A Puericultura e os Novos Cuidadores: Uma Nova Realidade Social

Quem Cuidará das Crianças? A Difícil Tarefa de Educar os Filhos Hoje. A Nova Composição Familiar pode Alterar o Desenvolvimento e o Cuidado dos Filhos?
José Martins Filho

As profundas modificações da sociedade estão levando a uma nova realidade no convívio familiar...
Não bastasse toda a revolução causada nas últimas décadas pela chegada definitiva da mulher ao mercado de trabalho e a consequente sobrecarga que isso lhe ocasionou, vemos também uma mudança estrutural importante, em que todas as relações entre as crianças e seus pais foram modificadas. Na verdade, o tempo gasto hoje, pelos pais com seus filhos, tem diminuído de forma muito intensa, havendo alguns trabalhos no Brasil e no exterior em que menos de meia hora por dia de contato útil e efetivo dos filhos com seus cuidadores se transformou numa realidade.

As mães e os pais frequentemente saem de casa muito cedo e não têm tempo para almoçar com seus filhos, brincar, dar atenção, educar e principalmente pôr limites. Isso está se tomando uma constante em muitos lares, com sérias repercussões sobre a saúde física e emocional das crianças que, frequentemente, acabam sendo cuidadas por outras pessoas que não os familiares mais próximos. É o que chamamos da criança terceirizada. Embora a sociedade atual muitas vezes nem se dê conta da importância disso, há evidências muito claras de que essa falta de afeto, de carinho e de vínculo acaba sendo frequentemente a causa de distúrbios importantes de comportamento, e estou convencido de que muito mais do que a simples falta de condições econômicas, a falta de família, de carinho e de atenção pode estar na origem da violência urbana que vemos hoje em nossa sociedade. Quantos infelizes seres humanos, confinados em prisões, muitas vezes são pessoas que nunca puderam chamar ninguém de mãe e, claro, muito menos de pai...

Nos tempos atuais, a presença da família acaba sendo fundamental na sedimentação da capacidade de adaptação das pessoas a um mundo cada vez mais competitivo e crítico...

Desde a primeira fase da vida, a relação mãe-filho é fundamental. Winnicott, um psicanalista pediatra, já dizia há décadas que o bebê é ele e sua mãe, que ele não existe sozinho e que só descobre que é um ser independente, diferente da mãe que o amamenta, por volta dos sete ou oito meses de vida, e mais, afirma ainda que é provável que a capacidade de alguém encontrar felicidade e de encarar a vida com otimismo pode depender de um tempo e de uma pessoa (o primeiro ano de vida e da mãe). Por isso, a luta imensa atual de estimularmos a amamentação e também de aumentarmos mais ainda a licença-gestante, que hoje na maioria das vezes não passa dos quatro meses de idade do bebê (algumas firmas grandes aceitaram o desafio de aumentar para seis meses essa licença em troca de benesses fiscais).

Cabe aqui uma informação importante, pois a Sociedade Brasileira de Pediatria, através do seu Presidente da época, o Dr. Dioclecio Campos, juntamente com a Senadora Patrícia Sabóia, tentou junto ao governo a aprovação da licença de 6 meses para todas as mulheres no mercado de trabalho, mostrando a imensa necessidade do contato das mães com as crianças nesse período e, principalmente, os benefícios para a saúde física e mental que seguramente ocorreriam com esse avanço na legislação trabalhista. Num primeiro momento, houve apoio do governo para que as firmas adotassem os seis meses de licença-maternidade, inclusive com uma proposta inovadora de que as empresas teriam benefícios fiscais caso adotassem essa nova modalidade de licença para suas empregadas. Porém, era a época da crise mundial e a discussão começou a chegar à questão dos prováveis prejuízos na arrecadação, se esses benefícios fossem concedidos. Num cálculo feito pelos setores competentes, afirmou-se que, à época, a renúncia fiscal poderia chegar aos 400 milhões de dólares, e então o governo mudou de opinião e apenas concedeu o beneficio para as pequenas empresas, deixando opcional para as grandes esse tipo de atitude que tanto beneficiaria nossas crianças.

