A Mensagem dos Gafanhotos
"Mas o Senhor será refúgio para seu povo, uma fortaleza para o povo de Israel." Joel 3:16
No ano de 2020, em meio à toda confusão gerada pela pandemia da COVID-19 fomos surpreendidos por uma notícia aterradora: uma nuvem de gafanhotos estava destruindo lavouras na Argentina e Paraguai com risco de atingir o Brasil.
Não tenho qualquer pretensão de fazer interpretações apocalípticas a respeito desta praga¹. O profeta Joel, porém traz uma das chaves para compreensão geral desses tempos: Se o mundo parece seguro e certo, quem precisa de refúgio? Se temos uma vida bem organizada com recursos materiais, sociais, religiosos e humanos a nos cercar, dificilmente precisaremos encontrar uma fortaleza em outro lugar. Muitas pessoas auto-suficientes, competentes e ajustadas genuinamente não vêem sentido em ter fé em Deus; Ele é supérfluo - um recurso para fracos e outros perdedores... o que nos falta é humildade, não desespero...
¹ A explosão populacional [dos gafanhotos] é atribuída por especialistas principalmente a fatores climáticos, como chuva, umidade e temperatura, que têm se acentuado por causa da ação do homem. Esta conjunção de fatores favorece as 20 espécies de gafanhotos com características gregárias deixar a vida solitária para trás e formar enxames.
DAVID PRIOR pastoreou igrejas em Cape Town, África do Sul e Oxford, Inglaterra. A tradução deste pequeno comentário sobre a profecia de Joel foi realizada de modo artesanal e sem pretensões econômicas. Para estudar a Bíblia é interessante a companhia de gigantes piedosos. Aconselho a adquirir os livros da série Bible Speaks Today (A Bíblia Flaa Hoje) atualmente disponíveis em inglês e alguns títulos em português.
Introdução a Joel
Lembro-me da primeira vez que vi um gafanhoto. Viajávamos no carro da família no calor da tarde por uma estrada sul-africana no deserto de Karoo, na África do Sul. Todos estavam meio sonolentos, inclusive o motorista. De repente, um grito, seguido de uma confusão, na traseira do carro. Paramos para investigar. Um enorme gafanhoto - pelo menos parecia enorme para as pessoas acostumadas a grilos de jardim comuns.
Aquele gafanhoto solitário - e seu impacto sobre uma família durante alguns minutos - me vem à mente sempre que leio o livro de Joel. Na época, lembro-me de pensar em João Batista, com sua dieta incomum de gafanhotos e mel silvestre nos desertos da Judéia. Nunca consegui entender o que poderia haver de atraente em um gafanhoto. Depois daquele episódio na África do Sul as coisas ficaram mais claras: corte a cabeça, a cauda e as pernas, e é possível imaginar um pedaço de carne bastante suculento, de preferência grelhado e guarnecido com alho, bem de acordo com a culinária francesa.
Mas uma praga de gafanhotos é algo bem diferente. Para as pessoas da época de Joel, certamente era. Um episódio horrível, devastador e opressor. Eles já tinham visto gafanhotos antes, nuvens deles ao longo dos anos. Mas aquilo era sem precedentes:
Ouçam isto, anciãos; escutem, todos os habitantes do país!
Já aconteceu algo assim nos seus dias? (Joel 1:2).
Basta a leitura de alguns relatos dessas invasões para sentir as experiências terríveis que elas causam. Agostinho escreve:
Contam ainda nos seus livros que, na África, quando já era província romana, se abateu uma praga de gafanhotos que parecia um prodígio. Dizem que depois de terem consumido os frutos e as folhas das árvores, se lançaram ao mar como uma nuvem de ingentes proporções. Conta-se que, tendo eles sido devolvidos já mortos às praias, e por isso tendo corrompido os ares, surgiu uma tão grande epidemia que só no reino de Masinissa morreram oitocentos mil homens e muito mais em terras vizinhas do litoral. Asseguram que, em Útica, dos trinta mil jovens que contava, apenas dez mil teriam sobrevivido.
Na década de 1960, uma horda de gafanhotos atacou a Califórnia. Descrita nos jornais locais em termos que lembram Joel: Numa extensão de 80.000 hectares havia insetos em "cada centímetro quadrado e em alguns casos empilhados uns sobre os outros". Os campos foram deixados "completamente nus". Um agricultor observou: 'O que eles não comem, cortam para se divertir'.
Nos dias atuais as regiões com potencial risco para gafanhotos são monitoradas por agências internacionais usando satélites e outras tecnologias. Enxames com potencial para causar dano são pulverizados por aeronaves e maquinário poderoso. Se as nuvens gafanhotos não forem contidas logo no início, uma vez formado o enxame, os esforços de controle serão pouco eficazes, mesmo nos dias atuais. Em 1988, durante a guerra civil na República do Chade, o conflito impediu a cooperação internacional no combate e um enxame que se espalhou pelo norte da África, devastando algumas das nações mais pobres e ameaçando também a Europa.
Ao que tudo indica, as espécies de gafanhoto que causam tamanha destruição não são diferentes do gafanhoto comum que, sob determinadas condições de umidade e temperatura eclodem simultaneamente, estimulando mudanças significativas, de modo que os indivíduos fazem uma transição do comportamento solitário para formas gregárias e migratórias da temida praga. As pragas continuarão ameaçando enquanto as condições climáticas favorecerem a formação destes enxames.
Tais enxames podem cobrir grandes superfícies (foram avistados a 2.000km do mar), de tamanho imenso (uma área de 5.200 km quadrados foi registrada ao redor do Mar Vermelho em 1881) com uma densidade de até 120 milhões por quilômetro quadrado). Uma gafanhoto fêmea, que põe seus ovos em junho, pode ter 18 milhões de descendentes vivos em outubro. Os enxames podem encobrir a luz do sol, voando alto. Um enxame pode conter até 10 bilhões de insetos.
O barulho deles também é terrível. No início de 1994 estava sentado num jardim em Montevidéu, no Uruguai, hipnotizado pelo barulho estridente de várias cigarras. Aqueles insetos destruíram qualquer senso de paz e sossego. O ruído de gafanhotos em um enxame foi comparado ao de um motor a jato, devido ao duplo som de asas rodopiantes e mandíbulas esmagadoras.
Eles conseguem entrar em casas através de rachaduras e chaminés. Plínio² afirma que eles podem até roer portas. Eles arrancam a casca das árvores. Quando mortos, exalam um fedor repulsivo, e sua decomposição provoca tifo e outras doenças em animais e humanos.
Uma invasão de gafanhotos, especialmente na escala experimentada pelos contemporâneos de Joel, seria um pesadelo, algo direto do inferno, o tipo de cenário que um cineasta como Alfred Hitchcock ou Steven Spielberg poderia evocar poderosamente através de efeitos especiais e habilidades cinematográficas. Não podemos começar a apreciar o impacto da mensagem de Joel, a menos que tenhamos algum conhecimento do que ele está descrevendo. Para a maioria de nós é uma experiência estranha e desconhecida.
E isso levanta todo tipo de questões teológicas. Joel tenta responder a algumas delas. Estas perguntas são atemporais e relevantes para as pessoas de qualquer país a qualquer momento diante de qualquer desastre, ‘natural’ ou provocado pela crueldade ou loucura humana. Perguntas tais como: Por que isto está acontecendo conosco? O que causou isto? O que Deus fará a respeito disso? O que Deus está dizendo para nós? Há algo que possamos fazer para impedir que isso aconteça ou evitar que aconteça novamente?
É útil, ao abordar tais questões hoje, aceitar a impossibilidade de datar o livro de Joel de acordo com os estudiosos. Joel poderia ter sido escrito a qualquer momento entre o nono e o terceiro séculos a.C., um período de 600 anos. Trata-se, simplesmente, da palavra do Senhor que veio a Joel, o filho de Petuel (1:1), e por isso tem muito mais a dizer sobre o Senhor Deus do que sobre o profeta Joel. Deus falou ao povo da época e da nação de Joel. Deus verdadeiramente falou efetivamente, e o povo respondeu à mensagem do profeta - isso está claro no próprio texto à medida que ele prossegue.
Deus ainda fala hoje. Ele fala enquanto a mensagem atemporal de Joel é aplicada pelo povo de Deus vivendo e falando profeticamente em nossas crises atuais. Em janeiro de 1994, a Califórnia cambaleou após uma sucessão de desastres - tumultos, secas, incêndios, enchentes e terremotos. Um artigo (um dos muitos tentando fazer e responder as perguntas certas) tentou abordar a questão “Por que a Califórnia? Sua conclusão, redigida com pouca sabedoria, foi: “A Mãe Natureza quis assim”.
Enquanto compreendemos a mensagem de Deus através de Joel, tornar-se-á claro que o impacto do profeta se deveu em parte a sua rejeição de um paganismo simplista: se descrevermos Deus a partir de sua criação e, em particular, a partir dos aspectos desagradáveis do mundo que ele criou, acabaremos perdidos em um universo sem sentido, sem esperança e sem direção. Há um caminho de volta do pesadelo descrito por Joel, mas as questões são muito sérias e o tempo é urgentemente curto.
A teologia de Joel é robusta e abrangente. Ela vê a mão de Deus na totalidade da experiência humana. Joel compartilha o sentimento de Deus para cada ação e inação humana. Ele fala do envolvimento pessoal e direto de Deus em todos os assuntos humanos. Ele pode ter escrito em um contexto e uma cultura em que era natural falar em uma linguagem tão grosseira, em que as palavras de Deus eram reconhecidas e reverberadas nas almas de seus ouvintes, e nós podemos ter nos afastado de tal atmosfera. O Israel da época de Joel não era, entretanto, menos secularizado do que nossa própria geração. Joel teve a coragem de falar do envolvimento direto e pessoal de Deus nos assuntos atuais e de afirmar que Ele e somente Ele tinha as respostas para a crise: isso teria é bastante diverso das visões de mundo contemporâneas!
Entretanto, precisamos ser honestos ao avaliar se temos ou não alguma filosofia ou definição de vida que forneça significado ou significado para o mundo em que vivemos. Em outras palavras, talvez seja o momento de nos voltar a uma teologia robusta e abrangente. Se achamos difícil aceitar a explicação de Joel sobre suas circunstâncias, em particular, qual é a alternativa? Falando sem rodeios: se Deus não enviou os gafanhotos, quem o fez? Ainda temos que investigar o que queremos dizer com tal afirmação, mas não devemos racionalizá-la a ponto de torná-la uma relíquia de outro mundo. Para a economia agrícola de Joel, a praga dos gafanhotos ameaçava as necessidades básicas da vida diária e, portanto, a estabilidade econômica da nação. Onde estão hoje os gafanhotos em nossa sociedade tecnologicamente brilhante e eticamente falida?
Uma expressão em particular age como refrão em toda a mensagem de Joel: o Dia do Senhor. A invasão de gafanhotos é um prelúdio para algo muito pior, provavelmente uma invasão do norte, e certamente um dia de julgamento final. Qualquer outra coisa que Joel possa ou não estar dizendo, ele está enfatizando tão fortemente quanto sabe como esse grande e terrível dia está iminente. Qualquer desastre presente ou pendente, como os gafanhotos, vem como um aviso, um toque de trombeta nos ouvidos complacentes e desatentos. Deus está falando e ele está falando pessoalmente, direta e urgentemente.
¹ Cidade de Deus, Livro III, xxxi.
² Natural History I.ii.12.
³ Joel 1:15; 2: 1, 11, 31; 3:14.
Joel 1:1-20
1. Clame a Deus
1. O profeta (1:1)
As frases de abertura deixam claro que o livro de Joel é 'a Palavra do Senhor'. A linguagem é muito semelhante aos versículos de abertura de outros profetas do Antigo Testamento.¹ Mas não há nenhuma pista sobre a data, nem uma indicação sobre o background e a personalidade de seu autor. Ele se apresenta como Joel, o filho de Petuel. Curiosamente, podemos neste aprender um pouco a respeito do significado dos nomes de Joel e seu pai. Joel significa “cujo Deus é Yahweh” ou talvez “Yahweh é Deus”. Petuel significa “franqueza ou sinceridade de Deus”.
Os dois nomes juntos resumem a mensagem do livro. Totalmente focado em Deus e com uma mensagem completamente direta - Deus está falando diretamente ao seu povo.
A forma como Joel recebeu a palavra do Senhor é uma questão em aberto. Tudo indica que ele conhecia intimamente o templo de Jerusalém. Então a palavra do Senhor veio até ele - talvez audivelmente, talvez visualmente, ou uma mistura de ambos. Talvez nenhum dos dois. O texto hebraico diz: “A palavra do Senhor que veio a Joel”; tornou-se uma realidade para ele, e que o próprio Joel acreditava que ser a verdadeira palavra do Senhor, investida com precisão e autoridade divina.
Em muitos aspectos, é providencial que o livro não possa ser datado ou rastreado até uma determinada época e cenário. Os eventos descritos são, ao mesmo tempo, sem precedentes e atemporais. A mensagem de Joel é, portanto, relevante para qualquer situação em qualquer geração. Como não há certeza da época, é melhor deixar a questão sobre a data de Joel em aberto e, como veremos, isto não será de grande importância.²
2. O povo (1:2-20)
No espaço de treze versículos Joel, falando as palavras de Deus, anuncia nada menos que dezessete imperativos - aos habitantes do país (2), aos anciãos (2, 14), aos bêbados e bebedores de vinho (5), aos agricultores e produtores de vinho (11) e aos sacerdotes (13). Joel é absolutamente direto ao descrever a terrível situação da nação e o que deve ser feito a respeito.
Cada grupo é ordenado fazer o que, em circunstâncias normais, não seria esperado que fizessem. No entanto, Joel não profetiza para pessoas em circunstâncias normais e, portanto, todos devem agir de maneira diferente. Os homens mais velhos, que na sociedade israelita eram ouvidos com o imenso respeito devido à sua antiguidade e sabedoria,³ devem aprender a ouvir; eles mesmos devem se tornar ouvintes. Como anciãos (14) da comunidade, eles estavam acostumados a instruir os outros. Agora Joel os está instruindo.
Os bêbados passam boa parte de seu tempo dormindo. Os bebedores de vinho costumam estar sempre dando risada. Agora, diz Joel, é tempo de despertar e chorar. A situação terrível exige que mesmo os mais festeiros lamentem (5). De forma semelhante, aqueles que cultivam o solo e podam as videiras (e em uma comunidade rural trata-se da maioria das pessoas) são instruídos a lamentar (11). Os agricultores normalmente fazem seu trabalho com gosto e determinação. Ouvimos frequentemente agricultores descrevendo que não tem férias, mas que gosta de seu trabalho. Por mais difícil que seja, é gratificante e vale a pena todo o esforço. Os fazendeiros na época de Joel foram convidados a contar algo diferente - a cobrir a cabeça de vergonha e uivar.
Os sacerdotes, finalmente, são instruídos a romper com suas práticas habituais: `Ponham vestes de luto, e pranteiem... Venham, passem a noite vestidos de luto (13). Eles normalmente usavam vestes sacerdotais magníficas e presidiam as liturgias de celebração. Agora eles deveriam usar pano de saco e conduzir o povo em ritos de lamentação. Tais ações incomuns não são naturais para aqueles que ministravam perante Deus (13) - mas eles devem passar a noite assim, enquanto os demais sacerdotes dormiam.
Circunstâncias especiais exigem ações especiais. A situação enfrentada pela audiência de Joel não era apenas especial; era sem precedentes. Ele pergunta aos homens mais velhos: Já aconteceu algo assim nos seus dias? Ou nos dias dos seus antepassados? (2). A importância de lembrar o passado - o desastre de Joel é tão inédito que ele diz aos anciãos para incluí-lo no que eles passarão, de agora em diante, para as gerações futuras. Não se pode permitir que se desvaneça da memória das pessoas:
Contem aos seus filhos o que aconteceu,
e eles aos seus netos,
e os seus netos, à geração seguinte (3).
Aquele evento deveria tomar lugar entre todos os outros atos de Deus na história e deveria ser ser contado à terceira e quarta gerações.
¹ Por exemplo, Miquéias, Jonas, Sofonias, Zacarias.
² Calvin, Preface, 14, p. xv.
³ See Gn 15:15; Ex. 20:12; Lv. 19:32; Sl 71:9, 18 - and, in another but similar culture, Jb. 5:26; 12:20; 15:10; 32:7. to absorb its lessons and apply its perspective - is paramount in the history and worship of Israel."
3. O problema (1:4)
Que evento sem precedentes é este? Joel descreve de forma sucinta e memorável:
O que o gafanhoto cortador deixou,
o gafanhoto peregrino comeu;
o que o gafanhoto peregrino deixou,
o gafanhoto devastador comeu;
o que o gafanhoto devastador deixou,
o gafanhoto devorador comeu (4).
A terra foi invadida por um enxame de gafanhotos em escala catastrófica. A descrição do profeta faz com que soe quase apocalíptico - que em um sentido importante, como veremos a seguir, é.
Comentaristas debatem a interpretação deste versículo. A maioria aceita que ele descreve uma invasão literal de gafanhotos, mas divergem nos detalhes. Alguns acreditam que o capítulo 2 continua prossegue descrevendo os gafanhotos, abrindo uma perspectiva mais ampla na qual os gafanhotos são indicadores de um exército invasor. Alguns comentaristas afirmam que toda a descrição dos gafanhotos é figurada e que se trata da invasão por exércitos estrangeiros do início ao fim.
O mais provável é que que tal descrição detalhada seja descrição da ação de gafanhotos. As descrições que temos desse fenômeno comprovam a exatidão da linguagem de Joel. O profeta não exagera nem um pouco. Provavelmente, apenas aqueles que não vivenciaram os efeitos de uma nuvem de gafanhotos não podem conceber um cenário tão terrível.
Se 1:4 resume uma invasão de gafanhotos e seu impacto sobre a terra, torna-se sem importância se os quatro adjetivos usados para os gafanhotos têm referência particular a etapas distintas em seu desenvolvimento. É pouco provável que Joel tivesse qualquer interesse ou acesso a dados biológicos sobre o ciclo de vida de um gafanhoto. O que ele saberia, por observação, é que os gafanhotos cortam, os se aglomeram, saltam e destroem. Simplesmente não sobrou nada depois de uma série de ataques de gafanhotos. O impacto de tal evento era devastador e seus efeitos ainda seriam sentidos muito tempo depois que os gafanhotos desaparecer; veja a frase em 2:25, referindo-se aos anos (plural) que o gafanhoto comeu. Tamanha destruição levaria anos para se recuperar.
â´ Veja, por exemplo Ex. 12:26; 13:8; Dt. 6:20.
4. Os resultados (1:5-20)
Joel pinta uma descrição vívida desta destruição. Ele usa linguagem poética, evocativa e emocional. Atribui sentimentos pessoais às coisas criadas. Usa frases particulares mais de uma vez. É possível captar a força da descrição analisando os verbos empregados: cortar, devastar, arrasar, rasgar; despojar, destruir, reter; arruinar, devorar, queimar; falhar, definhar, murchar, murchar, murchar. Todos os aspectos são afetados - campos, alimentos, frutas; cevada, celeiros, animais; solo, grão, alegria. Itens como romã e figo, foram exterminados. Culturas importantes, como trigo e cevada, erradicadas.
Em meio a toda esta devastação, Joel destaca quatro áreas com um significado particular.
a. Faltava o básico para a vida
O trigo está destruído, o vinho novo acabou, o azeite está em falta (10). É difícil para os leitores não acostumados com o estilo de vida do mediterrâneo absorver a força disso. Para os britânicos, o equivalente pode ser pão, manteiga e chá. Para os americanos, hambúrgueres, café e gasolina. Na China e em muitos países do Oriente, o grão em questão seria o arroz. Grãos, vinho e azeite eram necessários para a dieta básica dos países mediterrâneos - o grão para fazer pão; o fruto da videira como bebida diária; azeite de oliva para cozinhar, limpar, acalmar, iluminar e muito mais.
Joel deseja mostrar que o modo de vida havia sido destruído. É relativamente fácil enfrentar alguns desastres naturais, desde que nosso estilo de vida básico não seja afetado. Aí então nos sentamos e nos damos conta que no mundo ocidental e modernizado de hoje, estamos protegidos do impacto de desastres semelhantes. A tecnologia nos deu enlatados e refrigeradores. Se ouvimos o anúncio de escassez de enlatados ou de frios, reforçamos nosso estoque. Mas isto não é verdade em todas as partes do mundo, mesmo hoje. Recebi recentemente uma correspondência do Zimbábue em que amigos escreveram: “Estamos desesperados por chuvas na próxima estação; o racionamento de água e a distribuição de alimentos são rotina por aqui”.
É possível que Joel dê mais atenção a grãos, vinho e azeite por razões explicitamente teológicas. Oséias, por exemplo, compara a infidelidade do povo ao adultério de sua própria esposa. Deus diz: “Ela não reconheceu que fui em quem lhe deu o trigo, o vinho e o azeite...” (2:8). Os contemporâneos de Joel deveriam buscar pela verdadeira fonte do pão, do vinho e do azeite de cada dia, agora que estes tinham desaparecido. No Salmo 104:15 o mesmo trio é mencionado, como presentes de Deus: ‘o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que lhe faz brilhar o rosto, e o pão, que sustenta o seu vigor’. Se o país havia sido devastado como conseqüência de sua recusa em servir ao Senhor, o povo já tinha sido advertido de que o inimigo “não deixará para vocês cereal, vinho e azeite”.âµ Joel também está lembrando ao povo a abundância original e pretendida da terra.â¶
Apenas alguém perverso - obstinadamente perverso - poderia deixar de captar a mensagem."
'Mais do que estúpido' - um veredicto destacado pelo segundo evento nesta catástrofe.
b. A reação de animais de fazenda e animais selvagens
Até os animais sofrem!
Como muge o gado!
As manadas andam agitadas
porque não têm pasto;
até os rebanhos de ovelhas
estão sendo castigados (18).
Até os animais do campo clamam a ti,
pois os canais de água se secaram
e o fogo devorou as pastagens (20).
Vacas e ovelhas dependem de bons pastos. Os criadores tomam muito cuidado em cultivar boas pastagens para fornecer o que os animais precisam durante todo o ano. Nos Pirineus, os fazendeiros bascos levam suas ovelhas para as pastagens no alto das montanhas nos meses de verão, de modo que as áreas limitadas de boas pastagens mais baixas ao redor de suas fazendas possam ser mantidas durante o inverno, quando as áreas mais altas são cobertas de neve.
As ovelhas, particularmente, comem qualquer coisa que cresce na terra - as folhas do milho e, se permitido, os arbustos e plantas em nosso jardim. Eles passam o dia inteiro pastando. Joel certamente compreendeu o estado de espírito das ovelhas e do gado privados de seus pastos. Ele descreve seu comportamento em termos de sentimentos humanos: eles sofrem, ficam perplexos; ficam consternados. A palavra hebraica para "andam agitadas" pode ser traduzida mais literalmente como “vagam sem rumo”, para sempre em movimento, em uma busca vã de melhores pastos.
Esta última expressão é, de fato, um motivo diretamente teológico. Significa “considerar-se culpado” ou “tratados como culpados”. Joel está introduzindo a noção de que o reino animal sofre as conseqüências do pecado humano, mesmo se identificando de tal forma com ele até, em algum sentido, assumir a responsabilidade por ele. Os animais sentem que por trás do desastre existe um Deus ofendido.
A perspectiva de Joel sobre a unidade de todas as criaturas no ciclo da vida é baseada no relato de Gênesis da criação.
Toda a criação, enquadrada pela palavra de Yahweh e moldada para alcançar seus propósitos, é vista por Joel, os salmistas e os profetas como uma unidade. As personificações literárias que retratam a dor e a vergonha da terra queimada e dos animais famintos são mais do que recursos artísticos. Elas demonstram a vitalidade de uma criação concebida não apenas como um palco para o drama da redenção, mas como atores dela, nitidamente afetados pelas cenas de julgamento e graça. Do Éden em diante, os seres humanos e o resto da criação foram envoltos em um ciclo de vida. O que toca um chega ao outro, seja bênção ou maldição.â¸
Para Joel, a forma como o homem administra e lida com o universo criado por Deus entra em foco. Ele chama seus semelhantes, o povo de Deus, a fazer o que os animais estão instintivamente fazendo - gritando a Deus em angústia. O profeta insinua (para dar às suas palavras o mínimo significado) que os seres humanos são responsáveis pela angústia dos animais. Esta perspectiva não está limitada a Joel no Antigo Testamento, mas entre os profetas hebreus ele a articula de forma mais poderosa.â¹
Todas as coisas criadas dependem dos seres humanos, que são criados à imagem de Deus, para exercerem com a devida responsabilidade e humildade a administração da criação. É triste constatar que a defesa dos recursos naturais nos últimos tempos não tenha partido daqueles comprometidos com uma teologia bíblica. De fato, a maioria dos cristãos tem ficado para trás no debate ecológico. Ao fazer isso, deixamos o campo aberto para outros, muitos dos quais fazem uma cruzada pelos “direitos” dos animais contra os direitos dos seres humanos egoístas.
Uma publicação da Nova Era reflete eloquentemente este ponto: “O recente aumento da atividade vulcânica, terremotos e padrões meteorológicos incomuns podem muito bem ser mensagens de Gaia, chamando a atenção para suas necessidades”. No cenário da Nova Era, Gaia é uma deusa, um nome antigo para a Mãe Terra. A deusa foi ‘gravemente ferida’ pela expansão da civilização humana e agora, diz-se, deve vir uma expiação universal por esses muitos milênios de dor de sua parte.
Além das raízes na mitologia grega e romana, o tema da grande mãe e da grande deusa estão enraizados nas religiões orientais. A grande deusa mãe era adorada sob qualquer um ou muitos de seus diferentes nomes: Diana ou Artemis,¹ⰠIsis, Demeter, Hécate, Cibele. No Antigo Testamento encontramos referência a Aserá, a consorte feminina de Baal.¹¹ Esta série de nomes expressa um sistema de crenças no qual a própria natureza é deificada pela adoração da fêmea em processos e energias naturais - uma deusa que vive dentro de nós e todos os seres vivos. A palavra da moda para todo este mix de crenças é ecofeminismo.
Esta religião é tão antiga quanto as montanhas e, na terra prometida, representava uma ameaça contínua ao monoteísmo do povo de Deus. As práticas de adoração dos cananeus estão registradas nas páginas do Antigo Testamento, e não foram deixadas de lado na profecia de Joel. Quando o povo de Deus ignorou mandamentos de Yawheh, havia muitos “outros deuses” com filosofias e promessas alternativas.
âµ Dt. 28:51; cf. Nu. 18:12; Dt. 7:13; 11:14; 12:17; 14:23; 18:4; 2Cr 31:5; 32:28; Ne. 10:3, 39; 13:5, 12; Jr 31:12; Os 2:10, 24; Hg. 1:11.
â¶ Veja, por exemplo Ex. 3:8, 17; 13:5; 33:3; Lv. 20:24; Nu. 13:27; Dt. 8:7-9; Js 5:6; Jr 32:22; Ez. 20:6.
â· Calvin, p. 21.
⸠Hubbard, pp. 34-35.
â¹ Ver Salmos 104:10-13, 21; 145:15-16; 147:9.
