dele até que era boa - ele dormia, comia, trabalhava, dirigia um carro e ainda jogava tênis. Mas, às vezes, ele tinha a impressão de que tudo a sua volta ficara plano e sem graça, como se ele se movimentasse numa página quadriculada e vazia de um caderno de matemática, coberta por quadradinhos iguais e onipresentes.

Certa noite, durante uma de suas muitas viagens, o homem acordou no meio da madrugada em um quarto de hotel e sentiu que mal podia respirar. [...] Não sabia também como tinha ido parar ali, nem para que viera. E, infelizmente, esqueceu também o próprio nome. Foi uma sensação muito estranha, porque ele não fazia ideia de como se chamava. [...]

No dia seguinte, foi ver uma médica, mulher velha e sábia, e ela lhe disse as seguintes palavras:

- Se alguém pudesse nos olhar do alto, veria que o mundo está repleto de pessoas que andam apressadas, suadas e exaustas, e também veria suas almas, atrasadas e perdidas no caminho por não conseguirem acompanhar seus donos. Isso cria uma grande confusão. As almas perdem a cabeça e as pessoas deixam de ter coração. As almas sabem que ficaram sem seus donos, mas as pessoas muitas vezes nem sequer percebem que perderam a própria alma.

Isso acontece porque a velocidade com que as almas se movimentam é muito menor do que a dos corpos. [...] Escute, você precisa achar um lugar só para si, sentar-se e aguardar com paciência a sua alma. Ela deve estar, neste momento, no lugar onde você passou há dois, três anos. Portanto, a espera pode demorar um pouco. Mas, para o seu caso, não vejo outro remédio.

Foi o que fez esse homem [...] e todos os dias passou a se sentar numa cadeira para esperar. Não fazia mais nada. Demorou muitos dias, semanas, meses. O cabelo ficou muito comprido e sua barba chegou até a cintura.

Até que numa tarde, alguém bateu na porta. Na soleira apareceu a alma perdida - cansada, suja e arranhada.

- Finalmente! - disse ela, sem fôlego.

Desde então, eles viveram felizes para sempre, e João passou a prestar muita atenção para não fazer nada numa velocidade que sua alma não pudesse acompanhar. Ele ainda fez mais uma coisa: enterrou no quintal todos os seus relógios e suas malas de viagem. Dos relógios nasceram belas flores coloridas, parecidas com campânulas, e das malas brotaram grandes abóboras com as quais João se alimentou durante todos os invernos tranquilos que se seguiram.

Vocês nem imaginam como este pequeno conto caiu em mim! Me fez lembrar de um texto do Brennan Manning que li anos atrás: Deus ama o meu eu real. Não necessito ser outra pessoa. Durante 20 anos tentei ser a Madre Teresa. Tentei ser Francisco de Assis. Tinha que ser uma cópia de algum grande santo em vez do eu original que Deus quer que eu seja. O maior erro que posso fazer é dizer para Deus Senhor, se eu mudar, você me amará, não é? A resposta de Deus é sempre a mesma: Um momentinho, você entendeu tudo errado. Você não precisa mudar para que eu o ame; eu o amo para que você mude.

A outra palavra do v.3 do Salmo 23 é 'NEPHESH' cuja raiz no sentido mais primitivo (nafash) significa 'respiração' ou 'fôlego'. Meu pai era bancário, e sempre gostou de trabalhar com música na igreja. Dirigiu pequenos corais com muita dedicação. Me lembro de uma conversa que tivemos há um tempo em que ele me disse que estava ficando 'sem fôlego'... não conseguia mais alcançar algumas notas que antes alcançava e quando dava muita risada tinha crises de tosse... Nunca tinha experimentado esta sensação até me mudar para o estado de São Paulo (bem mais poluído) e ter minha primeira crise de asma. A sensação é terrível!

A pandemia da COVID19 me dá outra imagem tenebrosa do que é ficar 'sem fôlego'. Nossa respiração depende de um arcabouço músculo-esquelético que tem um tônus constante e um ritmo semi-autônomo. Detalhe: isto é só para 'inspirar'! O pulmão possui fibras elásticas que ao contraírem promovem a 'expiração'... esta combinação sinfônica de trabalho ativo (inspiração) e passivo (expiração) me lembram constantemente do meu papel de co-criador no drama da redenção... Mas não basta o indivíduo ter a anatomia respiratória íntegra... o ar inspirado precisa ter pelo menos 21% de oxigênio... nas grandes altitudes a pressão atmosférica baixa faz com que todo o sistema opere em sobrecarga...

Isto, por si só, não é respiração... A respiração de verdade não ocorre no pulmão. Ocorre em cada célula individualmente (quando o O2 é usado para realizar as funções celulares). Para chegar em cada célula nosso corpo é provido de um maravilhoso sistema de transporte: o sangue (vim para Campinas justamente para fazer residência em Onco-Hematologia pediátrica no Boldrini e sei a importância deste órgão maravilhoso que é o sangue!).