Lamentável foi que, logo a seguir, para defender a economia, o próprio governo foi obrigado a conceder grandes diminuições nos impostos relacionados aos automóveis e a diminuição destes levou, ao que parece, a uma renúncia de 6 bilhões de dólares, ou seja, parece que as crianças e suas mães perderam para os automóveis, que foram considerados prioritários. (Para que os leitores tenham ideia, em alguns países, mais desenvolvidos, a licença-gestante pode chegar aos dois anos de vida do bebê, e em alguns deles, o primeiro ano é da mãe, mas o segundo, se o casal assim o desejar, pode ser do pai, já que nesse momento, então, a mãe pode retomar o seu lugar na cadeia produtiva. Mas há um senão, por lá, quem paga os custos dessa benesse social é o Estado e não o Patrão. E por quê? Porque parece ser muito mais econômico e produtivo deixar a criança em sua família do que mandá-la precocemente para as creches onde, claramente, aumentam as chances das enfermidades infecciosas, nutricionais e de desenvolvimento psíquico e cognitivo...

Mas nem sempre os jovens casais estão preparados para entender o quanto muda a vida após o nascimento de um filho, e freqüentemente são tomados por surpresas, ao perceberem que a criança acorda à noite, tem febre, chora, tem que ser alimentada, banhada, ninada, adormecida e mesmo ser afagada e acariciada para se sentir feliz e amada.


Às vezes as pessoas dizem (sempre em minhas palestras essa frase é repetida) que o que interessa é a qualidade e não a quantidade. Pois é, mas qualidade precisa de um tempo mínimo de afeto e de atenção. Experimente dizer para seu patrão que vai trabalhar apenas 15 minutos por dia, mas com muita qualidade e veja quais serão os resultados. A criança também não aceita e não entende que dois beijinhos pela manhã antes de ir para a escola e outro à noite quando é colocada na cama sejam suficientes. E a carência afetiva é uma marca de nossa infância. E nas famílias mais abastadas, quando a criança é colocada sob os cuidados de uma babá, esquecem que a boa babá ama a criança que cuida, apaixona-se por ela e a criança devolve esse afeto, e quando a mãe percebe que a outra está sendo a mãe a demite e coloca outra, que faz com que o ciclo recomece, e novamente é preciso uma nova formação de vínculo...


Sabemos que as pessoas no mundo de hoje, infelizmente, trabalham muito e têm muito pouco tempo para ficar com as crianças. É preciso priorizar o tempo com a criança, conversar com ela, vir almoçar em casa se possível, dar atenção especial, telefonar do trabalho, ir à escola, perguntar todos os dias como foi o dia, fazer as lições junto com ela e principalmente nos finais de semana, dar atenção, não substituir a praça, a praia, o jogo de bola, o brinquedo no quintal pelo passeio no shopping ou no supermercado, que decididamente não são os locais adequados para uma criança passear com a família.


Criança precisa de programa especial para ela, em que ela seja a peça principal. E se fica doente, é preciso acompanhá-la ao médico, dar-lhe atenção, pedindo a devida licença em seu trabalho. Tudo isso é fundamental para que a mesma se sinta respeitada e amada, e possa ser educada e colocada em um mundo competitivo e difícil como o que vivemos. Numa consulta de puericultura com uma família muito atenta aos cuidados com seus filhos, perguntei a um menino de seis anos: E aí, fulaninho, você passeia bastante com o papai e com a mamãe? E ele me respondeu. Ah tio, todo sábado nós vamos no supermercado e no domingo, se não tem jogo de futebol, o papai e a mamãe me levam shopping... ora, não é isso... isso não é programa de criança e sim da família, e esse hábito de levar as crianças para ver vitrines é uma forma quase compulsiva de introduzi-las numa vida consumista que, infelizmente, começa muito cedo, até porque há pais que, não tendo tempo de brincar e passear com seus filhos, enchem-nos de brinquedos, mas não ficam com eles, não brincam, não correm, não conversam. Isto é também puericultura, e se o pediatra não ficar preocupado com isto, seguramente poucos outros profissionais que cuidam de crianças terão oportunidade, em exames de rotina e seguimento de puericultura, de conversar sobre isto.


Problemas como alcoolismo (as crianças estão começando a beber às vezes aos 12 anos de idade e na maioria das vezes na própria casa), tabagismo e, infelizmente, as drogas e a sexualização precoce são consequências funestas da falta de presença, apoio e de atitudes paternas e maternas.