¹â°Por exemplo, of the Ephesians in Acts 19:27-37.
¹¹ Por exemplo, Mq 5:14.
Tal credo não estava tão distante da espiritualidade moderna que, tendo dispensado um Deus criador, sustentador, redentor e juiz, o substitui por uma “deusa” que nos permite obter o que queremos de nossos “eus superiores” dentro e fora do universo. Há um grau de verdade bíblica na Nova Era que enfatiza os poderes inerentes ao mundo criado, particularmente o imperativo da fertilidade. Mas, aproveitando o ritual mágico das religiões antigas, como o Baalismo, as práticas da Nova Era dissociam deliberadamente o cultivo de tais poderes do chamado para ser santo. Portanto, precisamos de uma teologia de criação robusta e de uma espiritualidade de criação celebrativa.
Aparte: criação
A passagem chave do Novo Testamento para tal teologia e espiritualidade vem em um capítulo notável no meio da carta de Paulo aos Romanos, na qual o apóstolo está escrevendo sobre a obra do Espírito Santo na vida dos “que estão em Cristo Jesus” (8:1). Intrigantemente, no contexto da praga dos gafanhotos de Joel, Paulo aborda a realidade do sofrimento - o sofrimento é próprio aos filhos de Deus em um mundo dominado pelo pecado e pela morte. É um sofrimento que compartilhamos com o próprio Cristo (8:17).
O apóstolo continua:
Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada. A natureza criada aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam revelados. Pois ela foi submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha, mas por causa da vontade daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos filhos de Deus.
Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo. Pois nessa esperança fomos salvos. Mas esperança que se vê não é esperança. Quem espera por aquilo que está vendo? Mas, se esperamos o que ainda não vemos, aguardamo-lo pacientemente (Rm 8:18-25).
Fica bastante óbvio a partir desta passagem que Paulo vê uma ligação íntima entre os seres humanos e o restante da criação de Deus em termos de existência passada, presente e futura - estando todos juntos sob o controle e os propósitos do próprio Deus. Neste nível fundamental, portanto, a atenção, sensibilidade e compromisso com o meio ambiente são mandatórios. O que nos afeta como seres humanos afeta tudo que é criado, e vice-versa. Nenhum cristão pode optar por abandonar o debate ambiental sem, portanto, se fazer deliberadamente surdo para a palavra de Deus.
Nossa teologia e nossa espiritualidade, portanto, deve manter unidos os seres humanos e todos os outros seres criados. Não somos livres nem para libertar nossas mentes das questões ambientais, nem para aceitar crenças que confinam Deus a uma existência dentro da ordem criada, muito menos que identificam Deus com as próprias forças da natureza. Filosoficamente, este último é panteísmo; teologicamente, é idolatria, envolvendo a adoração da criatura, não do Criador. Paulo tem muito a dizer sobre isso no primeiro capítulo de Romanos (versículos 18-32).
Em termos positivos, Paulo tem muito a nos ensinar sobre os propósitos do Criador na, para e através da criação. Olhando para o passado, Paulo afirma que a criação “foi submetida a inutilidade” pelo propósito desígnio de Deus. Esta sujeição “não pela sua própria escolha”, e por isso existe uma frustração inerente ao trabalho na ordem criada, provocada pelo desejo de libertar-se de todas as limitações impostas a ela.
A palavra ‘inutilidade’ é melhor iluminada no livro de Eclesiastes, que começa com o lamento do pregador: ‘Vaidade de vaidades... vaidade de vaidades, tudo é vaidade.’ (1:2) e a partir daí segue-se doze capítulos descrevendo este ciclo repetitivo de vazio e inutilidade no coração, não apenas do esforço humano, mas de todo o universo. O salmista também expressou esta futilidade em um momento de dolorosa consciência:
Deste aos meus dias o comprimento de um palmo;
a duração da minha vida é nada diante de ti.
De fato, o homem não passa de um sopro.
Sim, cada um vai e volta como a sombra.
Em vão se agita, amontoando riqueza
sem saber quem ficará com ela (Salmos 39: 5-6).
Esta inutilidade é tão real para os animais quanto para os homens, e leva ao que Paulo descreve como “escravidão à decadência”. Todos os seres criados estão em cativeiro. Nada e ninguém é livre. Precisamos ser libertados de todas as limitações de nossa existência terrena, a fim de realizar nosso potencial e encontrar nosso destino. O mundo é um lugar glorioso: mas é uma prisão cheia de morte e decadência. Isto leva a “a natureza criada geme ... como em dores de parto” em conjunto - uma descrição que lembra vividamente a observação de Joel: Até os animais sofrem! (1:18).
Paulo vê o gemido como uma sinfonia em que toda criação de Deus desempenha um papel - como se o mundo inteiro estivesse enviando uma longa, apaixonada, ininterrupta e interminável lamentação a seu Criador. Em noves de sofrimento, como na guerra civil, praga e pestilência ou desastre “natural”, este gemido é quase palpável. Tornou-se uma realidade no Reino Unido após a morte de Diana, Princesa de Gales, no final de agosto de 1997. As visitas que fiz a Uganda nos últimos quinze anos me tornaram pessoalmente consciente da intensidade deste sofrimento. Aqueles que passaram um tempo mais recentemente em Ruanda contam histórias semelhantes. O Peru teve a mesma sensação quando terroristas do “Sendero Luminoso” causaram estragos há alguns anos. Você pode senti-lo na atmosfera, vê-lo nos olhos daqueles, particularmente das crianças, que testemunharam atrocidades terríveis. Tal clamor também é ouvido nas selvas de concreto de nossas principais cidades, e na contínua agonia da Irlanda.
Este tipo de sofrimento afeta o meio ambiente e toda criação. A perspectiva de Paulo sobre tal sofrimento é semelhante a uma mulher em trabalho de parto - uma palavra de esperança. O sofrimento pode parecer fútil, dentro de uma perspectiva terrestre. O gemido pode ser intenso e prolongado, mas há um futuro e uma esperança: “a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. Deus a sujeitou à inutilidade; Deus a libertará para a glória. O futuro do universo está inexoravelmente ligado ao futuro dos filhos de Deus, um futuro que Paulo descreve como “a redenção de nossos corpos”.
Este futuro glorioso, em que as palavras-chave são redenção e liberdade, é, como explica Paulo em outro lugar,¹² uma ressurreição dos mortos. Há pecado e há morte; há futilidade e decadência, em todos os lugares da criação. Mas nossos corpos físicos, mortais, em Cristo, serão ressuscitados para viver plena, livre e eternamente em ‘um novo céu e uma nova terra’,¹³ Esse é o verdadeiro significado da ‘redenção de nossos corpos’. Será o novo nascimento, para o qual toda a criação agora geme em trabalho conjunto. Redenção, ressurreição, renascimento, recriação: este é o vocabulário de uma teologia e uma espiritualidade apropriada ao livro de Joel e relevante ao universo cansado, poluído e rangente em que vivemos.
E o caminho para esta glória é através do sofrimento. O Espírito Santo de Deus nos permite entrar neste futuro, em parte, mas substancialmente, em nosso gemido presente. Uma parte essencial desta jornada é permitir que Cristo nos torne sensível ao seu próprio sofrimento. Ser filho, herdeiros e co-herdeiros com Cristo necessariamente envolve este tipo de sofrimento - ou seja, entrar no coração partido de Deus e compartilhar sua dor por tudo o que o pecado humano desencadeou em sua criação. Assim, o Espírito de Deus nos introduz tanto ao sofrimento quanto à glória de Deus. Qualquer movimento genuíno do Espírito nos levará mais profundamente a ambos - e deve se refletir na forma como oramos e adoramos juntos, bem como na forma como pensamos e falamos: em nossa espiritualidade, bem como em nossa teologia.
O ‘céu e a terra juntos’, portanto, sempre foi a intenção do Criador - um novo céu e uma nova terra na qual ‘a justiça está em casa’.’â´ Podemos ter apenas esperanças limitadas de um mundo nas garras da inutilidade e decadência. Jeremias viu e sentiu isto de forma aguda:
Até quando a terra ficará de luto
e a relva de todo o campo estará seca?
Perecem os animais e as aves por causa da maldade
dos que habitam nesta terra,
pois eles disseram:
“Ele não verá o fim que nos espera” (Jr 12: 4).
Mas devemos permitir que o Espírito de Deus, que se moveu com poder criativo sobre o caos nos ajude a sentir a inutilidade e a decadência inerentes ao nosso mundo. Não devemos ignorá-lo, banalizá-lo nem glamorizá-lo.
Então o Espírito, ele mesmo 'as primícias' da nova criação de Deus, abrirá nossos olhos para o que ele está gradualmente trazendo à existência, o que culminará em uma revelação plena da 'gloriosa liberdade dos filhos de Deus'. O profeta Isaías fornece informações valiosas sobre o que isso significará, em uma passagem que termina assim:
O lobo e o cordeiro comerão juntos,
e o leão comerá feno, como o boi,
mas o pó será a comida da serpente.
Ninguém fará nem mal nem destruição
em todo o meu santo monte”, diz o Senhor (Is. 65:25).
c. A alegria falha dos filhos dos homens
O terceiro evento retratado por Joel é cercado de uma atmosfera de destruição e tristeza. Ninguém sorri. Ninguém tem alegria: já não há alegria entre os filhos dos homens (Joel 1:12, ra); Murchou a alegria do povo (NVT). Alegria, alegria e regozijo estão dolorosamente ausentes, enfatizando que a felicidade pode ser totalmente dependente das circunstâncias materiais quando as pessoas estão fora de contato com o Deus vivo.
Aqui os bêbados voltam a aparecer. Eles dependem inteiramente da bebida para sua felicidade. Ela é estimulada artificialmente pelo que consomem. A provisão de vinho deles se esgotou. Eles terão que enfrentar as duras realidades da vida sem o estímulo (ou rota de fuga) proporcionado pelo vinho. Para muitos, isto significará uma terrível descida ao abismo da abstinência, com todos os seus sintomas aterradores - alucinações e tremores - cenários de pesadelo dos tormentos do inferno. Viciados em qualquer droga (álcool, nicotina, cocaína ou crack, LSD, heroína ou o que quer que seja - seja ‘leve’ ou ‘pesada’, lícita ou ilícita) vivem aterrorizados por não estar mais disponíveis.
O vinho novo foi tirado dos seus lábios (5) - uma ação repentina e dramática: a garrafa é levada aos lábios e depois chicoteada. Isto representa uma poderosa intrusão no estilo de vida escolhido, forçando as pessoas a uma experiência que priva da única coisa que as mantém em movimento. Isso inevitavelmente leva, não apenas ao fim de qualquer alegria (como diz Joel), mas à violência (como podemos ver hoje). Nas cidades de hoje, as drogas desempenham o papel que a bebida tinha no tempo de Joel. Uma proporção significativa de todos os crimes violentos é relacionada à droga. Grandes espaços nas principais cidades do mundo são controladas por traficantes de droga. Este cenário assustador, não muito diferente do mundo de Joel, surgiu quando os indivíduos procuram estimulantes e ‘alienantes’ artificiais, especialmente na bebida e, a princípio, drogas ‘leves’. Eles são alvos fáceis para aqueles que buscam lucros rápidos, fáceis e crescentes.
Após publicar artigo sobre suicídio na adolescência o editor recebeu a seguinte carta:
Depois de ler seu artigo, senti que tinha que colocar no papel. Como uma adolescente de 16 anos esperando os resultados do exame, sinto que estou bem posicionada para comentar. Depressão, drogas e desemprego são, a meu ver, os três principais fatores que contribuem para as tentativas de suicídio entre os meus pares. A pressão sobre os jovens de hoje para que sejam bem sucedidos social e academicamente é intensa. Esta pressão é acompanhada por um crescente sentimento de alienação da sociedade.
Vivo em uma antiga cidade comercial, onde o desemprego é altíssimo. Existe um sentimento de apatia entre muitos jovens de hoje. O futuro parece cada vez mais obscuro - sem emprego, sem segurança no trabalho. Muitos de nós tem sido atraídos pelo crime e pelas drogas e não há aconselhamento e esperança suficientes para aqueles com problemas de drogas, que muitas vezes são descartados como ‘aborrescentes’ - uma frase que faz meu sangue ferver! É de se admirar que a depressão e as tentativas de suicídio estejam aumentando? Há necessidade de um melhor apoio para os jovens com problemas.¹âµ
Esta carta mostra claramente, o plano de fundo é a busca de felicidade ou contentamento. A vida é “enfadonha” - uma frase de desaprovação que fala de uma busca de sentido, bem como da necessidade de um estímulo constante. Os jovens, em particular, estão procurando excitação, algo para quebrar a rotina, parar o tédio e tirar suas mentes do futuro sombrio. Os menores de idade que bebem e as experiências com drogas são, portanto, muito frequentes.
Mas não se trata apenas de jovens sem muitas, ou nenhuma, perspectivas. Esta ausência de alegria tem sido muitas vezes demonstrada por aqueles que trabalham longas horas, sob forte pressão e muitas vezes com altos salários. No mercado de trabalho atual há menos empregos, mais demissões e maior incerteza sobre o futuro. Aqueles que têm um emprego muitas vezes têm que fazer o trabalho de duas, até mesmo três, pessoas. A atmosfera é altamente carregada, tanto com as expectativas dos empregadores de maior produtividade e comprometimento, quanto com a enorme vulnerabilidade dos postos de trabalho. Desta forma o consumo de drogas pesadas, incluindo a heroína e o crack, entre os que ganham muito dinheiro nos mercados de dinheiro da cidade de Londres, em aumentado. Para alguns, tornou-se um modo de vida - tudo em busca de alegria.
Uma pessoa me disse recentemente, 'não há muitos sorrisos no meu trabalho'. Secou-se, mais ainda, a alegria dos homens. É tudo uma tarefa árdua e inacabável. Em outro nível, a mesma condição se revela (embora muitas vezes seja mantida oculta) na alta prevalência da depressão.
Há, naturalmente, uma importante distinção a ser feita entre felicidade e alegria, particularmente a alegria e o regozijo mencionados por Joel. Estamos envolvidos em uma busca inquieta pela felicidade. A felicidade está consagrada na Declaração de Independência Americana como um dos três “direitos inalienáveis” de cada cidadão (“Vida, Liberdade e Busca da Felicidade”) - “uma das idéias mais bobas já propagadas”, de acordo com Malcolm Muggeridge. O Dalai Lama disse: “Acredito que o propósito da vida é ser feliz... Não sei se o universo, com suas inúmeras galáxias, estrelas e planetas, tem um significado mais profundo ou não, mas é claro - pelo menos - que nós, humanos que vivemos nesta Terra, enfrentamos a tarefa de construir uma vida feliz para nós mesmos. Portanto, é importante descobrir o que trará o maior grau de felicidade”.
Joel, entretanto, está preocupado com a alegria, e ele se refere a três momentos específicos de alegria na comunidade - no casamento (8), na colheita (10-11) e nas atividades do templo (9, 13, 16). Em todas essas ocasiões, a alegria e o regozijo eram esperados. Grande parte da alegria era a pura antecipação de todas as coisas boas que todos esperavam. Todos aqueles pontos altos da vida estavam enraizados na celebração da generosidade de um Criador que nos chamou, que criou à sua própria imagem, para uma relação pessoal de fé e obediência. Fora desta relação, pode até haver um grau de felicidade, mas não haverá nenhuma da verdadeira alegria e nada da alegria a que Joel se refere.
O Velho Testamento está cheio de alegria. O Salmo 45, por exemplo, é uma canção de amor em celebração ao casamento do rei com sua princesa. Para o noivo, estas palavras são cantadas:
Amas a justiça e odeias a iniquidade;
por isso Deus, o teu Deus,
escolheu-te dentre os teus companheiros
ungindo-te com óleo de alegria.
A noiva é descrita em termos brilhantes:
Cheia de esplendor está a princesa em seus aposentos,
com vestes enfeitadas de ouro.
Em roupas bordadas é conduzida ao rei,
acompanhada de um cortejo de virgens;
são levadas à tua presença.
Com alegria e exultação
são conduzidas ao palácio do rei (Salmos 45: 7, 13-15).
Essa alegria foi interrompida nos dias de Joel e substituída por lamentos e prantos, semelhantes à tristeza de uma noiva despojada de seu futuro marido à beira de grande dia de celebração.
A alegria da colheita é celebrada vividamente no Salmo 65, num crescendo de alegria:
Coroas o ano com a tua bondade,
e por onde passas emana fartura;
fartura vertem as pastagens do deserto,
e as colinas se vestem de alegria.
Os campos se revestem de rebanhos,
e os vales se cobrem de trigo;
eles exultam e cantam de alegria! (Sl 65: 11-13).
Que contraste com a lamentação de Joel! Que choque, para pessoas acostumadas a tamanha abundância, enfrentar tamanha desolação! Não havia mais nada a antecipar, nada a comemorar.
Mas o aspecto mais devastador da descrição de Joel é o fim da alegria na casa do Senhor:
Não é verdade que a comida foi eliminada
diante dos nossos próprios olhos,
e que a alegria e a satisfação
foram suprimidas do templo do nosso Deus? (16).
Isso nos leva à quarta e última ênfase de Joel neste capítulo, quando ele descreve o impacto da praga de gafanhotos.
¹² Esp. 1 Cor. 15. ¹³ Cf. 2 Pet. 3:13; Ap 21:1.
¹ⴠ2 Pet. 3:13, my translation.
¹ⵠThe Independent, 12 August 1995.
d. A vida de adoração do povo
A alegria foi destruída em todos os níveis - na vida diária, nos eventos especiais e na época da colheita. Mas um impacto menos óbvio da praga de gafanhotos é a destruição da adoração no templo, tipificada pela oferta de cereais e as ofertas derramadas (9, 13), para os quais os ingredientes básicos não estavam mais disponíveis.
Ofertas de cereais (ou grãos) e as ofertas de bebidas eram feitas duas vezes ao dia pelos sacerdotes para acompanhar o sacrifício matinal e noturno. Esta oferta diária (chamada de tamid no hebraico) era considerada como a tarefa mais importante dos sacerdotes em nome da comunidade de Israel.¹ⶠEra a expressão diária do pacto entre o Senhor e seu povo.
Se, então, o tamid deveria cessar, era equivalente a dizer que o pacto estava inoperante. O tamid era um reforço diário do pacto, como pode ser visto em um refrão regular em Levítico, Números e Deuteronômio no qual se diz ser “um aroma agradável ao Senhor”. Cada oferta de cereais, cada oferta de grãos, cheirava bem a Deus e também trazia ao povo a certeza de que a relação do pacto era sólida e segura.¹â·
O desastre descrito por Joel implicou na suspensão desta certeza da presença real de Deus habitando entre o povo, e encontrando-os para falar com eles. Os gafanhotos não tinham casa, coordenação nem linguagem: exatamente como a aparente ausência e o eloqüente silêncio de Deus.
Para um povo educado sobre a presença e a provisão de Deus, este foi o desastre final. Os sacerdotes eram mediadores indispensáveis na vida de comunhão com Deus. Cada sacerdote representava todo Israel quando ministrava no lugar santo; daí o foco em Joel no impacto da catástrofe sobre os sacerdotes:
Os sacerdotes, que ministram diante do Senhor,
estão de luto (9).
Eles estão de luto, não pela ausência de grãos, vinho e azeite por suas ofertas, mas por esta aparente ausência de Deus.¹⸠A ausência das ofertas não fez com que Deus se retirasse, mas deixou clara a posição do povo fora da presença de um Deus santo.
Esta perspectiva também aponta paro significado mais profundo da instrução de Joel aos sacerdotes para que vestissem pano de saco (13). As vestes sacerdotais, como mencionado anteriormente, eram esplêndidas, para glória e para beleza” (Ex. 28:2). Cada peça de vestuário tinha um significado simbólico. Por exemplo, as doze pedras preciosas no “peitoral” representavam os doze filhos de Jacó, as doze tribos de Israel: “Toda vez que Arão entrar no Lugar Santo, levará os nomes dos filhos de Israel sobre o seu coração no peitoral de decisões, como memorial permanente perante o Senhor.” (Ex. 28:29). Cada detalhe de cada peça sacerdotal tinha um significado semelhante. Agora os sacerdotes tinham que colocar tudo isso de lado e vestir um vestido preto tecido com o pelo de cabra:
Venham, passem a noite vestidos de luto,
vocês que ministram perante o meu Deus (13).
Desta forma, todo o elaborado sistema de manutenção da comunhão com Deus havia se desintegrado. E o estranho é que, ao contrário de praticamente todos os outros profetas em Israel, Joel não menciona nenhum pecado em particular na nação que poderia ter provocado a ira do Senhor. Este silêncio levou vários comentaristas a sugerir que existe algo abaixo da superfície do texto. O sincretismo religioso e o pluralismo estão no centro dos problemas de Judá”, e as palavras de Joel dão claras “dicas da corrupção religiosa que estava matando a vida de culto (no templo)”.¹⹠Mas estas permanecem “dicas”, e a falta de qualquer data precisa para a profecia significa que não podemos tirar conclusões seguras sobre este ponto.
Os apelos de Joel aos bêbados, agricultores e sacerdotes podem conter mais do que parece, pois tanto os bêbados quanto os agricultores são mencionados explicitamente por outros profetas como provavelmente em conluio com os sacerdotes em práticas religiosas obscuras. Muita embriaguez foi associada à maioria das formas de culto religioso. Oséias, em uma passagem poderosa sobre o tema “como sacerdotes, como pessoas”, afirma sem rodeios que, porque “vinho velho e ao novo, prejudicando o discernimento do meu povo.” (4:11), a nação afundou na idolatria. Porque o sacerdote e o povo “se prostituíram”, “os produtos da eira e do lagar não alimentarão o povo; o vinho novo lhes faltará.” (9:1-2).
Dentre as religiões místicas existentes em Canaã, a embriaguez orgíaca era uma forma comum de um adorador se unir com uma divindade particular. O vinho e a bebida facilitavam a viagem a um estado de êxtase, no qual se podia sair de si mesmo e se perder no mundo da divindade. Tal experiência extática não é incomum hoje em dia, geralmente ligada a estados induzidos por drogas, em formas similares de expressão religiosa.
Além disso, os agricultores daquela época eram, talvez mais do que qualquer outra pessoa na comunidade, suscetíveis às práticas de fertilidade cananéias em honra ao Baal e a Aserá. Eles teriam sido severamente tentados, como todos os dependentes dos elementos naturais, a se afastar da confiança obediente no Senhor para qualquer possível fonte de ajuda, provisão ou proteção, particularmente em tempos de crise. Os cultos de fertilidade a Baal foram muito influentes ao longo dos séculos que se seguiram à entrada de Israel na terra sob Josué, apesar do mandamento do Senhor através de Moisés de olhar para ele com confiança e obediência, a fim de garantir suas bênçãos em sua terra, seus lares e toda sua vida. Desde o início, o Senhor havia colocado pesadas sanções contra qualquer forma de contato com “outros deuses ... os deuses dos povos ao redor” (Dt. 6:14).
Tais advertências (aliadas às promessas de bênção sobre a obediência) foram gravadas na memória coletiva do povo. É provável, portanto, que Joel não tivesse necessidade de repetir os pecados do povo. Eles sabiam muito bem o que tinha produzido aquela catástrofe. Enunciar especificamente cada pecado era desnecessário. A menção sétupla do livro à frase 'seu Deus' pode indicar idolatria persistente e o apelo apaixonado de Joel para que eles retornassem ao único Deus verdadeiro; como seu próprio nome significa, “Yahweh é Deus”.²â°
Mas Joel está a anos-luz do tipo de profeta que denuncia o pecado da nação a partir de uma postura pessoal que assume o alto nível moral. Na mesma respiração que falarao povo sobre 'seu Deus', ele prossegue falando sobre 'nosso Deus' (16) e 'meu Deus' (13) ao se dirigir aos sacerdotes. Joel está em sintonia tanto com a dor quanto com a pecaminosidade do povo. Ele fala por Deus a partir do interior da catástrofe. Ele mesmo conhece a desolação (talvez como um dos sacerdotes no templo de Jerusalém) de ser privado da “alegria de sentar-se à mesma mesa com o Senhor”.²¹
Talvez seja difícil entrar plenamente nas profundezas da desolação que Joel está expressando. Para nós, esta interpenetração profunda e apaixonada entre a vida cotidiana e a vida de adoração não é uma experiência comum. A teologia do Novo Testamento também nos afasta da dependência de coisas santas em lugares santos com pessoas santas. Gostamos de pensar que nosso relacionamento com Deus não é tão demonstrado fisicamente ou externamente.
Para nós, em nossa tradição e cultura, uma desolação equivalente à da época de Joel pode ser uma experiência interior infinita da ausência de Deus - onde a oração não tem sentido, as Escrituras estão mortas, a adoração corporativa é vazia e a comunhão cristã se tornou intolerável. Se estes forem o nosso pesadelo pessoal (e para muitos hoje são), então uma praga no mesmo nível dos gafanhotos de Joel pode muito bem estar sobre nós.
5. A solução (1:14)
O que então devemos fazer? Joel diz: Clamem ao Senhor (14). A palavra hebraica traz o sentido de 'em alto e bom som' .²² Por meio de Oséias, Deus disse a respeito de seu povo:
Eles não clamam a mim do fundo do coração
quando gemem orando em suas camas.
Ajuntam-se por causa do trigo e do vinho,
mas se afastam de mim (Oséias 7:14).
Aqui está o cerne da questão: quando estamos diante de uma amarga e total desolação, nossa reação imediata não é clamar a Deus. É mais fácil e mais comum nos entregar a nós mesmos (para “lamentar em nossas camas”) e descarregar nos outros, particularmente naqueles mais próximos a nós. Este tipo de comportamento mostra quão rebeldes, ou no mínimo auto-suficientes, podemos nos tornar mesmo nos momentos em que sabemos que mais precisamos d’Ele.
O tipo de clamor que Joel defende é diferente. Está mais próximo da oração endossada por Jesus em sua parábola da viúva inoportuna:
Ele disse: “Em certa cidade havia um juiz que não temia a Deus nem se importava com os homens. E havia naquela cidade uma viúva que se dirigia continuamente a ele, suplicando-lhe: ‘Faze-me justiça contra o meu adversário’.
“Por algum tempo ele se recusou. Mas finalmente disse a si mesmo: ‘Embora eu não tema a Deus e nem me importe com os homens, esta viúva está me aborrecendo; vou fazer-lhe justiça para que ela não venha mais me importunar’’”.
E o Senhor continuou: “Ouçam o que diz o juiz injusto. Acaso Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele dia e noite? Continuará fazendo-os esperar? Eu digo a vocês: Ele lhes fará justiça e depressa. Contudo, quando o Filho do homem vier, encontrará fé na terra?” (Lc. 18,2-8).
É fato que os problemas têm o hábito de devorar a fé em Deus, em vez de nutrir. A orientação de Joel, de fato, conclama o povo para descartar qualquer vestígio de orgulho, auto-suficiência, raiva ou rebeldia para clamar a Deus. Ao contrário do juiz da parábola, Deus não precisa ser xingado e certamente não se sente importunado, muito menos obrigado, quando clamamos a Ele. No entanto, Ele olha para o coração e observa se nosso clamor vem de fato do coração. Ele pode farejar qualquer auto-suficiência residual, e até mesmo nossa rebeldia.