A lei judaica reconhece que 'a vida está no sangue'. Derramar o sangue é derramar a 'nephesh'. Na cruz Jesus derramou sua 'nephesh' para dar início à uma nova criação (nephesh em Gn 1.20). Que maravilhoso é saber que Deus trabalha para ventilar Seu 'fôlego', nephesh em cada 'célula' do seu corpo... Ele vê quando estou asfixiado (sem nephesh) e renova seu aporte de vida na minha direção.

DAVID ROPE me dá outra perspectiva desta ação: 

A espera é uma parte necessária do processo. Não existem atalhos para a maturidade. Nossas personalidades resistem às mudanças, por serem imperfeitas por natureza, por educação e por nossa própria tolerância. Fomos feridos pelos outros e nos ferimos a nós mesmos, mas podemos ter certeza que a nossa cura é contínua. Nós estamos em recuperação, gradualmente sendo libertos do mal. Deus está trabalhando neste momento para este fim distante. Estamos nos tornando hoje aquilo que inevitavelmente seremos.

Precisamos crer que os processos de Deus são adequados para lidar com o nosso pecado. A palavra chave é processo. É preciso estar tranqilos conosco mesmos no processo. Deus cura aos poucos. Crescemos lentamente, um pouco aqui e outro pouco ali. Ganho é ganho, por menor que seja.

[...] Seguir em frente é tudo que importa. Deus não procura a perfeição, apenas o progresso. Temos certeza que fracassamos, mas não somos vencidos pelo medo. Nada nos destruirá, se continuarmos nos levantando todas as vezes. É claro que estaremos sujos e esfarrapados quando chegarmos em casa [...] O que é fatal, porém, é perder as estribeiras e desistir (C. S. Lewis).

Seguindo a sugestão de Tokarczuk decidi deixar alguns bilhetes para minha alma e esperar que o Senhor-que-é-meu-pastor a conduza de volta.

- Alma, há quanto tempo não nos falamos?

- Perdoa-me por tantas vezes ter te deixado passar fome e sede.

- Perdoa-me por não ter cumprido o devido distanciamento e ter te contaminado com os virus do cinismo, indiferença e do orgulho.

- Perdoa-me por ter negligenciado tua enfermidade enquanto perdias tua elasticidade e te tornavas dura.

- Ao tornar-te dura, cínica, indiferente e orgulhosa acabamos por ferir outras pessoas. Criamos cepas cada vez mais resistentes e com capacidade maior de disseminação.

- Estás vulnerável ao ataque dos predadores. Não faço ideia de quantos riscos tens corrido.

- Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Posso enumerar muitos motivos. Tenho medo do que pode te acontecer. Morte sumária. Sem fôlego.

- Alma, tenho boas notícias: o Senhor-que-é-nosso-pastor prometeu nos juntar novamente. Mesmo que estejas morta Ele é capaz de nos fazer viver... sua palavra sopra sobre ossos secos e eles vivem (Ez 37:5)... seus pastos verdes são gozo e alegria (Jr 15:16)...

- Ele promete nos conduzir pelo caminho da justiça (mitzvah) - uma oportunidade de invocar a presença de Deus através do nosso comportamento e nossas ações...

Phillip Keller, filho de missionários, nascido na África, tendo trabalhado muitos anos em pesquisa agrícola escreve: A imagem da ovelha (assim como a alma) abatida (do inglês 'downcasted') é um termo do inglês arcaico para indicar quando uma ovelha cai com as pernas pro ar e não consegue se levantar sozinha. O pastor sabe que ela está vulnerável. Mas os inimigos (as aves de rapina e outros predadores) também sabem disso.

Dallas Willard me mostrou algo importante: 

You are the one Jesus was talking about. That is why he put it the way he did. You are the only one who can decide what your soul is worth-what you are worth-and trade it for something you deem more valuable. So I ask you, what would you trade for your soul? How much are you worth? You are the only one who can decide this and exchange your self for anything. [Life Without Lack]

O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, mostra como tornamos as coisas mais reais quando nos aproximamos em intimidade delas; quando nos tornamos responsáveis por alguma coisa, damos a ela nova vida, uma vida mais real, que se torna parte da nossa própria vida. Assim como podemos nos tornar parte da existência de Deus quando deixamos que ele faça o mesmo conosco.

A rosa, selvagem, não compartilhava os sofrimentos das pessoas. Domesticada, ela compartilhou. Talvez soframos de maneira tão desordenada porque Deus nos ama de forma desordenada e está nos domesticando. Talvez não consigamos entender por que estamos compartilhando tantos sofrimentos por este motivo: somos sujeitos de um amor que não entendemos. Talvez estejamos até nos tomando mais reais ao compartilhar nossos sofrimentos, que são os sofrimentos de Deus, na terra, como parte do trabalho de salvação iniciado por Cristo.. [KREEFT]

- Permita o Senhor que jamais eu possa negociá-la, alma, por preço algum.