Nos meus últimos três livros (“A criança terceirizada”; “Cuidado, afeto e limites”; e “Quem cuidará das crianças?”), tenho trabalhado com essas questões e faço sugestões de mudança de atitude dos pais e de nós, pediatras, que temos de transformar a Puericultura, a pediatria da criança sadia, novamente como a atividade mais importante da medicina infantil. As pessoas não devem levar suas crianças ao médico só quando estão doentes, mas é muito importante encontrar no posto de saúde, ou no seu médico, as informações, orientações e ajuda para construir o futuro dos filhos.


E se não bastasse todas as considerações citadas, seguramente não podemos nos esquecer de que a família propriamente dita também está em franca, ampla e grande modificação. Na verdade, o que vem e sentimos no dia a dia do atendimento da criança é que os casais, os cuidadores, os que ficam com a criança hoje, são bem diferentes do que víamos alguns anos ou décadas atrás. Temos na verdade um caminho importante a seguir para avaliar o que está acontecendo com essa nova composição familiar, em que muitas vezes as pessoas não conseguem perceber bem, principalmente as crianças, quem são os seus verdadeiros cuidadores. Tenho visto crianças com pais e mães separados que vão ao consultório às vezes com o pai e a madrasta, outras vezes com o padrasto e a mãe... crianças que chamam de avós quatro pessoas, mas às vezes oito ou até mais, dependendo do número de vezes que os seus genitores se separaram e voltaram a casar.


Nesse sentido, todos nós, os pediatras mais antigos, estávamos acostumados a ver, no consultório, famílias grandes. Era muito comum há algumas décadas e isso me acontecia muito quando comecei a clinicar em 1969, mães com três, quatro e às vezes até mais filhos, quase sempre marcavam a consulta para um menorzinho, mas invariavelmente acabávamos por ver os irmãos mais velhos, acertávamos a caderneta de vacinas de outro, pesávamos um terceiro etc. E hoje, o número de crianças que vêm ao consultório evidentemente mudou. É muito comum vermos famílias de três pessoas com um só filho e quando vem o segundo, frequentemente é motivo de preocupação, principalmente de ordem econômica e também, claro, pela questão de ambos os pais trabalharem fora de casa, e muitas vezes as avós também, e fica difícil ver quem vai cuidar das crianças. Lembro-me de fato curioso que me aconteceu na clinica há algum tempo... baseando-me na experiência de décadas atrás, fiquei surpreso ao ver uma mãe com quatro crianças e não resisti ao comentário elogioso, pela coragem da família grande nos tempos modernos, e ela jocosamente me respondeu: - “Pois é Doutor, estes dois são meus, aquele é dele e este quarto menorzinho é nosso...” Sorri e fiquei bem quietinho, pois acabei por me dar conta de que essa realidade é cada vez mais atual.


As famílias estão mudadas também, hoje é muito comum o que os sociólogos chamam de famílias mosaico, que são representadas por muitas pessoas que entram e saem, às vezes, com certa naturalidade, e os outros membros se adaptam e tentam receber o novo participante, colocando-o na intimidade de suas vidas. Isso está ficando cada vez mais frequente, pois em alguns países o número de pais que se separam nos primeiros 5 anos de vida conjugal aumenta cada vez mais, já chegando perto de 50%. Ou seja, praticamente metade das famílias em alguns países, e isto não é muito diferente por aqui, acaba tendo que aceitar que seus filhos e netos terão que se adaptar a uma separação dos pais e, portanto, submeter-se a uma nova realidade. É provável que crianças nascidas hoje tenham quase 50% de chance de se transformarem em filhos de pais separados, e essa estatística tende, quase com certeza, a aumentar progressivamente. O casamento está mudando? As famílias são muito mais móveis hoje? Sim, é verdade e parece que é um movimento contínuo e dinâmico, mas, e as crianças, como ficam? Será que isso é inócuo para elas? O que existe de pesquisa com essas crianças? Como é ou será o futuro delas?