Quando Jonas profetizou que o desastre atingiria a cidade de Nínive, o rei foi o primeiro a agir com um decreto público: Que nenhum homem ou animal, bois ou ovelhas, provar coisa alguma; não comam nem bebam! Cubram-se de pano de saco, homens e animais. E todos clamem a Deus com todas as suas forças.” (Jonas 3:7-8). Em seu decreto, o rei pagão de Nínive repete as instruções de Joel aos sacerdotes em Jerusalém como líderes espirituais da nação; o jejum e pano de saco deveriam expressar externamente a seriedade de seus corações. O pano de saco sobre os animais acrescenta um toque cômico, quase ecológico.
A combinação de ações externas que expressam o estado interno de nossos corações é importante. Uma sem a outra é insuficiente, especialmente no contexto de uma comunidade e de uma nação in extremis. As culturas orientais e do Oriente Médio acham essa “união” mais fácil de manter do que os povos ocidentais, especialmente os anglo-saxões e os europeus. Aqueles que sentem a dor, mas nunca permitem que ela saia, permanecem isolados e presos no próprio sofrimento. Mas, igualmente, expressões públicas superficiais de dor não ajudam ninguém e não enganam a Deus.
Desta forma, Joel instrui os sacerdotes (note-se, não as autoridades civis) a dar uma pista ao povo, primeiro por seu próprio comportamento e depois convocando a nação (todos os habitantes da terra) a observar uma assembleia sagrada (14). Todos deveriam se reunir no templo para este fim. Isto exigiria a cessação de todas as atividades normais, assim como de todos os alimentos. Os anciãos são mencionados especificamente por causa da influência que tinham na comunidade. Há pelo uma sugestão aqui de que há momentos de crise nacional em que os líderes espirituais devem tomar a iniciativa de convocar os líderes políticos e outros líderes a clamar a Deus.
O pedido para Santificar um jejum será retomado em maiores detalhes posteriormente (2: 12-17), quando examinaremos mais detalhadamente seu significado. Aqui, serve para enfatizar a necessidade de estar todos juntos em um lugar (a casa do Senhor) para clamar a Deus. Provavelmente está previsto um dia de jejum, sem as distrações do preparo, consumo e limpeza dos alimentos e sem os cuidados e responsabilidades do trabalho. O jejum, além de qualquer outra coisa, aguça a sensibilidade espiritual. Assembléias sagradas eram parte integrante dos grandes festivais do povo:²³ a convocação de uma assembléia solene em tal ocasião, quando as festividades eram claramente impossíveis, indica (a Deus e a todos) que aquelas eram circunstâncias únicas - estamos aqui não para celebrar, mas para clamar a Deus.
A direção do clamor é crucial. A palavra de Deus através de Zacarias, uma pergunta significativa é colocada ao povo e aos sacerdotes: “Quando vocês jejuaram no quinto e no sétimo meses durante os últimos setenta anos, foi de fato para mim que jejuaram?" (Zc. 7:5). A pura repetição de um dia de jejum duas vezes por ano durante setenta anos poderia muito bem ter afastado o foco do clamor a Deus. Joel está convocando um dia exclusivo dirigido a Deus.
O próprio profeta dá o exemplo para seu povo: A Ti, Senhor, eu clamo (19) - outra forma de demonstrar suas qualidades de liderança na crise nacional, nunca exigindo de alguém (ou de todos) o que ele não está preparado para fazer a si mesmo. Provavelmente há uma farpa em seus comentários, porque sua última palavra é: Até os animais do campo clamam a ti (20). A sugestão, nada velada, é que os animais irracionais sabem o que fazer diante de uma catástrofe - e também sabem para onde dirigir seus gritos. Mas o que dizer dos seres humanos? E quanto ao povo de Deus? Clamamos a Deus? Se não, por que não? As palavras de Joel dão um significado totalmente novo ao rugido de um leão faminto ou o urro de um elefante enlutado por suas crias.
6. A urgência (1:15)
Joel tem mais uma perspectiva crucial e determinante a considerar:
Ah! Aquele dia!
Sim, o Dia do Senhor está próximo;
como destruição poderosa da parte do Todo-poderoso,
ele virá (15).
O Dia do Senhor é a principal mensagem de Joel. É o fio condutor de todo o livro; é o fio condutor para cada seção do livro. Tudo que foi ou será dito por Joel sobre o impacto da invasão de gafanhotos, está na perspectiva deste grande Dia do Senhor. Voltaremos a este tema várias vezes.²ⴠPor hora é importante desenvolver uma compreensão básica de seu significado e significado, tanto no ensino geral da Bíblia como no conteúdo específico da mensagem de Joel.
A abordagem de Joel se resume em sua palavra introdutória, Ah! Aquele dia! [heb. ×Ö²×”Ö¸Ö–×”Ö¼ ’ă-hÄh] É uma palavra que reflete o som de uma pessoa que está sem fôlego - aquela distinta liberação de ar que expressa dor e espanto: causa extrema angústia porque nos surpreende completamente. Quando Joel apresenta o Dia do Senhor com essa palavra, ele sabe que está prestes a causar ao povo de Deus uma combinação de dor profunda e grande espanto: O Dia do Senhor está próximo - Ah! Aquele dia!
Em contraste com o que o povo de Deus no tempo de Joel poderia ter acreditado sobre o Dia do Senhor - um dia de vitória e retribuição - o profeta diz que trata-se de um dia de juízo do Todo-Poderoso, juízo sobre eles próprios.
Eles sabiam que o Dia do Senhor significava a destruição dos inimigos de Deus: essa nova compreensão era surpreendente e angustiante em igual medida.
Se Joel tiver sido um dos primeiros profetas, teria concordado com Amós, que usou sua habitual rusticidade para declarar:
Ai de vocês que anseiam
pelo Dia do Senhor!
O que pensam vocês do Dia do Senhor?
Será dia de trevas, não de luz.
Será como se um homem fugisse de um leão
e encontrasse um urso;
como alguém que entrasse em sua casa
e, encostando a mão na parede,
fosse picado por uma serpente.
O Dia do Senhor será de trevas e não de luz.
Uma escuridão total, sem um raio de claridade (Am 5:18-20).
Se Joel tiver sido um profeta posterior, teria endossado palavras semelhantes de Malaquias (4:1).
O entendimento popular do Dia do Senhor era basicamente em termos de Deus Todo-Poderoso celebrando sua soberania através da erradicação completa de todas as forças, nações e indivíduos que se opõem a Ele. Essa percepção estava enraizada em uma noção comum de que um comandante digno daquele nome poderia derrotar seu inimigo em um único dia.
Quando o Senhor decidisse fazer isso, seus inimigos simplesmente capitulariam e desapareceriam - constituindo então, 'o Dia do Senhor'.
A partir deste entendimento, os contemporâneos de Joel teriam visto a praga dos gafanhotos como a chegada deste tia para os inimigos de Deus, enquanto o Senhor agiria em nome de seu povo para libertá-los. Esta convicção pode muito bem ter sido seriamente minada pelo impacto da catástrofe: como destruição poderosa... ele virá... Não, diz Joel, não estamos esperando pelo Dia do Senhor; esta catástrofe é uma evidência de que o Dia do Senhor já está sobre nós. Este também não é o fim. O pior ainda está por vir.
É difícil apreciar o quão devastadora esta mensagem teria sido para um povo já desmoralizado. O Dia do Senhor vem, não como um dia de libertação, mas como um dia de destruição. O texto hebraico tem um poderoso jogo de palavras na última frase do versículo 15; a palavra para a destruição é Å¡ÅḠenquanto a palavra para Todo Poderoso é Å¡adday. Diferentes tentativas foram feitas para capturar este jogo de palavras, tais como “destruição poderosa [nvi]”, “força destruidora [axxi]”, “destruição que vem do Deus Todo-poderoso [nbv].²âµ
O povo tinha, de fato, se apropriado do Dia do Senhor, interpretando seu significado para seu próprio benefício e ignorado seu significado exato e único, a saber, que o Dia do Senhor é o Dia DEle: 'Ele escreveu o script e irá encená-lo.'²â¶
Qual é então o script bíblico para o Dia do Senhor? Suas origens são obscuras, especialmente por ser tão difícil datar a profecia de Joel. O Dia do Senhor é um tema tradicional e os profetas usaram um conjunto de frases para descrevê-lo. Se Joel tivesse precedido Isaías, poderia ter cunhado a fraseologia.’²ⷠA referência datável mais antiga é a passagem de Amós (5:18-20) já mencionada (século oitavo ac), época em que o conceito já estava tão bem estabelecido que Amós poderia introduzi-lo sem ter que oferecer muita explicação: de fato, o povo ansiava por ele.²â¸
É útil citar três passagens na íntegra neste ponto:
Entre no meio das rochas,
esconda-se no pó por causa do terror que vem do Senhor
e do esplendor da sua majestade!
Os olhos do arrogante serão humilhados
e o orgulho dos homens será abatido;
somente o Senhor será exaltado naquele dia.
O Senhor dos Exércitos tem um dia reservado
para todos os orgulhosos e altivos,
para tudo o que é exaltado,
para que eles sejam humilhados;
para todos os cedros do Líbano,
altos e altivos,
e todos os carvalhos de Basã;
para todos os montes elevados
e todas as colinas altas;
para toda torre imponente
e todo muro fortificado;
para todo navio mercante
e todo barco de luxo.
A arrogância dos homens será abatida,
e o seu orgulho será humilhado.
Somente o Senhor será exaltado naquele dia,
e os ídolos desaparecerão por completo.
Os homens fugirão para as cavernas das rochas
e para os buracos da terra
por causa do terror que vem do Senhor
e do esplendor da sua majestade
quando ele se levantar para sacudir a terra (Is. 2: 10-19).
Chorem, pois o Dia do Senhor está perto;
virá como destruição da parte do Todo-poderoso.
Por isso, todas as mãos ficarão trêmulas,
o coração de todos os homens se derreterá.
Ficarão apavorados,
dores e aflições os dominarão;
eles se contorcerão como a mulher
em trabalho de parto.
Olharão chocados uns para os outros,
com os rostos em fogo.
Vejam! O Dia do Senhor está perto,
dia cruel, de ira e grande furor,
para devastar a terra
e destruir os seus pecadores.
As estrelas do céu e as suas constelações
não mostrarão a sua luz.
O sol nascente escurecerá,
e a lua não fará brilhar a sua luz.
Castigarei o mundo por causa da sua maldade,
os ímpios pela sua iniquidade.
Darei fim à arrogância dos altivos
e humilharei o orgulho dos cruéis.
Tornarei o homem mais escasso do que o ouro puro,
mais raro do que o ouro de Ofir.
Por isso farei o céu tremer,
e a terra se moverá do seu lugar
diante da ira do Senhor dos Exércitos
no dia do furor da sua ira.
Como a gazela perseguida,
como a ovelha que ninguém recolhe,
cada um voltará para o seu povo,
cada um fugirá para a sua terra.
Todo o que for capturado será traspassado;
todos os que forem apanhados cairão à espada.
Seus bebês serão despedaçados diante dos seus olhos;
suas casas serão saqueadas e suas mulheres, violentadas (Is. 13: 6-16).
Assim diz o Soberano, o Senhor: “Eis a desgraça! Uma desgraça jamais imaginada vem aí. Chegou o fim! Chegou o fim! Ele se insurgiu contra você. O fim chegou! A condenação chegou sobre você que habita no país. Chegou a hora, o dia está próximo; há pânico, e não alegria, sobre os montes. Estou prestes a derramar a minha ira sobre você e esgotar a minha indignação contra você; eu a julgarei de acordo com a sua conduta e a retribuirei por todas as suas práticas repugnantes. Não olharei com piedade para você nem a pouparei; eu a retribuirei de acordo com todas as práticas repugnantes que há no seu meio. Então você saberá que é o Senhor que desfere o golpe.
“Eis o dia! Já chegou! A condenação irrompeu, a vara brotou, a arrogância floresceu! A violência tomou a forma de uma vara para castigar a maldade; ninguém do povo será deixado, ninguém daquela multidão, como também nenhuma riqueza, nada que tenha algum valor. Chegou a hora, o dia chegou. Que o comprador não se regozije nem o vendedor se entristeça, pois a ira está sobre toda a multidão. Nenhum vendedor viverá o suficiente para recuperar a terra que vendeu, mesmo que viva muito tempo, pois a visão acerca de toda a multidão não voltará atrás. Por causa de sua iniquidade, nenhuma vida humana será preservada (Ez. 7:5-13).
Estas passagens exemplificam a mensagem dos profetas do Antigo Testamento sobre o Dia do Senhor. Freqüentemente havia falsos profetas,²⹠que só proclamavam esperança ao povo de Deus, esperança de que o Dia do Senhor seria um dia de luz e alegria. É verdade que a glória do Senhor também deveria ser revelada naquele dia, mas não era apropriado nem exato descrever tal revelação como alegria e paz isoladas. Aqueles que anunciaram a palavra do Senhor ao povo invariavelmente enfatizaram que este dia seria - para as cidades e nações que se opusessem a ele - um dia de contas por todo pecado - quem quer que o tivesse cometido. O rosto do Senhor se revelaria, para sempre, contra o orgulho, a arrogância e a altivez humanos. Eles poderiam viver despreocupadamente agora; mas o dia de Deus estava chegando e seria um dia ‘contra’ toda expressão e todo emblema do orgulho humano.
Joel estava na vanguarda deste movimento profético. No contexto da praga dos gafanhotos, ele está impondo uma questão fundamental: esta é a mão de Deus? Para qualquer israelita preso a uma única interpretação dos termos do pacto e os acontecimentos contemporâneos, tal pensamento era impensável, até mesmo blasfemo. Mas para Joel, a ausência de grãos, vinho e azeite, e a ausência de alegria, adoração e louvor do santuário, juntos diziam apenas uma coisa: o Dia do Senhor está próximo - e ficará ainda mais escuro. Ainda não vimos tudo.
Não poderia, então, haver incentivo mais poderoso para clamar a Deus. Aquele desastre pode ser o prenúncio de desastres ainda piores. Nem vale a pena pensar, mas, quando a palavra do Senhor se torna realidade nesses termos, 'quem profetizará?’ (Am 3: 8).
Antes de passarmos ao capítulo 2 e examinar melhor o Dia do Senhor em Joel, há uma outra questão a ser abordada diretamente: Deus enviou os gafanhotos? Até o momento, neste estudo, nós temos este desafio. As palavras em 2:25 são determinantes para responder à esta pergunta-chave. Sim, Deus enviou os gafanhotos. Nesse versículo Ele os descreve como meu grande exército, que enviei contra vocês. Ainda temos, é claro, que trabalhar o significado de tal afirmação, tanto para o tempo de Joel como para nós hoje.³â°
No entanto, uma resposta tão simples e chocante é consistente com um trecho de Amós:
Foi isto que o Senhor, o Soberano, me mostrou: ele estava preparando enxames de gafanhotos depois da colheita do rei, justo quando brotava a segunda safra. Depois que eles devoraram todas as plantas dos campos, eu clamei:
“Senhor Soberano, perdoa!
Como Jacó poderá sobreviver?
Ele é tão pequeno!”
Então o Senhor arrependeu-se e declarou:
“Isso não acontecerá” (Am 7:1-3).
A palavra traduzida como 'estava preparando' [yÅwá¹£êr] nesta passagem é vívida. A ação de formar um enxame de gafanhotos é 'algo que só Deus pode fazer'.3 'Amos era fazendeiro, por isso sua linguagem é particularmente interessante. No início do livro, ele usou a mesma palavra em um sentido criacional:
Aquele que forma [yÅwá¹£êr] os montes,
cria o vento e revela os seus pensamentos ao homem,
aquele que transforma a alvorada em trevas,
e pisa as montanhas da terra;
Senhor, Deus dos Exércitos, é o seu nome (Am 4:13).
É, também, a mesma palavra no relato do Gênesis da criação: ‘Então o Senhor Deus formou [yÅwá¹£êr] o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente.’ (Gn 2:7).
Ver e adorar o Senhor Deus como esse tipo de criador soberano e todo-poderoso é, talvez, ir contra muitos pensamentos contemporâneos; mas tem o mérito de resgatar passagens particulares, tanto do Antigo como do Novo Testamento,³² das ruínas do esquecimento. Algumas frases impressionantes de Isaías entram nesta categoria:
Eu sou o Senhor,
e não há nenhum outro.
Eu formo a luz e crio as trevas,
promovo a paz e causo a desgraça;
eu, o Senhor, faço todas essas coisas (Is. 45:6-7).
O mesmo capítulo continua imediatamente com um desafio aos mortais que ousam questionar a Deus sobre 'Ai daquele que contende com seu Criador, daquele que não passa de um caco entre os cacos no chão. Acaso o barro pode dizer ao oleiro: ‘O que você está fazendo?’ Será que a obra que você faz pode dizer: ‘Você não tem mãos?’'' (Is. 45: 9 )
Joel exorta seus contemporâneos a clamar ao Senhor. Clamar ao Senhor, que é o único Deus. Clamar por causa da impotência diante da tragédia. Clamar pela agonia e desolação. Clamar Àquele que formou todas as coisas, inclusive os gafanhotos; que os formou a partir do pó; e os formou para Si mesmo. Clamar com o coração pronto para ouvir e não para discutir ou justificar. Clamar em humilde admissão que não há a quem recorrer e que está totalmente dependente da misericórdia de Deus.
Essa é a implicação prática de viver em intimidade com Deus como a primeira causa de tudo o que é, tem sido e será. Não que causas secundárias sejam desconhecidas para os autores bíblicos como Joel, mas elas nos forçam a voltar ao próprio Deus como Senhor soberano. Isso significa que, quando encontramos circunstâncias como as enfrentadas pelo povo da época de Joel, recorremos a Deus e clamamos a Ele por misericórdia e ajuda em nosso tempo de necessidade.
¹ⶠSee Nu. 28-29. ¹ⷠSee Ex. 29:38-46. ¹⸠See Ez. 7:25-27.
¹⹠Hubbard, p. 29.
²ⰠHubbard, p. 30.
²¹ A. Noordtzij, Leviticus, Bible Student’s Commentary (Zondervan, 1982), p. 48.
²² Hubbard, p. 49.
²³ Cf. Lv. 23:36; Nu. 29:35; Dt. 16:8.
²ⴠSee comments on 2:1-2, 11, 31; 3:14.
²ⵠAllen, p. 59; Bewer, quoted by Dillard; Dillard, p. 266; Patterson (EBC), p. 243.
²ⶠHubbard, p. 37. ²ⷠFinley, pp. 35-36.
²⸠Existem 28 referências em Isaías. A frase também é encontrada em Jeremias (46:10), Ezequiel (7,5ss .; 30: 2), Sofonias (1: 7-18), Obadias (15), Zacarias (9:14; 14: 1-7) e Malaquias (3: 2, 17; 4: 1-5).
²⹠See Jr 14:13-18; 23:23-40; 27:8-22; Ez. 13:1-23; Mq 3:5-12.
³ⰠVeja também Am 4:9:
castiguei-os com pragas e ferrugem.
Muitas vezes castiguei os seus jardins e as suas vinhas,
Gafanhotos devoraram as suas figueiras e as suas oliveiras,
e mesmo assim vocês não se voltaram para mim”,
declara o Senhor.
³³ Finley, p. 282.
³² See Acts 2:23; Ap 8:7ff.
Joel 2:1-17
2. Retornem para Deus
Clamar a Deus não é o mesmo que Voltar para Deus. Determinado a ser um profeta fiel e não falso para o povo, Joel anunciou seu primeiro chamado - o chamado para seguir seu exemplo (e o dos animais selvagens) para clamar ao Senhor. Esse é um primeiro passo necessário. Na primeira parte do capítulo 2, ele passa de outra descrição surpreendente da catástrofe nacional para uma mensagem clara do próprio Senhor (12-13). Após clamar ao Senhor, era preciso ouvi-Lo. Agora Ele fala - e a mensagem é: voltem-se para mim (2:12). O Senhor está procurando um povo que não só clame a Ele, mas que volte para Ele com todo o seu coração.
1. O futuro obscuro (2:1-11)
Nos primeiros onze versículos somos informados sobre os acontecimentos na terra (2b-11a), acompanhada de ambos os lados por descrições do Dia do Senhor (1-2a, 11b).¹ Enquanto o profeta observa a devastação na terra, está convencido de que o Dia do Senhor está chegando e está bem próximo (1). Enquanto observa enxames de gafanhotos cavalgando sobre o vento e obscurecendo o sol (2: Como a alva por sobre os montes, assim se difunde um povo grande e poderoso; niv ‘exército’), o profeta declara que o Dia do Senhor será um dia de trevas e escuridão, um dia de nuvens espessas! (2).
Em outras palavras, Joel vê o dia do Senhor como um marco na vida das pessoas para a qual ele fornece muitas advertências e antecipações substanciais. Deus está trabalhando de todas as maneiras, o que é tanto premonitório como prefigurador do Dia do Senhor. Neste sentido, é verdade dizer que o Dia do Senhor, para Joel, se aplicava ao que estava acontecendo naqueles dias, ao que iria acontecer em breve e ao que eventualmente aconteceria quando Deus convocasse as nações para prestar contas.
Neste momento do texto, os comentaristas têm uma grande escolha a fazer. Eles podem ler 2:1-11 como um relato de uma invasão militar da qual os gafanhotos do capítulo 1 são precursores; ou podem lê-lo como um relato mais dramático, que por si só é um prenúncio do Dia. Uma terceira opção seria ler todo o trabalho como um conjunto de descrições figurativas da invasão militar” (Hubbard, p. 53 nota).
Esta perspectiva tripla se torna mais evidente à medida que seguirmos para o fim da profecia. De fato, ela é válida tanto para o relato bíblico do Dia do Senhor, no Novo e no Antigo Testamentos. Todas as maneiras pelas quais Deus se age significativamente em nossas vidas pode ser chamada de Dia do Senhor. Grandes eventos também ocorrem - talvez mais no progresso das cidades, nações e impérios do que na experiência dos indivíduos - como momentos decisivos, nos quais o juízo de Deus sobre um determinado país, cidade ou sistema se torna claro. Este também é Dia do Senhor e é invariavelmente um momento de julgamento.
Mas há um grande dia, um dia que estabelecido por Deus, e que é conhecido somente por Ele, quando o mundo inteiro será convocado diante de seu trono. Ele então decidirá sobre o destino eterno de cada pessoa, com base nas escolhas que cada um fez em relação a Ele e sua Palavra. O Antigo Testamento é eloqüente em sua descrição deste grande momento, mas o Novo Testamento o leva mais longe, especialmente ao relacioná-lo ao retorno do Senhor Jesus Cristo. A expressão escatológica veterotestamentária “o Dia do Senhor” é apropriada por Paulo e transformada em uma afirmação cristológica. Ainda é “o Dia do Senhor”, mas o Senhor não é outro senão Jesus Cristo’².
‘O Dia do Senhor é qualquer dia em que Deus pisará na história para fazer uma obra especial, seja julgamento ou libertação.”³ Para Joel, a praga dos gafanhotos é um indicativo inexorável deste dia para Israel. A primeira coisa a fazer é soar o alarme: Toquem a trombeta em Sião (1).
Ao ouvir o noticiário da BBC recentemente, descobri que no exército britânico há trinta e dois diferentes toques de trombeta (para a cavalaria, e para a infantaria). Cada chamada é distinta e indica uma mensagem diferente, prontamente identificada pelas tropas, desde o Reveille até o Último Posto. Não era muito diferente entre o povo de Israel. Em tempos anteriores, o Senhor havia dado instruções a Moisés sobre ‘duas cornetas de prata’: ‘para reunir a comunidade e para dar aos acampamentos o sinal para partirem’. Instruções mais específicas são dadas dentro destas duas amplas categorias, algumas relacionadas com o soar de uma só trombeta e algumas relacionadas com o soar de um alarme. Um alarme deveria ser tocado sempre que necessário”: apenas alguns toques eram chamados de alarme e tinham a ver com o início do movimento. Por exemplo, ‘Quando em sua terra vocês entrarem em guerra contra um adversário que os esteja oprimindo, toquem as cornetas; e o Senhor, o Deus de vocês, se lembrará de vocês e os libertará dos seus inimigos’ (ver Nu. 10:1-10). Este é o chamado da trombeta de Deus, através de Joel, tocando o alarme no Monte Sião. Há guerra na terra. O adversário invadiu e está causando confusão. Todo o povo deve ser avisado. O próprio Deus precisa ser chamado para agir e salvar seu povo.
A revelação mais chocante em Joel 2 é que o povo está lutando contra o próprio Deus: O Senhor levanta a sua voz à frente do seu exército. (11). A trombeta é tocada para anunciar a situação desastrosa ao próprio Deus e para invocar seu poder salvador; então O próprio Deus aparece como comandante das forças que estão causando estragos na terra. Isto é seguido por outra surpresa: Deus fala ao povo em tons de reconciliação, suplicando-lhes que retornem a Ele. Isto, por sua vez, compele Joel a emitir um segundo toque de trombeta (15). Desta vez não é um toque de alarme, porque a situação de guerra foi evitada pela iniciativa pacificadora de Deus que acaba de ser registrada. Portanto, este é um toque para reunir o povo. A situação é desesperadora.
É dia de trevas e de escuridão,
dia de nuvens e negridão.
Assim como a luz da aurora
se estende pelos montes,
um grande e poderoso exército se aproxima,
como nunca antes se viu
nem jamais se verá nas gerações futuras (2).
Aquele era realmente o momento de soar o alarme. Nada poderia se equiparar ao tamanho e terror daquela invasão: aquela era ‘a maior catástrofe de todas’.
Um dia de trevas e escuridão tão intensas exige uma trombeta longa e estrondosa: Que todos os habitantes da terra tremam (2). Ninguém escapará e, portanto, todos devem ouvir o alarme. Joel se vê como um vigia nas muralhas da cidade, colocado ali de pé pelo Senhor com instruções claras para avisar o povo de um desastre iminente. O profeta, junto ao meu Deus, é a sentinela que vigia Efraim”. (Os. 9:8).
A igreja de Deus como um todo tem a responsabilidade de agir como vigia. Cada cristão, individualmente, deve cumprir essa responsabilidade em sua própria esfera de influência - no trabalho, na escola, na comunidade, nos corredores do poder. É uma vocação difícil e muitas vezes solitária. Mas, nas palavras do ex-presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda: “O que uma nação precisa não é tanto de um governante cristão, mas de um profeta cristão no palácio” - para ser vigia do governante, a quem o governante pode ir com a pergunta feita ao profeta Isaías: “Guarda, quanto ainda falta para acabar a noite? Guarda, quanto falta para acabar a noite? (Is. 21:11). E certamente é uma pergunta que vale a pena fazer repetidas vezes.
Tais vigilantes tendem a ter carreiras curtas e fins abruptos, como João Batista, Estêvão e o próprio Jesus. É uma tarefa perigosa tocar a trombeta em qualquer lugar, quando um país, uma cidade, uma empresa, uma comunidade está se dirigindo para o abismo. Em termos meramente seculares, a denúncia se tornou uma grande preocupação - principalmente porque os padrões de comportamento degeneraram a ponto de a integridade e a confiança terem sido seriamente corroídas. Enquanto escrevo, o Parlamento em Westminster está a ponto de aprovar nova legislação para proteger aqueles que denunciam práticas antiéticas, para que não sejam penalizados. Não existe tal garantia para os vigias que tocam a trombeta para o povo de Deus; eles recebem ordens de outro rei e se apresentarão perante uma corte superior - como Ezequiel, Sofoniasâ´ e Joel.âµ
É quando chegamos ao livro do Apocalipse de João que o significado escatológico completo dos sons de trombeta se torna claro. Uma passagem específica tem relevância direta para a exegese de Joel sobre o significado da praga dos gafanhotos. Ela também nos ajuda a entender seu ensinamento sobre o Dia do Senhor e a forma como se conjuga com o resto do material bíblico sobre o tema.
O quinto anjo tocou a sua trombeta, e vi uma estrela que havia caído do céu sobre a terra. À estrela foi dada a chave do poço do Abismo. Quando ela abriu o Abismo, subiu dele fumaça como a de uma gigantesca fornalha. O sol e o céu escureceram com a fumaça que saía do Abismo. Da fumaça saíram gafanhotos que vieram sobre a terra, e lhes foi dado poder como o dos escorpiões da terra. Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa. Não lhes foi dado poder para matá-los, mas sim para causar-lhes tormento durante cinco meses. A agonia que eles sofreram era como a da picada do escorpião. Naqueles dias os homens procurarão a morte, mas não a encontrarão; desejarão morrer, mas a morte fugirá deles.
Os gafanhotos pareciam cavalos preparados para a batalha. Tinham sobre a cabeça algo como coroas de ouro, e o rosto deles parecia rosto humano. Os cabelos deles eram como os de mulher e os dentes como os de leão. Tinham couraças como couraças de ferro, e o som das suas asas era como o barulho de muitos cavalos e carruagens correndo para a batalha. Tinham caudas e ferrões como de escorpiões e na cauda tinham poder para causar tormento aos homens durante cinco meses. Tinham um rei sobre eles, o anjo do Abismo, cujo nome, em hebraico, é Abadom e, em grego, Apoliom (Apoc. 9:7-11).
As semelhanças com a descrição de Joel são assustadoras e bastante assustadoras. Os efeitos do mal são profundos, poderosos e prolongados. Eles não correm apenas para a areia, mas trazem uma indescritível miséria e agonia. Por trás de todo o mal, além disso, está uma mente, orquestrando suas forças para a máxima destruição. Não obstante, há tanto uma autoridade maior quanto um fim último, quando o próprio Deus dirá: “Basta, e não mais”. O mal terá seu dia, mas o dia do Senhor é o último dia e o grande dia.
Joel vive e profetiza antes da vinda de Cristo. Ele vê o Dia do Senhor como terrível (11). Ele não consegue ver como alguém poderia suportar tal dia, muito menos ansiar por isso. Para ele, parece uma perspectiva irremediavelmente assustadora, pressagiada por esses insetos agentes que invadem como um ladrão (9).
Diante deles a terra treme,
os céus estremecem,
o sol e a lua escurecem
e as estrelas param de brilhar (10).
Todo o universo e a própria natureza lamentam’â¶
A voz do Senhor será ouvida, dando ordens a suas tropas:
O Senhor levanta a sua voz
à frente do seu exército.
Como é grande o seu exército!
Como são poderosos os que obedecem à sua ordem! (11).
Os gafanhotos são algozes dos propósitos e mandamentos de Deus. A terra está devastada. As pessoas estão arrasadas. O profeta está arrasado. Este é (quase todo) o Dia do Senhor: quem pode suportá-lo? (11) Ninguém vai escapar.
Ou podem? Alguém poderia escapar do Dia do Senhor? Alguém poderia até mesmo suportar o Dia do Senhor?
Mas o Senhor é o Deus verdadeiro; ele é o Deus vivo; o rei eterno.
Quando ele se ira, a terra treme; as nações não podem suportar o seu furor (Jr 10:10).
2. Um lampejo de esperança (2:12-17)
É difícil conceber uma situação mais sombria e sem esperança do que a enfrentada por Joel e seus contemporâneos. É neste desastre tremendo que o Senhor fala:
“Agora, porém”, declara o Senhor,
“voltem-se para mim de todo o coração,
com jejum, lamento e pranto.”
Rasguem o coração e não as vestes.
Voltem-se para o Senhor, o seu Deus,
pois ele é misericordioso e compassivo,
muito paciente e cheio de amor;
arrepende-se e não envia a desgraça (2:12-13).
No entanto, mesmo agora ... Nunca é tarde demais ou escuro demais para Deus anunciar uma palavra em nossa situação. Aqui encontramos o mesmo Deus que, como comandante do exército de gafanhotos devastando a terra, emitiu ordens para as tropas marcharem em uma missão de destruição, tomando agora a iniciativa de emitir um convite ao povo para voltar para ele.
A menos que Deus seja responsabilizado pela destruição da terra, o povo não pode ter nenhuma garantia de que se voltar para Ele possa ter qualquer resultado. Se o cenário for visto como casual, pura ‘falta de sorte’, a falta de sentido no centro do universo é terrivelmente acentuada. Se Deus não é considerado responsável, significa que alguma outra força ou ser é - seja o destino ou a Mãe Natureza ou Baal ou alguma outra divindade. Orar a Deus torna-se então um exercício de desejo piedoso, baseado na esperança de que ele esteja consciente da situação, preocupado com ela, disposto a agir e capaz de superar as forças responsáveis. A evidência, se Deus não for considerado responsável por tais eventos, é que Deus não estaria necessariamente interessado em qualquer uma destas coisas.
É bem diferente quando recorremos àquele que está encarregado de tudo e é, portanto, responsável pelo que aconteceu, especialmente se tivermos boas razões para acreditar que ele está aberto a tal abordagem. Na situação enfrentada por Joel e seus contemporâneos, eles receberam o próprio convite de Deus para voltar a ele. A própria palavra ‘voltar’ lembra-lhes que eles já percorreram este caminho antes e, portanto, sabem como Deus é. Eles sabiam o que é estar perto dele, em vez de estar longe - como eles claramente estão agora. Ainda mais do que isso, eles sabiam que tipo de Deus ele é por experiência prévia - um fato que Joel se apressa para lembrá-los (13).â·
Deus não está a procura de atos específicos de expiação, seja em sacrifícios rituais ou boas ações. Ele quer seu povo de volta a ele, ao seu lado, desfrutando de sua presença, aquecendo-se a seu favor. Tudo o mais será assim. Ele não quer, nesta fase, nem mesmo entrar em discussão ou apontar os motivos para o problema. Ele quer que eles voltem a ele.
Esta é a história, em termos do Novo Testamento, do filho pródigo - ou, melhor, do pai pródigo.⸠Este é o pai-coração de Deus: por ti o órfão alcançará misericórdia” (Os 14:3). O Senhor nunca mudou: daquela noite no jardim do Éden, quando chamou Adão: “Onde estás? (Gn 3,9), até o convite final do livro do Apocalipse, ‘O Espírito e a Noiva dizem: ‘Vem’’ (Ap 22,17). O convite é o mesmo: volte para mim.
O Senhor deseja que Joel e todas as pessoas entendam que este retorno deve ser de todo o coração (12), porque ele não aceitará nada menos do que esse relacionamento sincero. Ele não tolerará rivais. O Senhor é como um marido ciumento. Ele os tomou para serem sua noiva e deseja seus corações. Ele anseia que eles voltem com todo o coração; mas também deixa claro que eles devem rasgar seus corações (13); ele quer um coração inteiro e quer um coração partido. Estas duas qualidades, o coração inteiro e o coração partido, de fato descrevem o coração de Deus por seu povo, para todos realmente criados à sua imagem. Ele quer que nosso coração seja como seu coração, algo que havia encontrado em Davi, “um homem segundo meu próprio coração”.¹â°
Qual é, então, o significado das palavras jejum, com choro, e pranto (12)? Elas contradizem a instrução do v.13? Existe lugar para atos externos de contrição? Se há, quais são eles? A resposta curta é que, quando o coração está devidamente quebrado, os atos externos são inteiramente apropriados. O problema vem quando as pessoas tentam ‘conjugar’ ações externas sem uma contrição correspondente. Este é o dilema de todos os atos regulares de adoração, litúrgicos ou não litúrgicos. Qualquer ação externa pode degenerar em rotina ou cerimonial, não refletindo nada do interior e, portanto, anátema a Deus:
Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes (Am 5:21).
As ações externas ordenadas por Deus - jejum, pranto e luto - têm tudo a ver com a morte. Elas descrevem ações normalmente associadas ao luto, previsto ou vivido.¹¹ Como vimos, Deus está preocupado com a morte de um relacionamento, sua relação de coração com seu povo. Morreu uma morte. Ele está com o coração partido. Ele quer que seu povo reconheça que esse relacionamento está morto, deixe o impacto disso partir seus corações, e que retornem a ele. O jejum, o choro e o luto são inteiramente adequados em tal situação, ao passo que simplesmente rasgar a roupa em um espetáculo externo de tristeza seria totalmente inapropriado.
Parte da hesitação sobre as demonstrações externas de arrependimento (e regozijo, de fato) pode muitas vezes ser atribuída à nossa cultura e educação, e não a quaisquer sensibilidades espirituais ou bíblicas. Somente uma pessoa emocionalmente embotada pode ficar de coração partido, pois Deus está de coração partido, sobre o relacionamento moribundo ou morto com Deus, e não dá nenhuma indicação externa de que algo possa estar errado. Um dos sinais mais seguros do verdadeiro arrependimento e da obra do Espírito de Deus no coração das pessoas é o choro genuíno.
Esta, então, é a palavra de Deus na situação de Joel. Somente tal palavra pode parar a devastação. Joel ouviu o que o Senhor tem a dizer ao seu povo. Sua resposta é tripla.
a. Garantia pelo profeta (2: 13-14)
Joel capta bem o apelo do Senhor para a nação:
Voltem-se para o Senhor, o seu Deus,
pois ele é misericordioso e compassivo,
muito paciente e cheio de amor;
arrepende-se e não envia a desgraça (13).
Joel sabe que a palavra de uma pessoa depende inteiramente de seu caráter. O mesmo apelo vindo de uma divindade caprichosa e calculista teria sido inútil, senão enganosa. O profeta, portanto, indica ao povo o Deus que faz e mantém a aliança; Deus enfatiza especificamente o relacionamento pessoal entre Ele e seu povo.
Ao descrever como Deus é, Joel elenca as características que o próprio Senhor enfatizou a Moisés no Monte Sinai depois que o povo se voltou contra ele na idolatria do bezerro de ouro:
Então o Senhor desceu na nuvem, permaneceu ali com ele e proclamou o seu nome: o Senhor. 6E passou diante de Moisés, proclamando:
“Senhor, Senhor, Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade, que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pecado. Contudo, não deixa de punir o culpado; castiga os filhos e os netos pelo pecado de seus pais, até a terceira e a quarta gerações (Ex. 34:5-7).
O povo de Israel levou menos de quarenta dias para quebrar a aliança que Deus havia iniciado com eles ao dar-lhes os Dez Mandamentos e comprometer-se a ser o seu Deus e o Deus de seus filhos. O relacionamento poderia ser restaurado? Foi nessa situação que Deus falou com seu povo, afirmando seu 'nome' ou caráter imutável. Desse ponto em diante, nunca mais se poderia duvidar de que Deus não é como os seres humanos. Eles haviam sido infiéis ao pacto; mas ele permaneceu fiel à aliança. Deus não muda.
Em vez de citar a afirmação de Deus a Moisés de que ele “não limpará de forma alguma o culpado”, Joel acrescenta uma frase a esta descrição de Deus: e se arrepende do mal. Esta não é uma frase simples, mas seu significado está enraizado nos acontecimentos que seguiram ao bezerro de ouro,¹² quando Moisés implora ao Senhor que não destrua todo o povo. Como resultado de sua intercessão, o Senhor se arrepende e promete um futuro e uma esperança num relacionamento restaurado, embora com uma expressão um tanto restrita. Moisés estabeleceu assim a eficácia da oração em nosso relacionamento com Deus, particularmente em termos de mover Deus a inclinar-se para o perdão quando tudo pede castigo - 'na ira, lembra-te da misericórdia' (Hab. 3: 2).
Esta é a base da garantia que Joel dá ao povo de que, mesmo agora (12), é oportuno voltar para o Senhor. Quando você sabe que alienou alguém de forma consistente e completa (um pai, um parceiro, um amigo), é difícil acreditar que receberá uma resposta favorável quando finalmente decidir reconstruir as conexões. Joel diz: Volte para o Senhor, seu Deus; você pode confiar nele, mesmo que saiba que não merece a misericórdia dele. Joel assegura que não há nada a perder, tudo a ganhar. Ele é seu Deus e sente forte compaixão por você.¹³
Joel, por sua vez, acredita que Deus tem uma bênção para o povo. Mas ele não tem certeza absoluta: daí a pergunta intrigante, Quem sabe ...? (14). Dois reis do Antigo Testamento usaram esta frase evocativa, cada um quando confrontado com um golpe devastador. O rei da cidade de Nínive ficou tão abalado com a mensagem de Deus através de Jonas, que a cidade seria destruída em quarenta dias, que ordenou um tempo de jejum e arrependimento nacional: ‘Quem sabe, Deus se arrependa e abandone a sua ira, e não sejamos destruídos? (Jn 3,9). Davi, rei de Jerusalém, diante da palavra de Natã de seus pecados de adultério com Betseba e do assassinato de Urias, seguido de uma palavra através do profeta de que o filho de Betseba por ele morreria, disse: ‘Quem sabe? Talvez o Senhor tenha misericórdia de mim e deixe a criança viver? (2Sm 12:22).
Quem sabe? reflete, portanto, um coração contrito e quebrantado. A oração que vem de tal coração, por mais convencida que seja do caráter imutável de Deus, nunca pode ser friamente confiante sobre qualquer pedido em particular. Mesmo o arrependimento de um coração contrito não pode garantir uma resposta positiva de Deus: continuamos inteiramente dependentes de sua graça. Um dos atos de equilíbrio na oração cristã é combinar fé com humildade, pedir com confiança, mas abster-se de insistir no que queremos.
Joel parece visualizar a mão do Senhor levantada contra o povo, à frente das hordas invasoras de seu exército. Se o povo voltar para ele, talvez ele volte, se arrependa, e deixe uma bênção para trás”, ou seja, ele se arrependa, volta e (em vez de deixar mais um rastro de destruição) deixe uma bênção substancial. Esta bênção estaria em nítido contraste com as ‘maldições’ que agora assolam a terra.¹â´
A bênção, à primeira vista, parece trivial: uma oferta de cereal e uma oferta de bebida ao Senhor, seu Deus. Mas, na verdade, é tudo o que o povo deveria ter desejado - tudo o que foi retido no juízo dos gafanhotos: os recursos para restaurar uma expressão diária no templo de sua relação com o Senhor (1: 9,13 )
A bênção da comunhão com Deus é a mais importante que podemos receber: esta é a verdadeira alegria. Ser privado da capacidade de conhecer a Deus e de desfrutá-lo é estar como morto. A esperança de Joel de ser abençoado é, portanto, um eufemismo magistral; mas nos obriga a questionar o que é uma verdadeira bênção para nós. Estamos obcecados pelas bênçãos materiais, a ponto de negligenciar ou desvalorizar da verdadeira bênção espiritual? Será que vemos as bênçãos materiais como mais uma oportunidade para prosseguir com nosso serviço diário a Deus?
b. Assembléia do povo (2:15-16)
A segunda resposta de Joel às palavras do Senhor ao povo é pedir que o povo volte, não um a um, mas todos juntos. Joel pede que a trombeta seja tocada uma segunda vez - não, como antes, para soar o aviso de um invasor está na terra; mas para reunir todo o povo no templo, convocando a congregação.¹ⵠJoel dá oito comandos breves em dois versos. Ele pode, como qualquer verdadeiro mensageiro de Deus, ser humilde ou até hesitante diante do Senhor; mas ele é direto diante do povo, incluindo seus líderes.
A reunião no templo é o caminho para retornar ao Senhor, na prática. Se cada um tivesse sido deixado decidir individualmente sobre a decisão de volta a Deus, o retorno teria sido sem convicção, não confiável e não verificável. Retornar ao Senhor com todo o seu coração significava que todas as pessoas precisavam ir juntas para o mesmo lugar. O individualismo ocidental tende a se desequilibrar com tais movimentos de massa. Supomos que qualquer ação coletiva tem necessariamente um elemento de manipulação ou histeria ou ambos.
Joel reitera e amplia suas instruções anteriores (1:14). Este será um dia de jejum e uma assembléia solene. Os anciãos devem estar presentes - mas também as crianças, incluindo os lactentes. Ninguém pode alegar negócios mais importantes - nem mesmo os recém-casados: Até os recém-casados devem deixar os seus aposentos. Uma das disposições marcantes da lei isenta o homem do serviço militar por um ano após seu casamento.¹ⶠEsta assembléia solene teria precedência tanto sobre o leito matrimonial quanto sobre o dever militar.
Esta é a força, também, do duplo uso de santificar: santifiquem um jejum... Santifiquem a congregação. O tempo precisa ser separado e diferenciado; o povo inteiro precisa ser separado e diferenciado. Esta consagração da nação, do mais velho ao mais jovem, ressalta “a natureza corporativa da culpa”¹ⷠque estava sobre o povo. Sem saber que pecados particulares eram predominantes na época de Joel, vemos novamente o impacto universal da violação das leis de Deus. As crianças no peito, embora obviamente inocentes de pecados específicos, estavam implicadas no pecado da nação ao se afastarem de Deus.
O cerne da questão em uma assembléia tão solene não estava simplesmente em ser convocado por Deus, por mais duras e amargas que fossem as circunstâncias, mas na expectativa se Deus também estaria presente. Deus não estava necessariamente presente naquele tipo de assembléia. Estavam prescritas na lei, mas se o povo como um todo tivesse abandonado o Senhor, a palavra de Deus era intransigente: Não consigo suportar suas assembleias cheias de iniquidade” (Is 1,13); “Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes" (Am 5,21).
Esta assembléia solene seria diferente. A santificação do povo resolveria qualquer hipocrisia desse tipo. Os preparativos para esta assembléia funcionariam como purificação.¹⸠Deus estaria lá e se deleitaria em estar lá. As palavras que Ele falou através de Amós significam literalmente, “não me agrado do cheiro” suas assembléias solenes - referindo-se aos sacrifícios de animais, juntamente com ofertas de cereais e bebidas, que desempenharam um papel tão importante nestes encontros¹⹠e que normalmente eram “um cheiro suave ao Senhor”.
Na assembléia solene convocada por Joel, os sacrifícios, juntamente com as ofertas de cereais e de bebidas, não estariam disponíveis, ou seriam pouco e insuficientemente disponíveis. A praga dos gafanhotos tinha cuidado disso. As pessoas deveriam se reunir para esta assembléia solene especial sem os ingredientes centrais para sua eficácia. O povo sabia disso. O profeta sabia disso. Os sacerdotes sabiam disso. Teria sido fácil não reunir-se. Ao se reunir sob tais circunstâncias e diante de uma realidade tão amarga, o povo estava indicando um verdadeiro retorno a Deus de todo o coração. Aqui o 'Quem sabe' de Joel seria gloriosamente realizado? O Senhor visitaria esta assembléia solene sem exigir uma oferta de cereais e uma oferta de bebida? Que bênção isso seria!
Tudo se resumia à ‘obediência pela fé’.²ⰠDeus, através de Joel, estava dizendo: ‘Ajuntem-se ... e veja o que acontece’. É geralmente quando o povo de Deus se encontra em qualquer geração, particularmente quando as circunstâncias exigem que se reúnam para buscar sua face em busca de misericórdia. Viemos porque Ele nos chamou em conjunto. Viemos porque acreditamos que Ele estará lá também - ou nos acolhendo enquanto nos reunimos, ou vindo entre nós quando estivermos juntos. O importante é vir com expectativa, nos diferenciando dos eventos cotidianos para estar juntos em um só lugar como o povo de Deus.
Hoje achamos mais fácil fazer isso em momentos de louvor do que em momentos de lamento, celebração em vez de confissão, expressar gratidão por todas as coisas maravilhosas que Deus fez, em vez de tristeza por todas as coisas terríveis que fizemos. Mas se Deus requer isso, devemos fazê-lo.
c. Ação dos sacerdotes (2:17)
A terceira resposta de Joel às palavras do Senhor ao povo é chamar os sacerdotes para agir. Joel já os havia instruído anteriormente a sair de suas esplêndidas vestes e “passar a noite em pano de saco” (1:13). Agora ele dá instruções igualmente específicas - onde ficar de pé, o que fazer e como orar. Como líderes espirituais das nações, os sacerdotes não estavam acostumados a receber ordens sobre como se comportar e o que dizer no templo. Eles eram os profissionais e eram eles que normalmente davam as ordens quando se tratava de assuntos e eventos religiosos. Mas Joel tem uma palavra de Deus para os sacerdotes, assim como para o povo.
Ao que tudo indica, antes da palavra de Joel, os sacerdotes estavam tão deprimidos quanto qualquer outra pessoa no país. Eles certamente estavam de luto (1:9), e era preciso que Joel os empurrasse para a ação através destas instruções. As ofertas tinham sido eliminado de sua rotina diária. A vocação deles parecia vazia. Seu livro de orações não tinha nada além de tristeza e desgraça a falar sobre a catástrofe que envolveu a terra. Seu estilo de vida diário, dependente de suprimentos regulares através do sistema sacrifical no templo, havia desmoronado. Eles eram um grupo de líderes religiosos quebrados: uma visão patética e um grupo miserável.
Quando a liderança espiritual de uma comunidade ou de uma nação atinge este nível de desespero e indiferença, somente um profeta pode romper com o vácuo de liderança - com a palavra do Senhor. Em certo sentido, Joel poderia ter feito tudo o que ele desafiara os sacerdotes a fazer. Ele poderia se colocado onde eles estavam. Poderia ter orado da maneira como eles orariam. Mas teria sido deixar os sacerdotes abdicarem de suas responsabilidades dadas por Deus para se apresentarem diante de Deus como porta-vozes do povo (por intercessão e oferecendo os sacrifícios prescritos),²¹ e para se apresentarem diante do povo como porta-vozes de Deus (fornecendo instrução e orientação específica).² Eles deveriam, em resumo, ser mediadores; e eles tinham deixado de ser isso. Eles não estavam mais fazendo jus ao ofício de ministros do Senhor. Eram auto-servos, não servos de Deus.
Mas, para dar-lhes o que lhes era devido, eles tinham vestido pano de saco para uma noite de lamentação e de humilhação diante do Senhor. Agora eles deveriam assumir uma posição específica entre o vestíbulo e o altar, que era “essencialmente uma posição mediadora, entre o altar onde o sacrifício era feito e a habitação de Deus”.²³ O privilégio e o chamado dos sacerdotes, como ministros do Senhor, era “aproximar-se do Senhor para ministrar a Ele” (Ez. 45:4). Então, Joel continua: se alguma vez o povo precisou do ministério mediador da oração deles, era agora.
O local específico indicado por Joel, embora fosse o lugar natural de onde conduzir as orações do povo, pode ter tido um significado a mais nesta ocasião. A incerteza da data de Joel significa que não podemos saber se ele precedeu ou seguiu um evento marcante na história do templo de Jerusalém.
O profeta Zacarias tinha sido apedrejado pelo povo naquele lugar quando se levantou para dizer a todos: ‘Por que transgredis os mandamentos do Senhor, para que não possais prosperar?’ O rei Joás, que até então tinha o histórico de fazer o que era certo aos olhos do Senhor, não suportou um desafio tão direto, e mandou o profeta ser apedrejado lá embaixo e depois no templo. Isto levou, dentro de um ano, à invasão e execução da liderança por um pequeno exército sírio.²â´
Este incidente poderia ter permanecido apenas mais um triste item na história de Israel, mas pelas dramáticas palavras de Jesus ao confrontar a hipocrisia e a arrogância dos escribas e fariseus como líderes espirituais do povo. Jesus os viu como “os filhos dos que assassinaram os profetas”, e advertiu que sobre eles viria “todo o sangue justo derramado na terra, desde o sangue do inocente Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baracarias, a quem matastes entre o santuário e o altar” (Mt 23,31-35).
O assassinato de Zacarias encontra paralelo nas últimas décadas com os assassinatos do Arcebispo Janani Luwum em Uganda e do Bispo Oscar Romero em El Salvador, tornou-se uma parte poderosa da história tanto do templo quanto da nação ao longo das gerações. Se, como é provável, o ministério de Joel tivesse vindo algum tempo depois do de Zacarias, os sacerdotes estariam bem cientes da história sangrenta daquele local em particular.
Joel espera que a intercessão dos sacerdotes venha do coração. Se os sacerdotes estivessem anestesiados pela profundidade do sofrimento da nação, eles agora estavam sendo ressensibilizados. Orações recitadas por vozes mortas ou profissionais, não são apropriadas. O próprio Joel indica o tipo de oração que chegará a Deus. Ele aponta aos sacerdotes material retirado da mesma fonte que alguns dos salmos agora chamados “salmos de lamento”.²ⵠO livro de Lamentações também contém passagens semelhantes.²â¶
Joel não está, portanto, desprezando a liturgia do templo. Afinal, era o local da adoração ao longo dos séculos, e participou dos altos e baixos da experiência humana na história do povo de Deus. O profeta diz aos sacerdotes para reconhecerem a gravidade única daquela catástrofe nacional, para permitir que seu sofrimento quebrante seus corações, e ocupem seu lugar legítimo como líderes espirituais - e para orar como nunca oraram antes.
O cerne da oração de Joel é a misericórdia e a glória de Deus. Nenhuma das duas é mencionado explicitamente, mas ambas formam a base para a intercessão a ser conduzida pelos sacerdotes no templo.
A oração começa com um grito de dependência sem reservas pela misericórdia do Senhor: Poupa o teu povo, Senhor (17). Esta palavra “tem a idéia central de pedir piedade ou compaixão e é um apelo aos ternos sentimentos do Senhor”.²ⷠTodas as mães e pais conhecem o poder persuasivo de uma criança que apela para seus sentimentos de compaixão. Algumas crianças fazem isso sem arte, outras deliberadamente; mas a maioria é eficaz. A própria presença de crianças pequenas, ou mesmo bebês pequenos, na congregação reunida no templo naquele dia especial de oração e jejum teria aumentado o impacto de um Deus cheio de compaixão e misericórdia.
Portanto, os sacerdotes são instruídos a orar: Senhor, salva o Teu povo. Há aqui um reconhecimento de que Deus já está empenhado numa ação de destruição - e com justiça - mas que, em Sua misericórdia, Ele pode perdoar. Não há nada do ‘cristianismo fácil’ encapsulado no comentário cínico do escritor francês Renan: ‘Dieu pardonnera; c’est son metier’, ‘Deus perdoará; é especialidade dele’. Há, ao contrário, a palavra do profeta Sofonias, quando ele incitava o povo (“nação sem pudor”) a se reunir:
Reúna-se e ajunte-se,
nação sem pudor,
Busquem o Senhor, todos vocês, os humildes da terra,
vocês que fazem o que ele ordena.
Busquem a justiça, busquem a humildade;
talvez vocês tenham abrigo no dia da ira do Senhor (Sf 2:1, 3).²â¸
Apoiados, antes de tudo, na misericórdia de Deus, os sacerdotes são instados por Joel a se concentrar na glória de Deus, na forma pela qual Deus tem investido sua credibilidade no povo de Israel por gerações. Assim, os sacerdotes devem levar ao conhecimento de Deus que este é o seu povo. ... a sua herança (17). Assim como o Senhor não é um Deus qualquer, mas um Deus cheio de compaixão e misericórdia, também o povo não é um povo qualquer, mas um povo chamado pelo seu nome. A glória do Senhor está ligada ao bem-estar do povo.
Por mais que o povo tivesse deliberadamente ignorado sua vocação e identidade por várias vezes, e por mais que os profetas os tivessem advertido para não depender desse lugar especial nos afetos e propósitos de Deus, esse apelo à glória do Senhor permaneceu um poderoso apelo na oração a Deus. Muitos podem facilmente identificar-se com a vergonha trazida por crianças desobedientes ao nome de família. O próprio nome de Deus, que ele não tinha vergonha de anexar aos filhos e filhas de um “verme”²⹠como Jacó (“o Deus de Jacó”), corria o risco de se tornar uma zombaria e de chacota entre as nações (17).
Seria realmente possível que Deus tivesse renunciado ao pacto que fizera com seu povo? Poderia ser verdade? Se fosse, a provocação penetrante de seus inimigos seria muito direta: Onde está seu Deus? Joel instrui os sacerdotes a perguntar diretamente a Deus:
Por que se haveria de dizer pelos povos:
‘Onde está o Deus deles?’’” (17).
Joel já falou do “meu Deus” (1:13), “o seu Deus” (1:13-14) e “nosso Deus” (1:16), cada designação carregando seu próprio impacto e significado na situação. Mas o escárnio contido na referência das nações vizinhas carrega suas próprias nuances. O Deus de Israel é simplesmente isso - ou Ele é o Deus de toda a terra, o Deus de toda nação? Será que Ele abandonou Israel em favor de alguma outra nação? Ele foi forçado a sucumbir aos deuses de Canaã, ou da Assíria, ou da Babilônia? Será que ele simplesmente morreu, ou foi embora, ou está ocupado com outros negócios? Ou talvez ele tenha sido sempre uma invenção israelita excessivamente ativa, uma criação de aspirações religiosas férteis, uma mera muleta?
Joel exorta os sacerdotes a levar todos esses pensamentos a Deus em oração pública, para que os sacerdotes e as pessoas possam juntos enfrentar os fatos na presença do próprio Deus - lançando-se à misericórdia de Deus, mas ao mesmo tempo apelando para o intento de Deus de guardar seu próprio nome e obter glória para si mesmo.
Joel, portanto, reuniu toda a nação na presença de Deus em oração. O Senhor tomou a iniciativa de fazer com que isso acontecesse. O profeta deu a garantia de que é realmente o momento de buscar o Senhor. O povo respondeu às instruções para se reunir. Os sacerdotes tomaram medidas, como líderes espirituais, para assumir a intercessão como sua tarefa principal. Tudo isso se resume a um vislumbre de esperança. O que vai acontecer? Quem sabe?
² Gordon Fee, 1 Corinthians, The New International Commentary on the New Testament (Eerdmans, 1987), p. 43.
³ R. L. Alden, ‘Malachi’, in Expositor's Bible Commentary 7, ed. Frank Gaebelein (Zondervan, 1985), p. 719.
â´ See Sf 1:7-18.
âµ Para referências do Novo Testamento ao chamado da trombeta de Deus, levando ao dia do julgamento, ver Mt 10:14-15; 11:20-24; 24:30-31; 1 Cor 15:51-52; 1 Tess. 4:16-17.
â¶ Keil p. 195.
ⷠCf. Ex. 34:5-7. ⸠Lk. 15:11-32.
â¹ Este é “o grande e primeiro mandamento”, “amar ao Senhor teu Deus de todo o teu coração... alma, e... mente” (Mt. 22,38).
¹ⰠA condição do coração de David diante de Deus faz um estudo fascinante; ver 1Sm 13:14; 16:7, seguido de referências em salmos atribuídos a Davi ao estado de seu coração diante de Deus: p. ex. Pss. 9:1; 34:18; 51:10, 17; 86:12.
¹¹ Veja, por exemplo, a ação de David imediatamente antes da morte da criança nascida em Betsabá (2Sm 16 - 17) e na morte de Absalom (2Sm 18:31 - 19:4).
¹¹ Ex. 32:1-35.
¹³ É o impulso comovente em grande parte do ministério de Jesus; por exemplo, Mt 9,36; 14,14; 15,32.
¹ⴠA linguagem é provavelmente uma referência ao capítulo sobre bênçãos e maldições em Dt. 28.
¹ⵠCf. Nu. 10:2. ¹ⶠDt. 24:5. ¹ⷠHubbard, p. 181.
¹⸠Cf. as instruções do Senhor a Moisés, antes da entrega da lei aos pés do Monte Sinai, sobre a santificação do povo de Israel (Ex 19,7-15).
¹⹠See Nu. 29:35-38. ²ⰠSee Rm 1:5; 16:26; Heb. 11:8.
²¹ See Ex. 28:29-30; Lv. 16:1-34. Veja também Heb. 5:1-4.
²² See Lv. 10:8-11; Dt. 17:9; 21:5. ²³ Dillard, p. 283.
²ⴠ2Cr 24:20-24. ²ⵠPor exemplo, Pss. 44; 79; 80; 89.
²ⶠSee La. 1:12-22; 2:13-17; 3:40-51; 5:1-22.
²ⷠFinley, p. 57. ²⸠Cfr. Abraão intercedendo por Sodoma (Gn 18: 22-33).
²⹠See Is. 41:14.
Joel 2:18-32
3. Alegria no Senhor
1. O ponto da virada (2:18)
A partir deste ponto, fica claro que a situação mudou. O resto do livro olha para o futuro. O vocabulário está cheio de Eu farei... e Você deve... 1 enquanto o Senhor fala ao seu povo sobre o que está por vir; o que Ele fará e o que eles experimentarão. A virada vem após os sacerdotes conduzirem o povo reunido em oração ao Senhor, entregando-se à sua misericórdia e apelando para sua preocupação com sua própria glória.
Então o Senhor mostrou zelo por sua terra
e teve piedade do seu povo (18).
Nenhuma menção é feita a uma resposta real do sacerdote e do povo ao chamado do profeta. Mas a mudança do resto do livro é tão completa que é correto supor que as instruções de Joel foram seguidas ao pé da letra. E assim, com a nação ainda reunida no templo para a oração, o Senhor faz sua resposta à intercessão liderada pelos sacerdotes: O Senhor respondeu ao seu povo ... (19).
O Senhor se moveu com forte zelo [ciúme] e piedade por seu povo. Estes são os atributos precisos no caráter de Deus aos quais os sacerdotes foram instados por Joel a apelar em oração (17). O ciúme de Deus, que é enfatizado no segundo mandamento sobre não ter imagens esculpidas, é tanto parte do amor de Deus quanto sua piedade. Deus mostra seu amor tanto na posse ciumenta quanto na profunda complacência. Ambos igualmente o levam a agir em nome de sua terra e de seu povo. Ele sente o ciúme e sente a compaixão, porque ama com um amor apaixonado.
O povo havia retornado ao Senhor de todo o coração. Agora eles estavam começando a ver a resposta à pergunta hesitante, mas esperançosa, de Joel: ‘Talvez ele volte atrás, arrependa-se, e ao passar deixe uma bênção...’ (14).
O restante do capítulo 2 (19b-32) contém a resposta do Senhor ao povo - palavras de promessa e de esperança. A maioria é redigida na primeira pessoa do singular, pois Joel fala no estilo de um oráculo de Deus: Eu o farei. ... A língua se altera temporariamente, enquanto Joel fala à terra, as feras do campo e depois o povo (21-24) com a palavra do Senhor. Então (25) a primeira pessoa do singular é retomada.
Antes de analisar mais detalhadamente esta última metade do capítulo 2, precisamos olhar também para o capítulo 3, porque qualquer divisão da seção 2:18 - 3:21 é bem arbitrária. A seção, de fato, fecha a porta sobre a praga dos gafanhotos e abre as promessas de Deus para os anos futuros. Novamente o motivo principal é o Dia do Senhor (2:31; 3:14), mas a perspectiva tem um duplo impulso - a restauração da fortuna do povo de Deus e o julgamento das nações. O Dia do Senhor verá o clímax de ambos.
Entre a ação de Deus em conter a invasão dos gafanhotos, com seu impacto na terra e nas pessoas (19-27), e sua ação no último grande dia do ajuste de contas (30-32), haverá outro evento de grande significado e imenso impacto - uma época em que, Deus diz, derramarei do meu Espírito sobre todos os povos (28-29).
2. Tempo de regozijo (2:19-27)
Precisamos olhar para esta passagem tendo em mente estas três etapas - o que acontecerá no próprio tempo de Joel, o que acontecerá em algum momento futuro, e o que acontecerá quando o Dia do Senhor chegar completamente. Joel esperava por uma bênção (14). O Senhor promete muitas bênçãos. É hora de regozijar-se em Deus.
a. Estou enviando para vocês trigo, vinho novo e azeite (2:19, 24)
Estes três produtos da terra constituíram a dieta básica do povo (1:10). A escassez durava muito tempo. A força da palavra 'Estou', seguida do presente tempo contínuo do verbo “enviar”, é a de fazer saber ao povo que a grande intervenção de Deus já está em curso. Eles não têm que esperar. O que foi destruído, o que tinha falhado seria fornecido em abundância.
Abundância é a principal característica destas bênçãos. Nada é limitado. Há uma generosa doação de um Deus generoso, de acordo com as bênçãos prometidas no Antigo Testamento, se o povo de Deus for obediente à sua palavra.² O resultado é satisfação plena (19) uma garantia que se repete: Vocês comerão até ficarem satisfeitos (26). Na economia de Deus, a abundância leva à satisfação, não ao luxo e ao desperdício. Suficiente é exatamente isto - nem pouco nem demais. Ninguém se sentirá negligenciado, despojado ou subnutrido.
A mesma promessa é reiterada:
As eiras ficarão cheias de trigo; os tonéis transbordarão de vinho novo e de azeite. (24).
Para cada habitante da terra ser satisfeito, a produção deve estar em plena ação. As fontes de abastecimento ficariam cheias até transbordar, de modo que ninguém teria menos do que o suficiente, o que é suficiente (26). Deus como criador proveu em abundância para todos; há suficiente e mais do que suficiente (abundância) para satisfazer nossa necessidade, mas não nossa ganância.
b. Eu não farei mais de vocês uma reprovação entre as nações (2:19, cf 26-27)
Este tinha sido um impulso específico da oração ordenada aos sacerdotes: “Não faças da tua herança objeto de zombaria e de chacota entre as nações” (17). Três vezes o Senhor promete que isto não acontecerá - nunca mais, nunca mais, nunca mais. Esta promessa é tão plena e tão abundante como a anterior. Nunca mais o meu povo será humilhado (26-27).
Há um duplo impulso para a promessa: o povo não mais teria que suportar provocações e zombarias; o nome de Deus não seria mais desonrado. O Senhor foi de fato tocado pela oração conduzida pelos sacerdotes. Se as nações desafiaram descaradamente o povo de Israel, “Onde está seu Deus?”, então era hora de agir, tanto para seu próprio bem como para o bem de seu povo. Eles precisavam ter provas sólidas de que ele ainda estava por perto e que era muito ativo entre eles.
No final do capítulo 3, a autoridade soberana de Deus sobre as nações terá sido firmemente estabelecida. Não será apenas uma questão de silenciar as provocações e insultos dos países vizinhos, mas de reunir todas as nações para julgamento com base no tratamento que deram a Israel (3: 2, 12).
c. Levarei o invasor que vem do norte para longe de vocês (2:20)
À primeira vista, o 'invasor do norte' parece uma referência a um invasor militar, talvez da Assíria ou da Babilônia, talvez evocativo ou semelhante à profecia de Jeremias sobre um caldeirão fervente virado para o norte e assim predizendo que “A palavra do Senhor veio a mim pela segunda vez, dizendo: “O que você vê?” E eu respondi: Vejo uma panela fervendo; ela está inclinada do norte para cá. O Senhor me disse: “Do norte se derramará a desgraça sobre todos os habitantes desta terra” (Jr 1:13-14). A geografia da Palestina, especialmente a vasta extensão norte do deserto árabe em sua fronteira leste, significou que qualquer invasão militar provavelmente viria do norte. Assim, o termo 'o norte' poderia ter entrado na linguagem popular como uma descrição vívida de qualquer ameaça nacional - neste caso, os gafanhotos. Os gafanhotos normalmente invadiam a Palestina do sul ou do leste, embora nesta ocasião catastrófica em particular, eles podem muito bem ter vindo do norte. Joel poderia estar se referindo tanto à invasão de gafanhotos quanto a uma invasão militar, caso em que o Senhor promete remover um ou ambos. O contexto imediato (especialmente 21-25) sugere que a referência novamente é aos gafanhotos.
A origem para onde o fedor e o mau cheiro dele terminariam (nos mares oriental e ocidental) se relaciona com fatos conhecidos sobre o odor apavorante exalado por uma massa de gafanhotos mortos, que muitas vezes acabam em grandes pilhas à beira-mar. Essa praga vai acabar longe de você - o mais longe possível, para nunca mais voltar.
Isto é uma inversão total. O mesmo comandante que ordenou a aflição da terra (11) está agora dando ordens para sua destruição, enviando-os para uma terra ressequida e desolada, onde não terão como se alimentar, e enfraquecendo suas forças, de modo que uma metade se afogue no Mar Morto e a outra no Mediterrâneo. Deus está encarregado de cada etapa da existência dos gafanhotos, assim como está encarregado de qualquer mal que seja lançado sobre seu povo hoje.
d. Vou compensá-los pelos anos de colheitas que os gafanhotos destruíram (cf. 2:21-25)
Os gafanhotos fizeram grandes coisas (20), mas não há motivo para teme-los mais, pois o Senhor fez grandes coisas (21), mais do que suficiente para compensar o impacto dos gafanhotos. Certamente é hora de se alegrar e se regozijar. Joel convida as três vítimas da catástrofe a se unirem à alegria: a terra (21), os animais do campo (22) e o povo (23).
Novamente a atmosfera é de abundância: pastagens verdes (22), chuva abundante (23), cheia de trigo (24), transbordamento (24). Deus nunca faz as coisas pela metade. Ele é pródigo e generoso em seu trabalho de restauração. Quando olhamos para o mundo que Ele criou, parece extravagante - tal variedade, complexidade, grandeza, imaginação e fantasia. É tão verdadeiro, se não mais verdadeiro, na restauração e na nova criação. Não é preciso temer (21-22) quando um Deus assim está trabalhando. A maneira de Joel lidar com o medo é fixar os olhos de todos na atividade do Senhor:
... pois as pastagens estão ficando verdes.
As árvores estão dando os seus frutos;
a figueira e a videira estão carregadas (22).
a maior necessidade após um período tão prolongado de devastação e seca é a chuva, e muita. É precisamente isto que o Senhor começa a dar: Ele dá a vocês as chuvas de outono, conforme a sua justiça (23).³ A tríplice referência à chuva (a chuva precoce ... chuva abundante ... a chuva precoce e a última chuva) enfatiza a rica provisão de Deus de uma necessidade básica.
O Senhor está restaura o ciclo anual de chuvas como antes (23) da invasão de gafanhotos. Isto em si seria uma vindicação do povo, pois a ausência de chuva indicava que Deus estava retirando sua bênção sobre eles. Com a chuva agora caindo, e caindo não apenas em abundância, mas regular e firmemente na hora certa e em quantidades apropriadas, o lugar do povo nos afetos e posturas de Deus foi firmemente estabelecido mais uma vez. Além disso, a própria justiça de Deus estava sendo demonstrada novamente; a chuva provou que ele podia ser confiável para manter sua promessa de restauração a um povo penitente.â´
Isto nos leva à promessa explícita de restauração:
Vou compensá-los pelos anos de colheitas que os gafanhotos destruíram: o gafanhoto peregrino, o gafanhoto devastador, o gafanhoto devorador e o gafanhoto cortador, o meu grande exército que enviei contra vocês. (25).
Aqui, pela primeira vez, Deus dá expressão direta à verdade que tem se tornado mais e mais aparente sob a liderança profética de Joel. Os gafanhotos são - nem foram - o verdadeiro exército de Deus. Deus enviou os gafanhotos. Talvez seja relevante que esta verdade chocante só venha à tona neste ponto, quando a pura e abundante bondade de Deus está sendo demonstrada. Talvez esta informação tão simples tenha que ser retido enquanto o sofrimento é intenso. Talvez seja preciso que os hematomas comecem a sarar e tivermos recuperado pelo menos parte de nossa paz e equilíbrio para saber isso.
Os gafanhotos haviam trazido devastação durante um longo período. Esses anos tinham sido totalmente negativos - anos desperdiçados, tempo perdido, nada além de miséria e privação, desperdício de potencial. Uma tendência humana natural, uma vez que finalmente foram concluídos, é consigná-los ao passado como uma memória particularmente má: melhor nem sequer pensar neles, muito menos falar sobre eles.
Deus diz, vou compensá-los [wəšillamtî] pelos anos. O significado da palavra hebraica é 'retribuir', 'compensar'. Tem conotações jurídicas, significando 'compensação'. Deus, ao reconhecer todos os danos causados à terra e ao povo, promete prover ampla compensação por tudo o que sofreram.
Vivemos em uma época em que a compensação legal é uma questão importante, com indivíduos às vezes recebendo enormes quantias financeiras, especialmente nos tribunais dos EUA. Em outras ocasiões, pessoas com ferimentos terríveis são contempladas com indenizações triviais. Muitas vezes lemos sobre pessoas que foram indenizadas pela morte de um parceiro ou de um dos pais, mas dizemos que nenhuma quantia de dinheiro pode trazer de volta o ente querido ou compensar a dor e o vazio que ainda sofrem.
Provavelmente era assim que as pessoas se sentiam no tempo de Joel sobre os anos devorados pelos gafanhotos. Mas Deus declara: “Eles não foram perdidos; não foram desperdiçados; não foram irremediavelmente negativos. Eu quero compensá-los. Eu fui o responsável por eles e, se você puderem aceitar a dolorosa e perplexa verdade nisso - de fato, se você puder ver em retrospectiva, como um presente para vocês - então vocês estarão aptos para que eu os restaure. Se vocês escolherem apagar de sua memória, então o que eu vou fazer na restauração provavelmente passará em branco. Não será o momento da restauração que tenho em mente para você”.
Como as origens históricas da palavra “restaurar” ou “pagar” estão nos tribunais, é fácil pensar na relação de Deus com seu povo em termos legalistas, e interpretar este versículo de acordo com isto. De fato, o primeiro uso da palavra está em um capítulo que trata da restituição de vários ferimentos, insultos e danos adquiridos na vida cotidiana.âµ Não é da natureza do Senhor retribuir de forma isto-por-aquilo. Ele certamente é justo mas não nos trata como merecemos. Se por um momento ele se comportasse dessa maneira, seríamos aniquilados.
O firme amor e a compaixão de nosso Deus e Pai o impulsiona em todas as suas relações com seu povo. Isto está, ao mesmo tempo, dentro de nossa compreensão (porque conhecemos tais agitações em nossas próprias relações humanas) e além de nossa compreensão (e, portanto, oscilamos em nossas reações entre admiração pela magnificência exagerada e resignação com propósitos tão inescrutáveis, nenhum dos quais parece justo ou justo).
Deus, então, declarou o que está prestes a fazer por meio de uma bênção irrestrita. Agora (26-27) ele diz o que isto significará para seu povo, e eles perceberão como Ele os tratou de forma maravilhosa. Tais atos de graça farão com que eles se desdobrem mais uma vez em aleluias (a palavra raiz no hebraico para “louvor” é hll), algo que não se ouvia no templo há muito, muito tempo. Muito deve sempre levar ao louvor, mas muitas vezes não o faz: esquecemos que devemos a abundância ao próprio Senhor; esquecemos de trazer-lhe o louvor que ele merece e deseja. Essa é a inclinação que precisa mais uma vez ser envergonhada. Existe um preventivo para uma condição tão miserável: Louvarão o nome do Senhor, o seu Deus (26).
O cerne do louvor do povo é a restauração do pacto:
Então vocês saberão que eu estou no meio de Israel.
Eu sou o Senhor, o seu Deus,
e não há nenhum outro;
nunca mais o meu povo será humilhado (27).
As três verdades cardeais expressas nessas palavras estavam corrompidas. Eles passaram a acreditar que Deus estava ausente e distante, que não desejava mais estar em aliança com eles e ser o seu Deus. Eles provavelmente haviam começado a flertar, pelo menos em seus corações e mentes, com outros deuses, de tão desesperados que estavam para encontrar uma saída para a catástrofe.
Para Joel e seus contemporâneos, o escárnio dos inimigos era direto: 'Onde está teu Deus?' (17). Agora eles podiam responder com total segurança: 'Ele está no meio de nós e, além disso, não há outro deus como ele.' A aliança, iniciada e expressa na Dez Mandamentos estava de volta ao lugar. Isso foi restauração - e causa sem fim para o povo se regozijar em Deus.
3. Derramarei o meu Espírito (2:28-32)
Se as promessas de Deus na geração de Joel podiam ser resumidas nas palavras ‘Eu retribuirei...’, suas promessas para a posteridade podem ser expressas nas palavras Eu derramarei. .. (28-29). Ao olharmos para 2.28-32, devemos nos precaver de fazer uma divisão muito forte entre estes últimos cinco versículos do capítulo 2 e todo o capítulo 3. Eles são um só texto, como indicam as frases de abertura do capítulo 3: “... naqueles dias e naquele tempo...”.
C. H. Dodd também faz uma ressalva importante sobre Joel 2 e 3. Este texto ‘teve um papel significativo na moldagem da linguagem na qual a igreja primitiva expôs suas convicções sobre o que Cristo tinha feito e ainda faria’.â¶ O livro de Joel teve, sem dúvida, mais impacto sobre os escritores do Novo Testamento do que qualquer outro livro do Antigo Testamento. E se Isaías 53 é a escritura chave para nossa compreensão da cruz de Cristo, então Joel 2 é essencial para nossa compreensão, ensino e experiência da vinda do Espírito de Deus.
Nossa primeira tarefa fundamental é fazer a pergunta: o que estas palavras significaram para Joel e seus contemporâneos? Qual o significado da menção ao Espírito de Deus para o povo da época de Joel? Mais uma vez, estamos limitados por nossa ignorância sobre a datação da profecia de Joel. Esta incerteza significa que não podemos comparar acontecimentos e passagens particulares e afirmar, com total confiança, que estes teriam condicionado a aproximação de Joel à atividade do Espírito de Deus.
Há, no entanto, uma teologia do Espírito nas Escrituras do Antigo Testamento, começando com “o Espírito de Deus ... movendo-se sobre a face das águas”, em um comando criativo (Gn 1:2). Grande parte desta teologia está enraizada em eventos particulares da história de Israel que aconteceram antes do tempo de Joel. Os eventos e seus registros fizeram parte da identidade e da definição de Israel. Eles também faziam parte dos serviços e do culto do templo. As histórias eram transmitidas em cada família de uma geração para a outra. Esta tradição oral era extremamente forte e confiável, qualquer que fosse a natureza dos registros escritos.
A maioria das referências do Antigo Testamento ao Espírito de Deus registram a forma como certos indivíduos eram habilitados em momentos específicos para tarefas específicas.â· Como resultado, ou por causa de sua posição, estes eram líderes na comunidade. Este empoderamento era crucial para ser eficaz no serviço de Deus e, até o tempo de Davi, permaneceu como a marca da pessoa escolhida por Deus. Um desses líderes, Elias (talvez devido ao fim incomum de sua vida, aparentemente contornando a morte), deveria retornar à terra como um prelúdio imediato da vinda do Messias. Tal evento é especificamente profetizado por Malaquias como parte da construção do “grande e terrível Dia do Senhor” (Ml 4:5).
Para Joel e seu público, portanto, havia uma experiência (mesmo que apenas em sua história passada), e também uma expectativa, da vinda do Espírito sobre os indivíduos para alguma expressão de liderança entre o povo de Deus. Dois eventos podem fornecer um importante pano de fundo para as palavras de Joel aqui. O primeiro é no tempo de Moisés e o segundo, no tempo de Saul.
A primeira é descrita nos Números 11 e 12. Durante os quarenta anos de peregrinação no deserto, Moisés chegou a um ponto em que já estava farto de liderar um povo tão fracassado. Uma combinação de fatores criou uma situação altamente inflamável: A ira de Deus com o povo, a frustração e exaustão de Moisés, as expectativas do povo em relação a Moisés, a expectativa de Moisés para si mesmo, a ira de Moisés com Deus por esperar que ele fosse babá do povo, seu sentimento de fracasso e a aparente ausência de tudo isso. É um retrato preciso da solidão da liderança.
Deus diz a Moisés para reunir setenta anciãos e oficiais na tenda do encontro: ‘Eu descerei e falarei com você; e tirarei do Espírito que está sobre você e o porei sobre eles. Eles o ajudarão na árdua responsabilidade de conduzir o povo, de modo que você não tenha que assumir tudo sozinho’ (Nm 11,17). Moisés seguiu as instruções do Senhor e tudo começou a acontecer como Deus prometeu: ‘o Senhor ... tirou do Espírito que estava sobre Moisés e o pôs sobre as setenta autoridades. Quando o Espírito veio sobre elas, profetizaram, mas depois nunca mais tornaram a fazê-lo” (11:25).
Dois anciãos, Eldade e Medade, não tinham aparecido na tenda do encontro, mas receberam o Espírito sobre eles no acampamento, e começaram a profetizar também. Josué, “um dos homens escolhidos” (11:28), queria que Moisés proibisse aqueles dois de profetizar no lugar errado, na hora errada. Temos então a clássica resposta de Moisés: “Você está com ciúmes por mim? Quem dera todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor pusesse o seu Espírito sobre eles!" (11:29). Moisés tinha visto o suficiente para querer que todos tivessem a mesma experiência. Ver Deus colocando seu Espírito sobre setenta homens ao seu lado na tenda do encontro era água para uma alma sedenta. Ouvir que Deus havia colocado o Espírito também em outros dois, quando ele mesmo nem sequer estava presente, era um bônus adicional. Se aquilo fosse uma forma compartilhar e carregar o fardo, Moisés não poderia ter muito disso. Ele reconheceu o ciúme em Josué, que estava sendo preparado para a liderança depois que Moisés tivesse partido; mas aqui estava a melhor lição de liderança espiritual que alguém poderia receber: setenta ou setenta e dois homens estavam se movendo no poder do Espírito de Deus, não apenas no ‘lugar santo’, mas também no ‘acampamento’.
Miriã e Arão revelam seus próprios ciúmes do relacionamento especial de Moisés com Deus e sua posição como porta-voz de Deus: ‘Será que o Senhor tem falado apenas por meio de Moisés?”, perguntaram. “Também não tem ele falado por meio de nós?” (12:2). Josué, Miriã e Arão ocupavam cargos importantes sob Moisés. Quando viram o Espírito se movendo sobre outras pessoas menos qualificadas e menos autorizadas, suspeitaram de algo muito arriscado e de um subtil enfraquecimento de sua própria posição.
O Senhor então diz a Miriã e Arão que seu irmão, Moisés, é de fato único nos propósitos de Deus: “Com ele falo face a face, claramente, e não por enigmas; e ele vê a forma do Senhor” (12:8). Mas, igualmente, ‘Quando entre vocês há um profeta do Senhor, a ele me revelo em visões, m sonhos falo com ele’ (12:6). É razoável concluir que esta foi a maneira como os anciãos profetizaram. Seu ministério profético tomou a forma de visões e sonhos - imagens visuais de um ou outro tipo, embora não necessariamente de forma extática. Basicamente, outros testemunharam pessoas familiares agindo de forma desconhecida, capazes de fazer algo até então além de sua capacidade.
O outro cenário envolve Saul, filho de Quis, primeiro rei em Israel. Samuel, que é “muitas vezes chamado o último dos juízes e o primeiro dos profetas,“8 tendo ungido Saul para a realeza, anunciou profeticamente uma série de eventos que aconteceriam com ele. Um deles era que um bando de profetas o encontraria, o Espírito do Senhor viria sobre ele, e ele se encontraria profetizando. Quando aconteceu exatamente como Samuel previu, Saul seria “um novo homem” (1Sm 10:6), e “perguntaram uns aos outros”: “O que aconteceu ao filho de Quis? Saul também está entre os profetas?” (1Sm 10:11).
Esta última frase tornou-se um provérbio entre o povo de Israel (1Sm 10:12; cf. 19:24). Portanto, estaria na mente de Joel e do povo em algum nível. Para Joel e sua geração, portanto, pensar e falar de Deus derramando seu Espírito sobre indivíduos em liderança ou marcados para a liderança era significativo. O pensamento poderia até ter alimentado a esperança de que Deus faria aquilo em seus próprios dias.
Voltando agora ao texto de Joel, notamos que esta atividade do Espírito de Deus ocorrerá depois (“depois disto”, “depois destas coisas”) - depois que as promessas de restauração (2:19-27) tiverem sido cumpridas parcialmente, se não inteiramente, na terra. Da mesma forma, a frase seus filhos e suas filhas (por que não ‘vocês’?) sugere que seria alguma geração posterior: muito mais tarde, mas sem data e sem prazo de validade.
O termo 'derramarei' [’eÅ¡pÅwḵ] é muito significativo. No contexto imediato, ela retoma o tema anterior da chuva: alegrai-vos com o Senhor, vosso Deus... pois Ele envia a vocês muitas chuvas (23). Assim como a chuva para uma terra sedenta, assim é o Espírito de Deus para uma alma sedenta e para um povo sedento. Deus promete que chegará o momento em que Ele derramará seu Espírito.
A imagem e a realidade de Deus derramando seu Espírito, ao contrário de colocar seu Espírito sobre indivíduos, é mais abundante. O profeta retrata algo exuberante, quase um desperdício. Não há nada que se perca, nem há nada que alguém possa fazer para desfrutá-lo, exceto estar presente quando o Espírito for derramado. Não é um chuvisco, mas um aguaceiro. É assim que a atividade do Espírito é antecipada por outros profetas, como Isaías, Ezequiel e Zacarias.â¹
Este derramamento do Espírito de Deus cairá sobre 'todos os povos'. Biblicamente, esta expressão pode se referir a toda criatura viva, humana ou não. Aqui, ela se refere claramente aos seres humanos - embora, à luz abertura da boca da jumenta de Balaão pelo Senhor e permitindo que ela falasse como um ser humano,¹Ⱐnão devemos ser intransigentes a respeito disso. Há um debate sobre se toda a carne significava todo o povo de Israel ou todo o povo do mundo. Pode, de fato, permanecer ambígua, tanto para o profeta quanto para o povo.
Este derramamento do Espírito tem um impacto dramático na vida comunitária do povo de Deus. À medida que cada pessoa é afetada, as distinções sociais e outras se tornarão suaves e menos determinantes. Não haverá discriminação, no que diz respeito à atividade do Espírito, em termos de idade, sexo ou status social.
Os idosos sempre gozaram de respeito em Israel. Esta passagem pode indicar um nivelamento das diferenças de idade a este respeito, pois os homens jovens sentem o impacto e mostram a evidência do Espírito de Deus em suas vidas. Haverá também uma mudança significativa nas posições desfrutadas por homens e mulheres como resultado da atividade do Espírito, que aqui são apresentadas como equivalentes. Embora o Antigo Testamento não esteja uniformemente aplicado em favor dos homens, ele está retratando uma sociedade dominada pelos homens.
Mas é notadamente na forma como o Espírito é dado aos servos e servas que a velha ordem deve ser virada de cabeça para baixo. "Servos e servas” recebem porções tanto quanto qualquer outra pessoa. Embora os israelitas às vezes fossem vendidos como escravos entre seu próprio povo (geralmente por causa de adversidades temporárias e depois como crianças, a fim de dar aos pais alguma esperança de recuperação), os servos eram normalmente estrangeiros adquiridos em suas viagens ou após campanhas militares. Mesmo que fossem assimilados na comunidade, aceitando e adotando seus costumes e práticas, eles ainda eram forasteiros. É importante que o leitor moderno não perca o caráter radical do anúncio de Joel ... . Joel prevê uma transformação sociológica ... Esta declaração de Joel deve ser contrastada com a antiga oração masculina judaica matinal: “Agradeço-te, ó Deus, por não ter nascido gentio, escravo ou mulher.’”¹¹
O impacto deste derramamento sobre todos e todos será que seus filhos e as suas filhas profetizarão, os velhos terão sonhos, os jovens terão visões.
O que significava profetizar? O que significa ter "sonhos? O que significa ter visões? O cumprimento da promessa não precisa se limitar ao entendimento e às expectativas contemporâneas de Joel. Mas as respostas ainda precisam ser ser identificadas, antes de prosseguirmos para eventos posteriores.
O que significava 'profetizar' na época de Joel? O verbo hebraico “naba” ocorre como verbo 115 vezes no Antigo Testamento, embora apenas uma vez no Pentateuco: no capítulo 11 de Números, descrevendo a experiência de Moisés com os anciãos. Os profetas eram indivíduos que falavam palavras que Deus lhes deu. (Eram normalmente homens, mas pelo menos três profetisas são mencionadas: Miriã, Débora e Hulda). ¹² Anunciam várias frases comuns, como “Assim diz o Senhor” e “A palavra do Senhor veio a ...”. (literalmente “era para” ou “tornou-se uma realidade para”). Alguns escreveram livros. Outros eram conselheiros de reis, mas geralmente havia uma relação desconfortável, certamente complexa, entre profetas e governantes. Quase nunca ouvimos falar de um profeta vivendo na corte: eles normalmente estavam em movimento, levando a palavra de Deus ao povo.
Deus falou sua palavra à maioria dos profetas, mas a alguns deles ele deu sonhos e visões. O que significava ter sonhos e visões? Os sonhos são comuns no Antigo Testamento. Eles são importantes na vida de pessoas como Abraão, Jacó, José, Gideão, Salomão e Daniel.¹³ Os sonhos são significativos, também, na vida de indivíduos em outras nações além de Israel.¹ⴠTanto entre eles ou em Israel, os sonhos invariavelmente precisavam de interpretação.
Os registros bíblicos são ambivalente na atitude para com os sonhos e os sonhadores. Em épocas anteriores, essa maneira de receber uma mensagem de Deus aparentemente era vista com menos suspeita do que nos dias de Jeremias, que considerava as mensagens que supostamente vinham de Deus por meio de sonhos virtualmente equivalentes a falsa profecia.¹âµ
Sonhos e visões podem ser comunicação de Deus, mas exigem interpretação. Há outra forma mais direta de inspiração pelo Espírito - ouvir e falar a palavra do Senhor. Este gênero era mais respeitado pelo ouvintes de Joel. Sua profecia aqui, embora não desse carta branca a um ministério profético envolvendo uma abordagem mais pictórica, certamente a endossou e teria sido ouvida dessa forma por seus ouvintes. As visões, igualmente, tinham um status respeitável no passado de Israel. Eram semelhantes a sonhos, mas normalmente eram recebidas quando acordadas, e não quando adormecidas. Estavam estreitamente associadas com pessoas chamadas “videntes” (hozeh, vidente; hazon, visão), e eram quase “um sinônimo para revelação divina”.¹ⶠNão havia o mesmo ceticismo ou hostilidade para com aqueles que tinham visões como havia para aqueles que sonhavam. Os capítulos anteriores de Zacarias contêm exemplos de tais visões, introduzidos por frases como ‘Eu vi na noite, e eis um homem montado em um cavalo vermelho!’, ‘Eu levantei meus olhos e vi ...’ e ‘Ele me disse: “O que você vê?”’¹â·
A questão se a profecia de Joel sobre os sonhos de velhos e jovens com visões tem implicações distintas permanece em aberto; por exemplo, os velhos normalmente teriam visões e os jovens sonhos? Até que ponto manifestações extáticas seriam esperadas na atividade profética nos dias de Joel também é outra questão em aberto.¹⸠O precedente histórico certamente incluiu tais experiências, mas elas não foram necessárias nem importantes para receber a mensagem de Deus. De fato, as manifestações mais incomuns eram freqüentes na profecia pagã, resultantes de experiências estimuladas artificialmente. O ministério de um profeta genuíno em Israel é normalmente contrastado com papéis semelhantes desempenhados em outras nações por adivinhadores, astrólogos, adivinhos, feiticeiros ou mesmo “os profetas de Baal” (1 Ki. 18).
As palavras proféticas de Joel sobre o Espírito de Deus devem ter tido grande impacto sobre uma nação que começa a emergir de um longo e escuro túnel. Na escuridão profunda de sua desolação, eles devem ter se perguntado se alguma vez voltariam a sentir a presença do Senhor em seu meio. Agora Joel está trazendo-lhes uma mensagem gloriosa do Senhor de que todas as pessoas participariam do derramamento dramático do Espírito - uma mensagem duplamente assegurada por sua repetição da frase, derramarei meu espírito.
Esta promessa do Espírito, no entanto, é colocada sem concessões no contexto do grande e terrível Dia do Senhor (31). Houve tanta bênção nos parágrafos anteriores que é chocante ser confrontado com o imaginário dramático da linguagem apocalíptica: Mostrarei maravilhas no céu e na terra: sangue, fogo e nuvens de fumaça. O sol se tornará em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e temível dia do Senhor (30-31).
O que significam estes sinais? Sangue, fogo e fumaça, todos têm ecos na narrativa do êxodo. O sangue do cordeiro da Páscoa garantiu aos israelitas segurança e proteção contra o santo julgamento do Senhor sobre os egípcios.¹⹠Um pilar de fogo conduziu o povo pela noite através do deserto.²ⰠA montanha foi envolta em fumaça quando o Senhor desceu no Sinai para falar com Moisés.²¹ Todos os três sinais expressaram a realidade esmagadora de um Deus santo presente com seu povo, protegendo, preservando, provendo, proclamando e, assim, chamando a atenção e o mundo observador a prestar contas.
Antes da chegada do grande e terrível Dia do Senhor, haverá outra demonstração semelhante da santidade de Deus: O sol se tornará em trevas, e a lua em sangue (31). O próprio Jesus falou algo semelhantes ao descrever ‘a vinda do Filho do Homem’.²² Os relatos destes penúltimos eventos também foram dados no terremoto e na escuridão que acompanharam a morte de Jesus.²³ O livro de Apocalipse retoma a linguagem apocalíptica de Joel e Jesus.²ⴠEm cada caso a realidade suprema é o pavor inspirado por eventos que revelam a temível majestade do Deus Todo-Poderoso, expressa no terrível paradoxo da ‘ira do Cordeiro’.²âµ
Assim, as pessoas da época de Joel são lembradas que deverão encarar o Dia do Senhor. A praga dos gafanhotos estava de saída, mas Joel já enfatizou três vezes que os gafanhotos eram prévias de um desastre ainda maior. Portanto, a restauração da praga dos gafanhotos, seguida de todo o povo experimentando o Espírito de Deus sendo derramado sobre eles, significava uma intervenção divina em preparação para o grande dia do julgamento.
O dom do Espírito não era para satisfação pessoal, nem mesmo para a recuperação nacional. Era para fortalecer o povo de Deus para assumir uma liderança profética ²ⶠentre as nações em um mundo que se encaminhava para um dia apocalíptico de juízo final. Se os profetas tiveram a tarefa de levar a palavra de Deus a uma nação em risco de julgamento, um povo com chamado profético teria a tarefa de levar a palavra de Deus a um mundo à beira do julgamento final.
A perspectiva de Joel inclui a advertência de que viver no Monte Sião e em Jerusalém não será garantia de sobreviver a esse dia de julgamento. Será terrível (inspirando medo profundo) para todos, para Israel e para as nações. O impulso deste dia é o julgamento, e por isso a única questão que tem algum significado é: 'alguém vai escapar?', 'Haverá algum sobrevivente?' Sim, diz o Senhor através de Joel, haverá livramento para os sobreviventes (32).
Esses sobreviventes são definidos em duas frases paralelas: E todo aquele que invocar o nome do Senhor e aqueles a quem o Senhor chamar (32). Isso se parece com as duas faces de uma moeda, refletindo a iniciativa de Deus em tornar seu chamado claro e a responsabilidade dos ouvintes de responder invocando o nome do Senhor.
Este, então, é o cenário que Joel prevê que acontecerá depois que a praga dos gafanhotos for removida e a terra e seu povo forem restaurados. Agora estamos em posição de considerar como e por que Pedro usou essa passagem para explicar o que aconteceu aos seguidores de Jesus em Jerusalém no dia de Pentecostes, séculos depois.
É notável que a promessa do Senhor através de Joel sobre o derramamento do Espírito sobre todas as pessoas não teve cumprimento conhecido por tantos anos. Dependendo de como o livro de Joel, a promessa levou pelo 400 e 900 anos para ser cumprida. Isto, em si mesmo, nos ensina uma verdade importante e indigesta sobre os propósitos e a atividade de Deus. Ele não parece ter tanta pressa quanto nós, nem compartilha nossa opinião de que tudo deve acontecer em nossa geração.
Pedro, no entanto, deixa claro que às nove horas da manhã em uma determinada festa de Pentecostes, no terceiro dia do terceiro mês do ano, o momento em que Deus cumpriu sua promessa através de Joel havia chegado. Ele havia sido, na hora anterior mais ou menos, testemunha e personagem de uma notável experiência de poder espiritual. Ele não tinha nem o tempo nem a teologia para elaborar uma explicação plausível para tais eventos, que não tinham acontecido em um canto, mas eram totalmente de domínio público. Mas ele estava certo de que “isto é o que foi predito pelo profeta Joel” (Atos 2:16).
A escolha divina do Pentecostes como a hora de derramar seu Espírito através de Jesus sobre os 120 discípulos tem um significado intrigante. Essa festa judaica em particular deveria começar sete semanas a partir do momento em que a foice fosse colocada para trabalhar²ⷠ- paralelamente a sete semanas desde que Jesus tinha sido crucificado. Era o dia dos primeiros frutos da colheita, trazidos pelo povo ao templo, dadas a Deus, e desfrutadas pelos sacerdotes. Sob a nova aliança no sangue de Jesus, o “sacerdócio real”²⸠de todos os crentes em Jesus desfrutam o dom do Espírito de Deus para seu povo como as primícias de sua herança.²â¹
Pedro usa variações mais ou menos significativas no texto de Joel. A mudança de "depois" para "nos últimos dias" é indiscutivelmente a mais significativa. Ela altera o impulso da passagem para ser expressamente escatológica: em vez da promessa de Deus de derramar seu Espírito sendo aplicada a algum tempo futuro, ela se torna um evento inexoravelmente ligado ao vento da história e ao cumprimento dos propósitos eternos de Deus.
O derramamento do Espírito de Deus em Pentecostes indicou que o capítulo final da história de Deus no mundo havia começado com o nascimento, vida, morte, sepultamento, ressurreição e ascensão de Jesus de Nazaré. Como Pedro disse às multidões reunidas em Jerusalém: ‘Exaltado à direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e derramou o que vocês agora veem e ouvem.’ (At 2,33).
A última alteração de Pedro tem significado - sua omissão da seção final de Joel: 'pois, conforme prometeu o Senhor, no monte Sião e em Jerusalém haverá livramento para os sobreviventes, para aqueles a quem o Senhor chamar.' É estranho, à primeira vista, que Pedro exclua a menção de Jerusalém quando está falando exatamente naquela cidade a “todos os que habitam em Jerusalém” (Atos 2:14).
Parece que o próprio Espírito Santo fez Pedro suprimir sua citação, porque os sentimentos em Joel 2:32 na verdade aparecem alguns minutos depois nas palavras de Pedro ao povo. Depois de falar com eles em termos diretos sobre a verdadeira identidade “deste Jesus” a quem “vós crucificastes” (Atos 2,23), ele encontra o povo com o coração tão partido e eles lhe perguntam o que devem fazer. Pedro diz: “Quando ouviram isso, ficaram aflitos em seu coração e perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos: “Irmãos, que faremos?” Pedro respondeu: “Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos seus pecados, e receberão o dom do Espírito Santo. Pois a promessa é para vocês, para os seus filhos e para todos os que estão longe, para todos quantos o Senhor, o nosso Deus, chamar” (At 2,37-39).
Tendo omitido a referência ao Monte Sião e em Jerusalém, Pedro aqui acrescenta a dramática frase “todos os que estão longe” (39), qualificando sua aparente ausência de qualquer discriminação com a frase de Joel (ou algo parecido): “todo aquele que o Senhor clama a ele”. A promessa, diz Pedro, é também para gerações futuras (“seus filhos”), mas, além disso, é para aqueles que estão longe. Nem o tempo nem o espaço precisam excluir ninguém de receber o derramamento do Espírito. O que Pedro quis dizer, ou acha que ele poderia querer dizer, com a frase “todos os que estão longe”? O Pedro do dia de Pentecostes poderia ter respondido de forma bem diferente do Pedro que tinha encontrado Cornélio,³Ⱐe ainda mais diferente do Pedro que teve que enfrentar a oposição de Paulo sobre a comunhão plena em Cristo entre crentes judeus e gentios.³¹ Paulo achou mais fácil que Pedro compreender quem eram “todos os que estão longe” e o que significava sua inclusão entre o povo de Deus.³²
Quando teve mais tempo para pensar, ouvir, orar e observar Deus trabalhando em diferentes partes do mundo, Pedro veio a saber muito bem o que queria dizer quando “esqueceu” as últimas palavras de Joel, e "inventou” aquelas poderosas poucas palavras de convite universal. Sua carta aos discípulos de Cristo, judeus e gentios, espalhados pelo Oriente Médio, escrita trinta anos mais tarde, encerra maravilhosamente a verdade que ele articulou naquela manhã de Pentecostes em Jerusalém: ‘Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram povo, mas agora são povo de Deus; não haviam recebido misericórdia, mas agora a receberam” (1Pd 2,9-10).
Cada frase desses dois versículos fornece um comentário perfeito sobre a profecia de Joel, a vinda do Espírito em Pentecostes, o uso criacional que Pedro fez das palavras e o impacto das palavras de Joel e que pregou tanto sobre aqueles que estavam presentes como sobre as gerações futuras e demais culturas. Deus continuou, através de Jesus trabalhando em sua igreja, a derramar seu Espírito sobre todas as pessoas.
A promessa, por sua própria natureza e por causa de seu Autor, nunca seria um acontecimento único e definitivo, uma súbita tempestade tropical torrencial do Espírito. Deus continua a derramar seu Espírito sobre todas as pessoas. Hoje, não se espera que nós Caminhar no lago por ordem de Deus em Jerusalém no Pentecostes. Somos convidados a nos regozijar em um Deus que ainda derrama seu Espírito sobre aqueles que, em alegre e humilde resposta a seu chamado, recorrem a Ele para serem salvos - das garras do pecado e dos poderes da morte, mas a partir do dia do julgamento: “Salvai-vos desta geração adúltera” (Atos 2:40). Tornam-se então parte do povo de Deus, um “remanescente” chamado e equipado para anunciar sua palavra a sua própria geração e, por meio de tal ministério, para prover líderes piedosos em todos os níveis da sociedade.
¹ Por exemplo, 2:19, 20, 25, 28, 29, 30 (I will) and 2:19, 26,27, 28 (You shall).
² See Dt. 28:1-14.
³ Uma leitura variante (yareh, mestre, ao invés de moreh, chuva precoce) daria origem ao concurso 'ele deu ao mestre da justiça' em lugar de ele deu a chuva da manhã para sua justificação (23).
â´ Este é o ponto principal da tradução niv, 'ele vos deu as chuvas de outono em justiça' (23).
âµ Ex. 22.
â¶ CH Dodd, Segundo as Escrituras (Nisbet, 1952), pp. 63-64.
â· Por exemplo, Bezalel (Ex. 35: 30-31), Jefté (Juízes 11:29), Sansão (Juízes 14: 6, 19; 15:14).
⸠R. E Youngblood, ‘1,2 Samuel’, The Expositor's Bible Commentary 3, ed. Frank Gaebelein (Zondervan, 1992), p. 620.
⹠Is. 44:3; Ez. 39:29; Zc. 12:10. ¹ⰠNu. 22:28.
¹¹ Dillard, p. 295. Observe que esta oração não está no Antigo Testamento e só pode ser encontrada muitos anos após a redação das Escrituras canônicas.
¹² Ex. 15:20ff.; Jz 4:4; 2 Ki. 22:14.
¹³ Gn 20:1-18; 28:10-17; 31:1-16; 37:5-11; Jz 7:9-18; 1 Ki. 3:3-15; Dn. 7:1-28.
¹ⴠFor examples see TDOT 4, pp. 421-426. ¹ⵠJr 23:25-32.
¹ⶠSee D. E. Aune in The International Standard Bible Encyclopedia 4, ed. G. W. Bromilly (Eerdmans, 1988), pp. 993-994, ¹ⷠZc. 1:8, 18; 2:1; 5:9; 6:1; 4:2; 5:2.
¹⸠Para comentários e referências ao elemento extático na atividade profética do Antigo Testamento, consulte RF Youngblood em The Expositor's Bible Commentary 3, ed. Frank Gaebelein (Zondervan, 1992), pp. 624-626.
¹⹠See Ex. 11:1-12:32. ²ⰠSee Ex. 13:21-22. ²¹ See Ex. 19:16-18.
²² See Mt. 24:27-31. ²³ See Mt. 27:45-54.
²ⴠSee Ap 6:12-17; 8:1-13; 16:1-9; 20:11-15. ²ⵠAp 6:16.
²ⶠObserve que o legado passado à geração de Joel falou do Espírito de Deus capacitando-se para a liderança.
²â·Dt. 16:9. ²⸠1 Pet. 2:9. ²⹠See Jr 1:18; 1 Cor. 15:20, 23; Ap 14:4.
³ⰠActs 10.
³¹ Gl 2 and Acts 15. ³² Eph. 2:13-14.
Joel 3:1-21
4. Tema o Senhor
No capítulo final, as palavras de Joel se concentram no que acontecerá quando o Dia do Senhor finalmente chegar. Somos informados que este dia será tanto um dia de destruição quanto um dia de libertação; e também um dia de decisão - não do ser humano, mas de Deus. À medida que este grande dia é retratado, Joel, pela primeira vez, especifica lugares e nações. Até agora, ele havia mencionado apenas Jerusalém e o Monte Sião (2:1, 15, 23, 32). Neste capítulo ele se refere a Tiro e Sidom e todas as regiões da Filístia (4), os gregos (6), os Sabeus (8), o Vale de Sitim (Vale das Acácias) (18), Egito e Edom (19). Judá é mencionado seis vezes, Israel duas vezes, Jerusalém quatro vezes e Sião três vezes.
Em um livro que frustra aqueles que querem estabelecer uma data para sua composição e contexto, esta ênfase específica é marcante. Joel entende que o Dia do Senhor terá um impacto mundial, abrangente e decisivo. Todas as nações (2) devem estar envolvidas, mesmo que o horizonte do próprio Joel esteja necessariamente limitado a todas as nações ao redor (11), e a nações das quais ele só tenha ouvido falar.
Mais do que isso, a perspectiva de Joel se baseia na forma como as nações vizinhas agiram com Israel. As decisões tomadas por Deus no Dia do Senhor tem relação com as ações tomadas pelas nações ao longo dos séculos a respeito a Israel. Isso está claro no texto do capítulo, e em vista das referências feitas a nações e lugares específicos, é difícil sustentar o argumento de que isso não será literalmente cumprido: no Dia do Senhor, as nações serão julgadas pela forma como trataram Israel.
É mais difícil, porém, sustentar que esta é a essência, e muito menos o impulso exclusivo, daquele grande dia. Joel, ao que parece, fornece aqui uma perspectiva do Dia do Senhor. Em outras partes do livro há perspectivas mais amplas e outros elementos. Por exemplo, o final do capítulo 2 afirma que, entre os habitantes de Jerusalém, haverá “sobreviventes”, aqueles que invocam o nome do Senhor; nem todos na cidade serão entregues. Todo o impulso da profecia de Joel aponta na mesma direção: o Dia do Senhor é um tempo de julgamento tanto para Israel como para as nações.¹
O capítulo 3 é redigido principalmente na forma de um discurso direto do Senhor, dirigido às vezes a Israel e outras vezes às nações. A seção do meio (9-16) contém uma declaração na primeira pessoa do singular (12) e uma declaração dirigida diretamente ao Senhor (11). Apesar desta peculiaridade no meio da passagem, o melhor é entender o capítulo inteiro como uma mensagem direta de Deus, através de Joel, a qualquer um que ouvir: uma mensagem, como dissemos, sobre um Dia de Decisão, Destruição e Libertação; um dia que trará um veredicto e uma execução. Os três temas se entrelaçam ao longo de todo o capítulo.
1. Decisão (3:1-8)
O capítulo abre com uma ligação temporal clara entre o que está prestes a ser descrito e o que acaba de ser prometido: Sim, naqueles dias e naquele tempo ... A primeira expressão repete a afirmação (2:29) sobre o derramamento do Espírito sobre toda a carne. A segunda é menos específica, mas de modo geral parece se referir ao tempo em que a atividade do Espírito ocorrerá junto dos eventos apocalípticos anunciando a iminência do Dia do Senhor.
Se estiver correto, a expressão seguinte, 'quando eu restaurar a sorte de Judá e Jerusalém' (1), não diz respeito à restauração da terra e do povo após a devastação dos gafanhotos. Essa restauração ocorre, tanto na profecia de Joel como no cumprimento atual, antes do derramamento do Espírito. Assim, a ação de Deus para restaurar (ou retribuir o povo pelo) o que o gafanhoto comeu (2:25) é completamente distinta da restauração da sorte de Judá e Jerusalém. É de uma ordem diferente e em um período de tempo diferente.
Isto é ressaltado pelo significado da expressão traduzida como 'restaurar a sorte', que é diferente da palavra em 2:25. É, de fato, uma frase chave na interpretação do Antigo Testamento e ocorre várias vezes para descrever eventos de importância central na história de Israel. A palavra hebraica tem dois significados essenciais, ambos aplicáveis neste contexto: “restaurar a sorte de” ou “livrar o cativeiro de”. Ela aparece dezoito vezes e “constitui um ponto muito debatido no estudo do Antigo Testamento”.² A primeira versão fala de uma mudança que não é necessariamente específica do tempo; a segunda parece ter uma aplicação mais restrita, por exemplo, a um período de cativeiro real. Exemplos deste último significado³ aplicam-se ao retorno de Judá do cativeiro e do exílio na Babilônia. Uma inversão mais geral da sorte nacional é indicada em outro lugar.â´ Na ausência de qualquer referência à Babilônia (em vez disso, temos Tiro e Sidon mencionados, 4), é razoável supor que Joel esteja falando de uma restauração mais ampla, ou seja, o impacto do derramamento do Espírito sobre o povo de Deus, levando à libertação da destruição para os sobreviventes em Jerusalém, à medida que o Dia do Senhor se aproxima.
Enquanto isso, o Senhor também estará agindo nas nações, chamando-as a prestar contas da maneira como trataram Israel: os farei descer ao vale de Josafá. Ali os julgarei por causa da minha herança Israel, o meu povo (2).
Josafá significa “Deus julga”, e é provável que Joel não esteja se referindo a nenhum vale realmente conhecido por esse nome, mas sublinhando a realidade do julgamento de Deus. O lugar é chamado o vale da decisão (ou, o veredicto) (14): outro jogo de palavras sobre o tema de Deus sentado como juiz e proferindo seu veredicto sobre cada nação perante seu tribunal.âµ Um paralelo moderno a este uso é nossa maneira de nos referir aos “campos de morte” de, digamos, Vietnã ou Uganda, Bósnia ou Ruanda.
A iniciativa deste dia de prestação de contas é inteiramente de Deus: 'reunirei todos os povos e os farei descer'. Ambos os verbos são palavras de ação soberana. As nações podem se sentir seguras, a quilômetros de distância, na segurança de seu próprio território. Cada nação pode ser inteiramente auto-suficiente econômica, comercial e militarmente; mas Deus diz, 'reunirei todos'. Eles podem ser imensamente poderosos e prósperos, líderes mundiais com cidades de classe mundial e uma economia em expansão - mas Deus diz, 'eu os farei descer' (a expressão wÉ™hÅwraá¸tîm, “pode significar “prostrar”, “derrubar”, ou “humilhar”).â¶
Deus “o Juiz de toda a terra” (Gn 18:25) está preocupado com uma questão: Ali os julgarei por causa da minha herança Israel (2). Deus não é um terceiro desinteressado; ele não é um juiz imparcial: ele está preocupado com seu povo e com sua própria herança. Eles pertencem a Ele e a ninguém mais; nenhuma outra nação tem o direito de fazer o que quiser com sua própria posse.
O Senhor fará três acusações contra as nações; três assuntos pelos quais cada nação terá que prestar contas:
a. A primeira acusação: espalharam entre as nações (3:2)
A primeira acusação está enraizada na ação de Deus para reunir seu povo em uma nação na terra prometida. Ele havia gasto recursos para alcançar este grande propósito, começando com o chamado de Abraão para deixar Ur dos Caldeus. Depois vieram as sagas dos patriarcas e a terrível escravidão no Egito, quebrada finalmente pela própria “poderosa mão e braço estendido” de Deus enquanto ele os conduzia para fora do cativeiro sob Moisés; quarenta anos de paciente liderança proporcionaram a uma multidão fragmentada e heterogênea com pouco senso de identidade e ainda menos de unidade; e finalmente, sob Josué, a entrada e captura de grandes cidades, culminando finalmente na conquista de toda a terra. E isso tinha sido apenas o começo.
Século após século, profeta após profeta, rei após rei, crise após crise: todo o tempo Deus os tinha tratado como a menina de seu olho,â· resgatando, resgatando, resgatando - do cativeiro, do errante, do exílio, da idolatria. Diante de um compromisso tão antigo de reunir seu povo, Deus não ia deixar as nações escapar. Um dia de prestação de contas estava chegando: cada nação em qualquer sentido responsável pela dispersão, não pela reunião, o povo de Deus estará no banco dos réus. É importante ler o primeiro verso do capítulo 3 no contexto do que 2:28-32 descreve: Deus está derramando o Espírito e inaugurando o grande e terrível Dia do Senhor. Podemos então ver que este dia se concentrará essencialmente no modo como as nações têm tratado a igreja de Cristo, o povo de Deus sob o novo pacto, o Israel de Deus.â¸
Até que ponto isso inclui a política de uma nação moderna em relação ao Estado-nação de Israel nos dias atuais é uma questão discutível. Os sucessivos presidentes dos Estados Unidos, por exemplo, têm sentido a pressão dos lobistas (principalmente cristãos), que estão certos de que a prosperidade de sua nação depende significativamente do fornecimento de apoio total para a sobrevivência e o sucesso do moderno estado de Israel. O endosso para reunir judeus em suas terras pode se revelar substancialmente diferente da aprovação entusiasta das políticas seguidas por um governo secular (e amplamente ateu).
b. A segunda acusação: repartiram entre si a minha terra (3:2)
A segunda acusação que Deus fará às nações está ligada à terra, que na época de Joel havia sofrido severa devastação pelo exército de gafanhotos: eles... repartiram entre si a minha terra. Em qualquer cultura e país, a propriedade da terra é de fundamental importância. Na África Oriental, por exemplo, uma das razões para atitudes diferentes em relação ao muzungus, ou aos estrangeiros (especialmente os brancos), em Uganda como no Quênia, é a questão da terra. Uganda, um protetorado nos dias do Império Britânico, era um país onde os muzungus geralmente não possuíam terras; permaneceu nas mãos dos ugandenses. O Quênia, por outro lado, era uma colônia, e os europeus possuíam praticamente todas as melhores terras. O ranço histórico hoje em dia é claro: em geral, os ugandenses recebem bem os europeus, mas os quenianos são mais suspeitos e muitas vezes hostis.
Desde a entrada em Canaã, o Senhor deixou claro que toda a terra pertencia a Ele. Era dele - como de fato é toda a terra - e inteiramente dentro de sua autoridade dar ao povo que ele escolheu. Ele escolheu dá-la ao povo de Israel.â¹ Ele a prometeu a Abraão séculos antes de Josué levar os descendentes de Abraão através do Jordão para tomar posse dela.¹â°
Salomão, na dedicação do templo em Jerusalém, alegremente reconheceu em oração a Deus que era 'a terra que deste ao teu povo por herança' (2Cr. 6:27). Quando o povo se esquecia, como freqüentemente acontecia, de quem a terra realmente pertencia, Deus enviava um profeta para lembrá-los:
Eu trouxe vocês a uma terra fértil,
para que comessem dos seus frutos
e dos seus bons produtos.
Entretanto, vocês contaminaram a minha terra;
tornaram a minha herança repugnante (Jr 2:7; cf. 16:18).
Veremos mais tarde (19) que o povo de Edom, em particular, era culpado desta acusação de dividir a terra que o Senhor havia chamado de minha terra. Na verdade, somente Deus tinha o direito de entregar a terra, e o tinha feito: cada tribo tinha sua parte. E os próprios israelitas receberam instruções para não tratar a terra como qualquer “propriedade” normal: ““A terra não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês são apenas estrangeiros e imigrantes. Em toda terra em que tiverem propriedade, concedam o direito de resgate da terra.” (Lv. 25:23-24).
Este mandamento enfatiza que nem mesmo um israelita poderia reivindicar uma parte da terra. Eles eram peregrinos, não proprietários de propriedades. Muito menos os não-israelitas tinham o direito de tratar a terra da maneira como tratavam a terra em seu próprio país. As nações serão chamadas a prestar contas desse tipo de comportamento na única parte do mundo que pode ser chamada de “país de Deus”.
c. A terceira acusação: lançaram sortes para meu povo (3:3)
A terceira acusação contra as nações é de tratar os seres humanos como bens e, particularmente, de lidar com o povo de Deus da mesma maneira arrogante e insensível com que os escravos eram colocados à venda no mercado. Era uma loteria nacional para acabar com todas as loterias nacionais - o povo santo de Deus distribuído como prêmio. 'A cena é dividir a pilhagem após a batalha'; ¹¹ reminiscente da brutalidade do campo de batalha hoje.
Os crimes de guerra específicos mencionados por Joel têm suas versões hoje. Leia este relatório sobre Ruanda:
Pelo menos meio milhão de pessoas foram mortas entre abril e junho de 1994. Um terço ou mais eram crianças. Em algumas das maiores valas comuns, até 45% das vítimas eram crianças. A UNICEF estima que até um milhão de crianças sobreviventes foram exterminadas pelo genocídio. Em uma pesquisa realizada pelo fundo de Kigali, 56% das crianças tinham assistido outras crianças participando de massacres, geralmente seguindo ordens dos adultos, enquanto 47% tinham visto crianças matando outras crianças. Dois terços de todas as crianças testemunharam massacres. Um em cada cinco testemunhou estupros e abusos sexuais. Mais da metade das pessoas entrevistadas tinha visto membros da família serem mortos.¹²
No entanto, mesmo esses horrores ficam bem aquém da 'solução final' de Hitler com o extermínio de seis milhões de judeus, homens, mulheres e crianças no Holocausto.
O Senhor, através de Joel, não está apenas expressando seu repúdio pelas atrocidades da guerra, especialmente quando dirigido contra seu próprio povo. Ele também está registrando seu ódio à crueldade contra os mais indefesos e vulneráveis da sociedade - crianças, meninos e meninas: eles ... deram meninos em troca de prostitutas; venderam meninas por vinho, para se embriagarem. A sociedade judaica cultiva cuidados e consideração extra às crianças, e “em certo sentido, qualquer sociedade pode ser medida pelo tratamento dado às crianças”.¹³
Uma nação não precisa estar em guerra para que este comportamento seja ocorrência comum e para tornar esse país sujeito ao julgamento de Deus. O que o Senhor terá a dizer naquele dia às nações modernas, sobretudo no Ocidente, que estão abusando (ou permitindo que as pessoas abusem) de seus jovens de diversas maneiras - desde o aborto, passando pela violência sexual e física, até a prostituição infantil, o uso de drogas e o mero abandono.
Será que devemos fazer perguntas sobre a forma como espalhamos o povo de Deus de diferentes maneiras? Seu julgamento será dirigido à forma como lidamos com os bens e posses, especialmente quando os tratamos como pertencentes a nós e não a Deus? Seremos abordados sobre qualquer comportamento desumano, arrogante ou insensível para com aqueles que Jesus chamou de “os menores destes meus irmãos” (Mt 25,40), e que são, portanto, filhos de Deus?
d. Exemplos: Fenícia e Filístia (3:4-8)
O cenário agora muda, de forma brusca, para um exemplo específico do tema geral da reunião das nações para o julgamento: Tiro, Sidon e Filístia (4-8). O comportamento pelo qual estas nações são chamadas a prestar contas ocorrerá como um evento histórico, não no final dos tempos. Esta perspectiva é consistente com o restante da Escritura: Deus fixou um dia em que julgará o mundo com justiça (o Dia do Senhor). Mas seu justo julgamento está em ação o tempo todo - na natureza autodestrutiva do mal,¹ⴠna aplicação do princípio de “semeadura e colheita”,¹ⵠna ascensão e queda das nações, e nas assustadoras implicações da frase marcante de Paulo, “Deus os abandonou”.’¹â¶
É perigoso, moral e espiritualmente, entender o juízo divino que deixa tudo para ser decidido no dia final de julgamento. É mais saudável, e bíblico, viver cada dia à luz da eternidade: responsabilizar-nos perante Deus dia a dia. Este capítulo é uma lição sobre prestação de contas. Poucos assuntos são tão cruciais em nossa geração e cultura.
Tiro, Sidon e Filístia eram alguns dos inimigos tradicionais de Israel. Os filisteus (principalmente através de Davi e Golias,¹ⷠseguido por Sansão e Dalila)¹⸠tornaram-se sinônimos de comportamento rude e incivilizado. Durante vários séculos eles foram poderosos, particularmente na riqueza, violência e arrogância de suas cinco cidades, Gaza, Asdode, Asquelon, Gate e Ecron.
Ezequiel resume de maneira vívida a crueldade dos filisteus: ‘a Filístia agiu por vingança e com maldade no coração e, com antiga hostilidade, buscou destruir Judá’ (Ezequiel 25:15). Por meio do profeta Zacarias, Deus promete:
Eu acabarei com o orgulho dos filisteus.
Tirarei o sangue de suas bocas
e a comida proibida entre os seus dentes (Zc 9: 6-7).
A Fenícia, cujos principais portos eram Tiro e Sidon, eram provavelmente a maior nação marítima do mundo mediterrâneo. Tiro era o principal porto marítimo comercial: está junto à entrada para o mar, mercadora de povos em muitos litorais” (Ez. 27:3). Tornou-se o maior mercado do mundo. Sua imensa riqueza é descrita no restante de Ezequiel 27, e sua reputação mundial naqueles dias fazia parecer que Nova Iorque, Londres e Tóquio se transformaram em uma só. Todas as outras nações negociaram com os fenícios, porque o cartel de Tiro controlava tanto os mercados quanto os preços:
Quando as suas mercadorias saíam para o mar, você satisfazia muitas nações; com sua grande riqueza e com seus bens você enriqueceu os reis da terra. (Ezequiel 27:33).
Com o vasto sucesso comercial de Tiro, veio a arrogância descarada, até o ponto de se declarar um deus (Ez 28:2), levando a esta palavra do Senhor, novamente por meio de Ezequiel:
Por sua grande habilidade comercial
você aumentou as suas riquezas
e, por causa das suas riquezas,
o seu coração ficou cada vez mais orgulhoso.
Por meio do seu amplo comércio,
você encheu-se de violência e pecou.
Por isso eu o lancei, humilhado,
para longe do monte de Deus,
e o expulsei, ó querubim guardião,
do meio das pedras fulgurantes.
Por meio dos seus muitos pecados
e do seu comércio desonesto
você profanou os seus santuários (Ezequiel 28:5,16,18).
A arrogância fenícia e a violência filisteia eram bem conhecidas em todo o mundo, não apenas em Israel. Cada um tem uma expressão atemporal no mundo moderno. O mero orgulho daqueles que controlam os mercados nas capitais de hoje é às vezes de tirar o fôlego - vivendo como se não houvesse amanhã, nenhuma sanção ética, nenhuma necessidade de prestação de contas. O colapso do Barings Bank na cidade de Londres é um exemplo bastante recente, mas existem muitos outros em todo o mundo. A violência filisteia é endêmica nos cartéis de drogas da América Latina e as operações controladas pela máfia na América do Norte e na Europa (e bandidos semelhantes aos mafiosos russos).
Quando Joel fala diretamente aos fenícios e filisteus, em nome de Deus, ele coloca a situação em termos de um inquérito sarcástico: O que vocês têm contra mim, Tiro, Sidom, e todas as regiões da Filístia? Vocês estão me retribuindo algo que eu fiz a vocês? (4). A primeira pergunta é desdenhosa; a segunda é uma pergunta de perplexidade. Deus está prestes a lidar com como alguém prestes a sacudir um inseto. Em sua segunda pergunta, o Senhor exprime surpresa de que as duas nações continuem a mirar em Judá e Jerusalém. Eles parecem agir com o rancor de algum filho contra Deus. Tal raiva contra Deus é freqüentemente descarregada seus representantes (tais como sacerdotes, líderes da igreja, crentes ativos, até mesmo edifícios da igreja). A palavra retribuir é a mesma usada quando Deus prometeu pagar ao povo da terra por toda a devastação causada pelos gafanhotos (2:25). Isso foi um pagamento positivo. Aqui o Senhor promete um tipo diferente de pagamento - retribuição, de fato: se você não me pagar eu vou executar a hipoteca com rapidez (16).
As acusações do Senhor contra essas duas nações são: vocês pegaram minha prata e meu ouro e carregaram meus ricos tesouros para seus templos (5) e venderam o povo de Jerusalém e Judá aos gregos, removendo-os de suas próprias fronteiras (6).
A primeira acusação dá um exemplo histórico específico da acusação geral feita contra as nações, quando o Senhor falou de 'meu povo' ... 'minha herança' ... 'minha terra' (2-3). Aqui ele fala de 'minha prata'... 'meu ouro'... 'meus ricos tesouros'. O Senhor se identifica tanto com Judá e Jerusalém que considera cada pessoa e cada coisa como pertencendo a ele. Atacar, desprezar, destruir ou remover qualquer pessoa ou qualquer coisa é atingir o próprio Deus: ‘todo o que neles tocar, toca na pupila dos olhos dele’ (Zc. 2:8). Este princípio é reiterado no Novo Testamento, quando o perseguidor da igreja primitiva, Saulo de Tarso, cai no chão cego. Quando ele pergunta: ‘Quem és tu, Senhor?’, a resposta é clara: ‘Eu sou Jesus, a quem tu persegues’ (Atos 9:5).
Não há, aparentemente, nenhum registro histórico de pilhagem, seja por filisteus ou pelos fenícios. É provável que seu motivo tenha sido uma mistura de oportunismo e pura ganância: “Tiro falou de Jerusalém: ‘Ah! Ah! O portal das nações está quebrado, e as suas portas se me abriram; agora que ela jaz em ruínas, eu prosperarei’”. (Ez. 26:2).
Os construtores de impérios sempre foram os mesmos: se a porta está aberta para o comércio e a riqueza, o melhor a fazer é passar por ela. Qualquer questão ética ou teológica pode ser empurrada para gerações posteriores ou para os especialistas religiosos. Não importa se o país ou a cidade em questão está de joelhos ou incapaz de chegar a um acordo que levará a uma partilha justa e eqüitativa nos anos seguintes.
A história está repleta de pilhagens, à medida que as nações são pisoteadas e estupradas em nome do progresso e do lucro.
Os fenícios atacaram o povo de Deus quando eles estavam caídos, confiscando seus bens valiosos (principalmente os do templo de Jerusalém) e levando-os para encher seus próprios edifícios públicos (a palavra traduzida como templos também poderia ser 'palácios').
Mas o tratamento que davam ao povo de Deus era mais do que mera pilhagem: Vocês venderam o povo (6) para a escravidão. Há provas históricas do comércio de escravos entre estas cidades mediterrâneas e os gregos: O contato entre os Ionianos [isto é, gregos] e o império assírio já no século VIII a.C. está bem documentado.’¹⹠Amós também se refere à forma como Tiro estava envolvido na remoção de um povo inteiro para a escravidão.²ⰠEra generalizado, comum, terrível e doloso.
Não só os fenícios estavam felizes em vender pessoas, inclusive israelitas, para a escravidão para encher seus próprios cofres; eles estavam igualmente felizes em levar pessoas para serem seus próprios escravos em pagamento por sua rica variedade de mercadorias: ‘Javã, Tubal e Meseque negociaram com você; trocaram escravos e utensílios de bronze pelos seus bens’ (Ez. 27:13).
O comércio de escravos se concentrava nos portos marítimos (Tiro, Sidon, Ashkelon), como Londres, Bristol e Liverpool nos dias do comércio de escravos entre a África e a América. Esse comércio foi alvo de William Wilberforce quando se tornou deputado nos anos 1790, e viveu até abrir caminho da abolição na época de sua morte, trinta anos depois.
Esse tráfico de almas e corpos sempre foi um anátema para Deus. O próprio povo de Israel não tinha ficha limpa: Amós os denuncia praticamente da mesma maneira que a cidade de Tiro, ‘Vendem por prata o justo, e por um par de sandálias o pobre.’ (Am 2: 6 )
Explorar tempo, lealdade e perícia das pessoas é uma forma moderna e respeitável de escravidão. Nas grandes cidades de hoje, os empregadores, especialmente nos grandes conglomerados e multinacionais, virtualmente compram uma pessoa de corpo e alma com um salário razoável, acrescentando incentivos poderosos, que só podem ser realizados mantendo horários e compromissos que equivalem a acorrentar o indivíduo à tela de seu computador o dia todo, sete dias por semana. Essa é uma maneira sutil de transformar as pessoas em escravos, mas funciona.
O trabalho escravo - de uma forma bem mais sutil - pode ser visto na forma como os homens são transportados por avião pela metade do mundo a partir de seus países de origem, confinados a um emprego e a um complexo em uma cultura estrangeira (especialmente, mas não só, no Oriente Médio), com longas jornadas de trabalho e um salário irrisório (embora muito mais produtivo do que em casa), e permitido retornar às suas famílias por duas semanas no ano. Muitas mulheres trabalham como empregados domésticos em lares ricos de Londres e Nova Iorque; elas recebem cama e comida, mais um salário muito abaixo do que a lei determina. Tais práticas de exploração do trabalho eram uma das realidades mais detestadas do apartheid na África do Sul.
Remover pessoas - qualquer pessoa, mas particularmente o povo de Deus - para longe de sua própria fronteira (6), de sua pátria (niv), desperta o justo julgamento de Deus - sobre vocês farei recair o que fizeram (7). A punição é inteiramente apropriada: venderei os filhos e as filhas de vocês ao povo de Judá, e eles os venderão à distante nação dos sabeus (8). Eles mesmos se tornarão escravos, os orgulhosos fenícios e filisteus. Suas vítimas serão os agentes desta transação em particular - não para desfrutar da experiência de possuir escravos, mas para vendê-los.
Os fenícios e filisteus venderam israelitas aos gregos, a quilômetros de distância, através do que, para os israelitas, era o temido mar - exatamente o mesmo que os escravos africanos sentiam sobre o Oceano Atlântico. Os fenícios não tinham parado para pensar no terror que os israelitas sentiam em relação ao mar; agora estes intrépidos marinheiros saboreavam a esterilidade e o calor brutal do deserto.
Para alcançar seus propósitos, Deus diz, 'vou tirá-los dos lugares para onde os venderam' (7): Deus os despertará da letargia e da anomia provocadas pela retirada forçada de sua pátria, das viagens aterrorizantes através do oceano e da desmoralização da escravidão. Esta era uma ação que Deus estava familiarizado em nome de seu povo. Ele os havia redimido da escravidão no Egito. Ele vai fazer o mesmo com aqueles vendidos para os gregos jonianos: ele os trará para casa. Tais agitações entre o povo de Deus aconteceram novamente de forma intensificada e mundial nos últimos cinqüenta anos. Quando Deus decide agitá-los, tudo pode acontecer.²²
A verdade é tão clara quanto profunda: Deus está no controle dos eventos em cada nação e sua mão está sobre os líderes de qualquer nação a qualquer momento moldando suas decisões e despertando-os para a atividade que servirá a seus propósitos. Na frase final desta seção em Joel sobre os fenícios e os filisteus, a confiabilidade desta perspectiva sobre os assuntos mundiais é dada a máxima ênfase: Assim disse o Senhor (8) - “uma certificação divina para endossar sua autoridade”.²³
No que diz respeito ao destino de Tiro, ninguém menos que Alexandre, o Grande, foi escolhido e despertado por Deus como instrumento de julgamento. Em 332 aC ele sitiou e capturou a cidade, vendendo como escravos 30.000 pessoas, incluindo mulheres e crianças.
Os fenícios e os filisteus não eram, em nenhum sentido, os inimigos mais destrutivos de Israel. O foco sobre eles neste capítulo tem o duplo efeito de abrir os olhos para a natureza específica e precisa do julgamento divino no curso da história, e de tranquilizar os corações que “há um julgamento” (Jó. 19:29) que será completo, justo e final. Se há aqui uma nota de vingança ou retribuição, precisamos nos lembrar que, em tal atitude, Deus não é um ser humano e, portanto, não devemos comparar nosso tipo de vingança sobre Ele. Sua vingança é tão pura quanto seu ciúme (Joel 2,18). Tanto o Antigo como o Novo Testamento dão o mesmo testemunho: “A vingança é minha, eu retribuirei, diz o Senhor” (Rm 12:19, citando Dt 32:35).
2. Destruição (3:9-16a)
Joel volta agora sua palavra ao vale de Josafá (12). Enquanto olha para a cena, ele se descobre descrevendo um campo de batalha, não os campos de morte que teve que lembrar anteriormente, onde o próprio povo de Deus foi tratado como espólio de guerra, incluindo meros meninos e meninas; mas o cenário de uma guerra santa.
Este é o significado da frase traduzida de forma bastante mansa, Preparem-se para a guerra (9). É a mesma palavra usada anteriormente no livro, onde o profeta instruiu o povo atormentado pelos gafanhotos a ‘santificar um jejum’ (1:14; 2:15) e ‘santificar a congregação’ (2:16). O jejum e a congregação deveriam ser santos. E assim aqui, ‘santificar a guerra’ indica que a guerra deveria ser santa. Trata-se de uma guerra, com certeza, e é muito diferente de qualquer outra - separada da conduta e das atividades normais da guerra, separada para Deus conduzir sua própria estratégia e prosseguir com as atividades que ele planejou. Todas estas estão ligadas a sua única intenção: ali me assentarei para julgar todas as nações vizinhas (12).
Porque vai haver tal guerra, e porque o próprio Senhor vai ser a única pessoa de um dos lados do conflito, é impressionante vê-lo sentado para lutar. O ato de 'sentar' ocorre uma vez que tudo tenha sido feito. Percebemos então que esta guerra santa não envolve nenhum combate real, apenas decisões ou veredictos e sua execução. O vale é chamado o 'vale da decisão' ou o 'vale do veredicto' (14).
Há, no entanto, um confronto esperado - entre todos os homens de guerra entre as nações (9) e os guerreiros de Deus (11). A frase homens de guerra (9) é usada para ambos os exércitos, os homens poderosos das nações e os homens poderosos do Senhor: todos guerreiros.
Joel prevê “mobilização total”²ⴠde cada ser humano para estar presente no vale da decisão: todos os guerreiros (9 aqueles que fizeram carreira militar), aqueles cujas únicas armas eram arados e ganchos de poda (10; aqueles que passam os dias na terra),²ⵠe os fracos que se acham fracos demais para instrumentos ou armas (10 os muito jovens, os muito velhos, os parados, os coxos e os cegos, qualquer um normalmente fraco para trabalhar ou assustado demais para lutar). Diga o fraco: “Sou um guerreiro!” (10).
Todos, de todas as nações, deverão estar lá:
Venham depressa, vocês, nações vizinhas,
e reúnam-se ali (11).
Este é o momento de despertar, assim como os membros da nação tiveram que ser reunidos para o dia do jejum no templo (1:14; 2:16), tanto jovens como velhos. Não há tempo a perder. Este é o chamado do Deus Todo-Poderoso. Joel vê 'Multidões, multidões no vale da Decisão' (14). A palavra multidões traduzida tem a conotação de pânico; uma reunião muito barulhenta e confusa, como o barulho causado por bilhões de gafanhotos. Demais para serem contados - todas as nações (quatro vezes as nações são mencionadas em quatro versos). Esta é a palavra para “gentios”; o povo de Israel já está lá, porque Joel vê esta guerra santa ocorrendo na terra santa, tendo como audiência o povo santo na cidade santa (16).
É neste vale que o profeta ora a Deus para derrubar os poderosos: Faze descer os teus guerreiros, ó Senhor! (11). Esta oração quase parece uma resposta repentina à compreensão do profeta de que as linhas de batalha estão sendo travadas por números muito desiguais - todas as multidões das nações contra o Senhor e seu povo. Joel parece estar dizendo: “Precisamos de seus anjos, ó Senhor Deus dos exércitos” ('os exércitos’ nesse título se referem a seres angélicos em formação de batalha).
Também pode haver um lembrete dos gafanhotos, que Deus claramente chamou de 'meu grande exército' (2:25):
¹ Outras informações sobre o Dia do Senhor são fornecidas em Is. 24: 1 -7:13; Zc. 14: 1-7; Ml 3: 16-4: 6; Mt. 12:36; Atos 17: 30-31; 1 Cor. 3:13; 4: 5; 15:52; 2 Cor. 5:10; 1 Thes. 3:13; 2 Thes. 1: 8.
² Dillard, p. 300. ³ Jr 29:14; 30:18; 32:44; Sf 3:20. ⴠOs 6:11; Ez. 16:53.
âµ Para outros vales bíblicos considerados locais para cenários semelhantes, consulte Jr 7: 31ss .; 19: 7; É. 22:10, Ez. 39:11; Zc. 14: 4-5.
â¶ Hubbard, p. 74.
ⷠDt. 32:10; Zc. 2: 8. ⸠Ver Gl 6:16.
⹠Js 1: 1-6. ¹ⰠGn 13: 14-17.
¹¹ Dillard, p. 301. ¹² The Independent, 23 de dezembro de 1995.
¹³ Dillard, p. 301.
¹ⴠSl 7:12-16. ¹ⵠGl 6:7-8. ¹ⶠRm 1:24, 26,28. ¹ⷠ1Sm 17.
¹â¸Jz16.
²ⰠAm 1:9.
¹⹠Hubbard, p. 76.
²¹ Por exemplo, a Rainha de Sabá em 2Cr 9: 1-12 e o 'Chanceler do Tesouro' etíope em Atos 8: 26-39.
²² A frase 'incitar', é freqüentemente usada para a atividade do Senhor em e com diferentes pessoas e nações, por exemplo, Is. 13: 7; 19: 2; 41: 2,25; 45:13; Jr 50: 9; 51: 1; Ez. 23: 22-23.
²³ Hubbard, p. 77.
²ⴠHubbard, p. 77.
²ⵠEm passagens idênticas (Is. 2: 4 e Mq 4: 3), imagina-se um tempo futuro quando o oposto acontece: os homens convertem suas espadas em arados e suas lanças em ganchos de poda. É provável que o ditado tenha sido uma frase popular para aprender a fazer a paz, não a guerra. Nesse caso, Joel está dizendo aqui que o Dia do Senhor é um tempo de guerra.
O Senhor levanta a sua voz
à frente do seu exército.
Como é grande o seu exército! (2:11).
A convicção de Joel é que um exército de anjos, associado ao exército de gafanhotos de Deus, será necessário neste grande confronto com as nações. Há uma dica, também, da oração de Eliseu por seu jovem servo quando enormes forças sírias tinham cercado o povo de Samaria: “Senhor, abre os olhos dele para que veja” que “aqueles que estão conosco são mais numerosos do que eles”. O Senhor então abriu os olhos do jovem e viu que “as colinas cheias de cavalos e carros de fogo ao redor de Eliseu.” (2 Ki. 6,15-17).
O que, então, acontecerá no vale da decisão, com todas as multidões das nações reunidas para esta guerra santa e o próprio Senhor em seu trono de julgamento? A atmosfera é elétrica: em 3:9-13 há quinze imperativos, “dando expressão viva ao teor frenético da passagem”.²ⶠA voz da autoridade suprema soa do trono do julgamento:
Lancem a foice,
pois a colheita está madura.
Venham, pisem com força as uvas,
pois o lagar está cheio
e os tonéis transbordam,
tão grande é a maldade dessas nações! (13).²â·
Estas ordens são presumivelmente dirigidas aos anjos, os guerreiros de Deus. O Senhor rugirá de Sião, e de Jerusalém levantará a sua voz; a terra e o céu tremerão. Mas o Senhor será um refúgio para o seu povo, uma fortaleza para Israel. (16). O profeta vê o vale da decisão como próximo a Jerusalém, semelhantemente à descrição que Zacarias faz do Senhor, em juízo com os seus santos, passando por um imenso vale causado por uma enorme fenda no Monte das Oliveiras - e nesse vale estão reunidas “todas as nações” (Zc. 14:1-5). De tal ponto de vista, 'O Senhor rugirá de Sião, e de Jerusalém levantará a sua voz' (16) com seu volume absoluto, mas ainda mais com seu pronunciamento de que sua maldade é grande (13).
Este pronunciamento de Deus no vale da decisão deixa claro de uma vez por todas que vivemos em um universo onde as questões finais são morais e espirituais. Quando Deus se assenta para julgamento, a questão é a maldade humana. A iniqüidade não mais triunfará. Não ficará encoberta, nem parecerá fascinante ou atraente, nem será confundida com bondade. Não mais será exaltada, admirada, invejada, ignorada, glamorizada ou trivializada. Quando Deus olha para a maldade, para ele não é nada menos que repugnante.
A linguagem da colheita de trigo e vinho evoca novamente a devastação dos gafanhotos. O exército de Deus, então, tinha arrancado os campos e despojado as videiras de suas uvas (1:10-12). Esta destruição tinha sido revertida pela bondade do Senhor (2:22-24). Agora a colheita estava novamente pronta - para julgamento, não para alegria. Os odres estavam novamente transbordando (2:24; 3:13) - com maldade, não com vinho.
Se há uma única característica da maldade da humanidade caída que causa náusea em Deus, é a violência. Isto já se tornou aparente nas acusações que Deus traz contra as nações neste capítulo.²⸠Pode haver um ângulo deliberado para a instrução sobre arados e ganchos de poda (10): ‘Quando as nações forem reunidas no vale, totalmente equipadas para a batalha, elas receberiam um choque; encontrariam lá o Juiz de todas as nações e em suas mãos estariam segurando a prova incriminatória de sua própria violência’.’²â¹
Joel pela terceira vez afirma que o Dia do Senhor está próximo (14).³ⰠNa verdade, temos a forte impressão de que, no vale da decisão, esse dia já amanheceu. É tarde demais para que qualquer decisão seja tomada pelas nações ou por indivíduos: eles já tomaram as decisões que importam - seguir a maldade, rejeitar a Deus e atacar seu povo. A única decisão a ser tomada (ou talvez anunciada) naquele dia, naquele vale, é o veredicto de Deus. A visão de João no Apocalipse 14 descreve a cena:
Olhei, e diante de mim estava uma nuvem branca e, assentado sobre a nuvem, alguém “semelhante a um filho de homem” Ele estava com uma coroa de ouro na cabeça e uma foice afiada na mão. Então saiu do santuário um outro anjo, que bradou em alta voz àquele que estava assentado sobre a nuvem: “Tome a sua foice e faça a colheita, pois a safra da terra está madura; chegou a hora de colhê-la”. Assim, aquele que estava assentado sobre a nuvem passou sua foice pela terra, e a terra foi ceifada.
Outro anjo saiu do santuário dos céus, trazendo também uma foice afiada. E ainda outro anjo, que tem autoridade sobre o fogo, saiu do altar e bradou em alta voz àquele que tinha a foice afiada: “Tome sua foice afiada e ajunte os cachos de uva da videira da terra, porque as suas uvas estão maduras!” O anjo passou a foice pela terra, ajuntou as uvas e as lançou no grande lagar da ira de Deus. Elas foram pisadas no lagar, fora da cidade, e correu sangue do lagar, chegando ao nível dos freios dos cavalos, numa distância de cerca de trezentos quilômetros (Apoc. 14:14-20).
Esta terrível cena de destruição, para pôr fim a toda destruição e violência, deve ser acompanhada, diz Joel, por sinais nos céus e na terra: O sol e a lua escurecerão, e as estrelas já não brilharão. (15) - uma repetição palavra por palavra do cenário dos gafanhotos (2:10). Um vizinho em nossa aldeia no pé dos Pirineus nos disse que esta foi precisamente a experiência quando uma horda de gafanhotos invadiu a região durante a Segunda Guerra Mundial. A presença de tropas alemãs, incluindo a Gestapo, na região agravou a destruição das lavouras de milho causadas pelos gafanhotos.
3. Livramento (3: 16b-21)
Naquele dia verdades serão manifestadas: o Senhor será um refúgio para o seu povo, uma fortaleza para Israel (16).³¹ A geração que viveu no tempo de Joel provou que isto era verdade. Quando seu mundo estava sendo sacudido dramaticamente, eles descobriram que existe um lugar de segurança no próprio Senhor. Quando não havia outro lugar para fugir eles correram para o Senhor e encontraram refúgio. No grande dia do julgamento sobre todas as nações, haveria novamente apenas um lugar para se esconder. Mas de nada adiantaria procurar o Senhor, se eles não procurassem o Senhor agora. Não existe nova verdade a ser descoberta naquele dia; apenas a confirmação da verdade já revelada e recebida. A diferença é que as apostas são muito maiores. Esta será a última vez, porque esta será o tempo em que a terra e o céu tremerão (16) em um último espasmo de destruição.
É somente quando nosso ambiente confortável está sendo sacudido até as bases que realmente experimentamos a relevância de verdades antigas e familiares. Esta afirmação sobre o Senhor (16) é um exemplo clássico. Se nosso mundo parece seguro, quem precisa de um refúgio? Se temos vidas bem organizadas com fartos recursos materiais, sociais, religiosos e humanos para nos cercar, dificilmente precisamos de um refúgio em outro lugar para nos esconder. Muitas pessoas auto-suficientes, competentes e ajustadas genuinamente não vêem nenhum sentido em ter fé em Deus; ele é supérfluo - um recurso para os fracos e perdedores.
O aspecto triste e sério de tal complacência, é claro, é que mesmo esse tipo de ateísmo respeitável (prático, geralmente não confessional) tende a ser abalado em algum momento. Isso produz um conflito interno que pode ser pior do que a adversidade que o provoca. Tendo efetivamente descartado a fé em Deus como uma muleta para os emocionalmente aleijados, eles descobrem que o mesmo orgulho silencioso em que navegaram em sua serenidade agora os paralisa em sua agonia.
É de suma importância para os mensageiros de Deus em cada geração comunicar não um 'Deus das brechas' ou 'dos ingênuos', mas um soberano Senhor do céu e da terra que, em Cristo, chamou para que cada joelho se curvasse diante dele. Embora os quebrantados de coração estejam mais prontos para se curvar diante dele, o elo perdido é a humildade, não a desesperança.
Os últimos cinco versículos de Joel (17-21) são o que, para o profeta e seu povo, era simples e fundamental, mas havia se tornado assunto para sérias dúvidas durante a devastação dos gafanhotos: o Senhor habita em Sião (21, cf.17, Eu sou o Senhor vosso Deus, que habita em Sião). Dois eventos surpreendentes - a restauração da terra e do povo de Deus depois dos gafanhotos (2:27) e a libertação do povo de Deus no dia do julgamento (17) - terão um impacto semelhante: Então vocês saberão que eu sou o Senhor, o seu Deus.
Esta “fórmula de reconhecimento”³² é muitas vezes reflexiva no Antigo Testamento, sublinhando o fato de que Deus “age para acreditar a si mesmo”. O que Ele promete fazer, Ele faz - com seu povo e com as nações. E o resultado de suas ações é demonstrar mais uma vez o que nunca deixou de ser verdade - que Ele vive entre seu povo. Nada no curso da história ou no dia do julgamento pode alterar esse fato. Não temas, pois estou com vocês”:³³ esta promessa permanece para sempre a declaração de intenções de Deus.
Quando o povo de Deus vive na certeza da presença de Deus, então eles descobrem que Ele é realmente o Senhor. Assume, em função disso, três características: são santos (17), estão satisfeitos (18); e são diferentes (19-20). A primeira é a determinante: podemos ser satisfeitos sem sermos santos, e podemos ser diferentes sem sermos santos; mas quando Deus é presente - aliado em nosso meio, não podemos deixar de ser santos - e isso é o que traz a satisfação e faz a diferença.
³³ Isaías 41:10, mas a promessa, de uma forma ou de outra, vem várias vezes.
a. Povo santo de Deus (3:17)
Jerusalém será santa (17). O Senhor acaba de chamar Sião de 'meu monte santo' (17), e esta é a primeira vez que a santidade foi mencionada por Joel - uma admissão tácita de que a cidade não era nada santa na época. As coisas irão mudar naqueles dias, como declarou outro profeta: “Estou voltando para Sião e habitarei em Jerusalém. Então Jerusalém será chamada Cidade da Verdade, e o monte do Senhor dos Exércitos será chamado monte Sagrado” (Zc. 8:3). Zacarias também vê esta santidade permeando toda a cidade, até os utensílios básicos e apetrechos da vida diária: “Naquele dia, estará inscrito nas sinetas penduradas nos cavalos: “Separado para o Senhor”. Os caldeirões do templo do Senhor serão tão sagrados quanto as bacias diante do altar. Cada panela de Jerusalém e de Judá será separada para o Senhor dos Exércitos, e todos os que vierem sacrificar pegarão panelas e cozinharão nelas. E, a partir daquele dia, nunca mais haverá comerciantes no templo do Senhor dos Exércitos.” (Zc. 14:20-21).
Na perspectiva bíblica, nada e ninguém é santo, a menos que a vida cotidiana e as coisas cotidianas (como tachos e panelas) sejam sagradas. Costumava haver uma mensagem acima das pias da cozinha em alguns lares cristãos: “Serviço divino é realizado aqui três vezes ao dia”. Esse é o espírito desta passagem em Zacarias e é o espírito do Reino de Deus, já introduzido pelo Messias, mas a ser consumado como resultado do Dia do Senhor: Jerusalém será santa (17).
No livro do Apocalipse, João também tem uma visão semelhante da nova Jerusalém:
Então vi novos céus e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham passado; e o mar já não existia. Vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus, preparada como uma noiva adornada para o seu marido. Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia: “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens, com os quais ele viverá. Eles serão os seus povos ; o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus (Ap 21:1-3)..
A santidade é o resultado da presença de Deus. Deus faz de Jerusalém 'a cidade santa' porque Ele habita lá com seu povo. Não há outro caminho para a santidade, nenhum outro tipo de santidade. Um povo santo, uma vida santa, um lugar santo, uma cidade santa vêm da presença de um Deus santo.
Joel vê ainda outro aspecto desta santidade: estrangeiros jamais a conquistarão (17). Estranhos, ou “estrangeiros”, referem-se aos exércitos invasores e a qualquer pessoa com projetos sobre a cidade. A história de Jerusalém tem sido uma saga constante de invasão, ocupação, apropriação e devastação estrangeira. O próprio Jesus predisse tanto a queda de Jerusalém na vida de seus próprios contemporâneos (que aconteceu em 70 AD), quanto o fato de que Jerusalém seria “pisada pelos gentios, até que os tempos deles se cumpram” (Lc 21,24).
Esta não é uma forma israelita de xenofobia, porque os ‘estrangeiros’ (também traduzidos como ‘estranhos’, mas na verdade uma palavra diferente no hebraico) não só eram bem-vindos em Israel, mas receberam direitos especiais (em memória da permanência de Israel no Egito).³ⴠA preocupação é manter de fora qualquer pessoa que despreze ou contamine a santidade da cidade. Isaías captou o estado de espírito:
Desperte! Desperte, ó Sião!
Vista-se de força.
Vista suas roupas de esplendor,
ó Jerusalém, cidade santa.
Os incircuncisos e os impuros
não tornarão a entrar por suas portas (Is 52,1).
- ou, nas palavras de João, “nada de impuro entrará nela, nem quem pratique abominação ou falsidade, mas somente aqueles cujos nomes estão escritos no livro da vida do Cordeiro” (Ap 21,27). A santidade é gloriosamente positiva - nada menos que a natureza de Deus - mas também exclui qualquer coisa ou qualquer pessoa impura.
b. O povo satisfeito de Deus (3:18)
A segunda característica da nova Jerusalém de Joel é a satisfação:
Naquele dia, os montes gotejarão vinho novo;
das colinas manará leite;
todos os ribeiros de Judá terão água corrente.
Uma fonte fluirá do templo do Senhor
e regará o vale das Acácias (18).
A santidade leva a uma profunda satisfação, aqui expressa na abundante provisão de vinho, leite e água. O vinho será doce, não amargo, e simplesmente escorregará das uvas, como se as encostas das montanhas com seus vinhedos estivessem pingando, tornando a vinicultura desnecessária, as prensas um anacronismo e os toneis supérfluos. As vacas estarão em tal forma que o leite fluirá positivamente de seus úberes: não haverá necessidade de ordenhá-las. Em vez da chuva que escorre das colinas, eles parecerão fluir com o leite. A água correrá pelos leitos dos rios e, se isso não for suficiente, surgirá uma fonte para trazer água para os vales.
Este quadro de superabundância supera os anos de bênção após o trabalho restaurador de Deus após a praga dos gafanhotos (2:22- 24). Nada que alguém tenha experimentado, mesmo nos dias mais gloriosos da bênção de Deus, capaz de se comparar com o que estará disponível para o povo de Deus naquele dia. A terra prometida havia sido originalmente “uma terra que fluía com leite e mel” (Js 5:6). Agora, depois de toda a fome, guerra, gafanhotos e outras pragas, sua fertilidade deveria ser assegurada. Esta superabundância indicaria também que a maldição, pronunciada na terra por Deus após a desobediência de Adão e Eva (“espinhos e cardos que vos trará”, Gn 3:18, tinha finalmente sido levantada.
A verdadeira fonte dessa superabundância é clara: Uma fonte fluirá do templo do Senhor e regará o vale das Acácias (18).³ⵠEsta fonte de água é vista como uma provisão sobrenatural, proveniente da vida de adoração do povo de Deus. Como sua santidade é renovada e aprofundada pela presença de Deus em seu meio, esta profunda satisfação se tornará realidade como fruto de sua vida com Deus.
c. O diferente povo de Deus (3:19-21)
A terceira característica do povo de Deus naquele dia é que, pela santidade que a presença de Deus proporciona, eles serão totalmente diferentes de todos os outros, tipificados por Egito e Edom (19). Assim como os fenícios e filisteus foram mencionados como exemplo antes no capítulo (4-8), assim os egípcios e os edomitas são destacados pela violência feita ao povo de Judá, porque derramaram sangue inocente em sua terra. Inocente aqui não significa sem pecado ou culpa diante de Deus, mas “não merecendo” o tratamento que lhes foi dado pelos egípcios e edomitas. Nosso próprio uso do termo “inocentes que sofrem” precisa de cuidados semelhantes.
A acusação novamente é violência. Violência contra Israel em Israel. Ambas as nações tinham uma longa história de hostilidade contra Israel. Ambas serão destruídas, devastadas e despovoadas: Mas o Egito ficará desolado, Edom será um deserto arrasado (19). Ao contrário da previsão temporal específica do julgamento dos fenícios e dos filisteus (7-8), há aqui apenas um pronunciamento geral. O contexto sugere que este julgamento é um julgamento que ocorrerá no Dia do Senhor. É sábio, portanto, ver o Egito e Edom a partir dessa perspectiva escatológica. O Egito representa os poderes mundanos em suas tentativas de exterminar o povo de Deus, enquanto Edom representa a incessante hostilidade e ódio entre o mundo e o povo de Deus.
A diferença entre Egito e Edom, de um lado, e Judá e Jerusalém, do outro, é que o primeiro ficará desolado, enquanto o segundo será habitado - para sempre. . . a todas as gerações (20). A desolação do Egito é particularmente impressionante, devido à enorme fertilidade do vale do Nilo.
Esta, novamente, é uma decisão do Senhor. É possível rastrear ocasiões específicas na história de ambas as nações em que agiram violentamente contra Israel e Judá. Os egípcios, por exemplo, mandaram matar Josias em Megido em 609 aC; o texto diz sem rodeios que 'Faraó Neco o matou em Megido, quando o viu' (2 Reis 23: 28-30).
Os edomitas, descendentes de Esaú, irmão gêmeo de Jacó, atraíram particularmente a atenção de Obadias como porta-voz de Deus. Quando Nabucodonosor, rei da Babilônia, finalmente capturou e destruiu Jerusalém em 586 aC, os edomitas se aproveitaram da miséria de seu vizinho (e irmão) com ‘oportunismo cruel’:³
No dia em que você ficou por perto,
quando estrangeiros roubaram os bens dele,
e estranhos entraram por suas portas
e lançaram sortes sobre Jerusalém,
você fez exatamente como eles.
Você não devia ter olhado com satisfação
o dia da desgraça de seu irmão;
nem ter se alegrado com a destruição do povo de Judá;
não devia ter falado com arrogância
no dia da sua aflição.
Não devia ter entrado pelas portas do meu povo
no dia da sua calamidade;
nem devia ter ficado alegre com o sofrimento dele
no dia da sua ruína;
nem ter roubado a riqueza dele
no dia da sua desgraça.
Não devia ter esperado nas encruzilhadas,
para matar os que conseguiram escapar;
nem ter entregado os sobreviventes
no dia da sua aflição (Ob. 11-14).
Obadias, de fato, declara o princípio moral em ação no 'Dia do Senhor' no que diz respeito a nações como Egito e Edom:
Como você fez, assim será feito a você.
A maldade que você praticou recairá sobre você (Ob. 15).
O veredicto de Deus é resumido no versículo final de Joel, onde a melhor tradução de um manuscrito confuso é provavelmente: ‘Eu vingarei o sangue deles, que ainda não foi vingado.’ (21, nas).
Com uma declaração tão conclusiva Deus deixa absolutamente claro que, por mais tempo que leve, fará com que as nações sejam punidas por seus atos de violência, especialmente a seu povo. Por trás de tal afirmação específica estaria outra promessa mais geral, no sentido de que ninguém escapará impune neste mundo. Deus vê tudo isso, sabe tudo isso e julgará tudo.
Este importante fator no julgamento de Deus sobre o mundo deveria nos dissuadir fortemente de tentar resolver as coisas com nossas próprias mãos, ou de abrir mão da fé em um Deus justo e (portanto) como base moral para o universo. Os egípcios e os edomitas sem dúvida pensavam que, com o passar dos anos e a ocorrência de outros atos de violência, seu próprio registro passaria pela fumaça do tempo e seria esquecido. Joel remove quaisquer esperanças vãs.
A memória e atenção de Deus aos detalhes não mudam como nossas mídias contemporâneas, de acordo com o último desastre ou genocídio. Ele tem livros³ⷠe um cálice,³⸠que juntos são mais precisos que o computador mais atualizado do mundo com o software mais recente. Estes têm uma capacidade ilimitada. Eles contêm tudo o que alguém já pensou, disse ou fez. Em um livro em particular estão escritos os nomes daqueles que estão no registro de cidadãos da nova Jerusalém.³⹠No cálica estão guardadas todas as lágrimas do povo de Deus.
Chegará o dia - o Dia do Senhor - em que ‘Ele trará à luz o que está oculto nas trevas e manifestará as intenções dos corações’ (1 Cor. 4:5), tudo a partir de seus registros completos. Seu veredicto será então tornado público. Este veredicto deixará claro para todos a diferença radical e eterna que Deus faz entre aqueles que são o povo de Deus e aqueles que não são.
Sem dúvida, haverá muitas surpresas, mas não haverá mais discussões ou decisões. De seu próprio povo Deus diz: No dia em que eu agir”, diz o Senhor dos Exércitos, “eles serão o meu tesouro pessoal. Eu terei compaixão deles como um pai tem compaixão do filho que lhe obedece. 18Então vocês verão novamente a diferença entre o justo e o ímpio, entre os que servem a Deus e os que não o servem (Ml 3:17-18).
Não pode escapar de nossa atenção que, no final de um livro que falou eloquentemente tanto da ira quanto da graça de Deus, a intenção final de Deus é uma declaração de vingança: Sua culpa de sangue, ainda não perdoada, eu a perdoarei (21). Este é o mesmo Deus que diz: “derramarei meu espírito sobre toda a carne” (2,8). Gafanhotos ... chuva ... seu Espírito ... seu julgamento: estes são os temas deste livro, que chegou a Joel como a palavra do Senhor. Cada tema é apresentado como algo avassalador e abundante. Cada tema é apresentado na perspectiva do Dia do Senhor.
É, portanto, absolutamente correto temer a Deus à luz da mensagem de Joel - não o medo infiel que Joel dirigiu diretamente (2:21), mas o temor do Senhor, que é “limpo” (Sl 19:9) e que é “o princípio da sabedoria” (Sl 111:10). Joel nos convida a clamar a Deus (capítulo 1), voltar para Deus (2,1-17), alegrar-se em Deus (2,18-32) - e depois temer a Deus (capítulo 3).
Venham, meus filhos, ouçam-me;
eu ensinarei a vocês o temor do Senhor (Sl 34:11).
Se, na pungente palavra de Malaquias, vamos ser poupados no dia em que Deus finalmente agir, â´â° certamente precisamos fazer a oração de Habacuque:
Senhor, ouvi falar da tua fama;
tremo diante dos teus atos, Senhor.
Realiza de novo, em nossa época, as mesmas obras,
faze-as conhecidas em nosso tempo;
em tua ira, lembra-te da misericórdia (Hab. 3:2).
Essa deve ser a nossa resposta à mensagem de Joel hoje: 'Senhor, renova e faze conhecida (para que todos vejam) a obra do teu Espírito. Senhor, no dia de teu justo julgamento, lembre-te da misericórdia.'
²ⶠDillard, p. 306. ²ⷠPara as imagens do lagar, sec Is. 63: 3-6.
²⸠Refletida em outras partes dos profetas (por exemplo, Is. 59: 6; Jr 6: 7; Ezequiel 7:23; Os 12: 1; Am 3:10; Mq 6:12), notadamente no tema principal de Habacuque (1: 2,3, 9; 2: 8, 17).
²⹠Craigie, 1, p. 116. ³ⰠCf 1:15; 2: 1.
³¹ Ver mais de trinta salmos, familiares a Joel na liturgia do templo: por exemplo, Pss. 18; 31; 46; 57; 62; 71; 91; 118; 142.
³² Dillard p. 292; a fórmula ('então você saberá que eu sou o Senhor') vem, por exemplo, Ex. 6: 7; 1 Reis 20:13, 28; É. 43:10; Ez. 39: 6.
³ⴠVer Ex. 23: 9; Lv. 19: 33-34.
³ⵠ'Shittim' poderia ser traduzido como 'acácias' (sittim). Finley (p. 101) escreve sobre “sempre-vivas com flores amarelas e madeira útil que crescem principalmente nos vales ao redor do Mar Morto”.
³ⶠHubbard, p. 83.
³ⷠAp 20:12. ³â¸Sl 56:8. ³â¹Ap 20:15.
â´â° Ml 3:17."