Importante salientar que essas novas famílias mosaico, cada vez mais comuns, podem dar certo e as pessoas costumam dizer que é melhor se separar do que viver brigando. Na minha experiência profissional, é preciso ter um pouco de cuidado com essas afirmações, pois tenho visto vários problemas e dificuldades com algumas dessas crianças, como salientei há poucos parágrafos, principalmente na primeira infância, e que muitas vezes pioram bastante na adolescência. Aliás, muitos trabalhos acadêmicos, alguns realizados em outros países, principalmente na Inglaterra, têm, após longos seguimentos de vários anos demonstrado que é entre essas crianças que se verificam maiores tendências a dificuldades escolares, e na idade adulta, menos sucessos no trabalho e até mesmo maior incidência de problemas emocionais que, muitas vezes, necessitam de tratamento especializado com psicólogos e/ou psiquiatras. Talvez, o grande segredo seja a aceitação dos cônjuges, que vão mudando seus companheiros e companheiras, de que o fator mais importante na prevenção das doenças futuras dessas crianças é realmente o afeto, o carinho, a presença, o respeito aos outros adultos que, segura e afetivamente, fazem parte da vida emocional desses jovens, que acabam vivendo nesses lares partilhados.


O tipo de separação do casal certamente também tem muito a ver com a capacidade de êxito adequado na vida dos filhos e dos agregados, pois no nosso livro “A criança terceirizada” pudemos desenvolver muitas discussões a respeito dessa situação peculiar. Quando a separação é consensual (o que não é fácil de acontecer), com os pais se entendendo a respeito da educação e da orientação dos filhos, as coisas costumam realmente ser mais bem entendidas e aceitas. Mas nas separações e nos divórcios litigiosos, com grandes disputas econômicas, de bens, pertences, dinheiro etc., a situação tende a se complicar e frequentemente as crianças acabam sendo as mais prejudicadas, com sequelas emocionais constantes, que precisam de apoio e ajuda profissional.


O problema das novas famílias tem que ser muito debatido, até porque hoje temos um conhecimento acumulado mostrando que, mesmo logo após o nascimento, o abandono, o descuido e o desmame precoce são altamente prejudiciais às nossas crianças. Tudo isso pode ocorrer desde o nascimento e ir se perpetuando à medida que a criança cresce, tendendo a aumentar cada vez mais os problemas de desenvolvimento cognitivo e emocional. Os novos conhecimentos de neuropediatria e neurofisiologia nos permitem afirmar que até o quarto ou quinto ano de vida, às vezes o sexto, quase 90% dos neurônios cerebrais já estão na massa encefálica, e que problemas graves ocorridos nessa fase, principalmente nos primeiros anos, acabam por ter papel fundamental na formação da personalidade e nas características psicossociais do futuro adulto.


Winnicott, pediatra e psicanalista, já nos ensina de forma contundente, como já disse antes, e como cito no meu livro “Quem cuidará das crianças. A difícil tarefa de educar os filhos hoje", que o bebê, principalmente nos primeiros meses de vida, não existe sozinho... o bebê é ele e sua mãe. E por todo o resto da primeira infância, inúmeros trabalhos, como o do Prof. Antonio Marcio Lisboa, titular de pediatria da Universidade Federal de Brasília, afirmam que pode ocorrer a gênese da violência, a formação da patologia social caracterizada por atitudes violentas, antissociais e mesmo perversas e pervertidas. Lisboa acredita, e eu também abordo isso no meu livro, que a gênese da violência tem muito a ver com o que aconteceu na primeira infância, e que, infelizmente, mesmo isso sendo constatado e provado em vários estudos, até hoje continuamos tentando resolver a questão da violência depois que ela se instala, e não fazendo a prevenção, com escola de pais, com desenvolvi
mento de conhecimentos adequados sobre a neuropsicologia da primeira infância.


Por isso que nas novas famílias, sobretudo quando elas se originam, como soe acontecer, de
separações anteriores traumáticas, pode haver, claramente, problemas sérios que não devem ser minimizados e precisam estar presentes em qualquer atividade de atenção pediátrica e de puericultura. É necessário considerar esse papel que cada vez mais está sendo do pediatra, o de exercer a medicina integral para a criança e sua família, tratando as enfermidades somáticas, fazendo a prevenção dos agravos físicos, mas com uma atenção bem cuidadosa para a problemática familiar e as consequências disso para os seus clientes.


Recentes pesquisas demonstram, algumas baseadas em neurofisiologia e apoiadas em exames bem objetivos, como a ressonância magnética, que as crianças até mais ou menos oito anos de idade aprendem principalmente com apoio e respeito carinhoso e não registram, não amadurecem e aprendem com violência, gritos, brigas e agressões físicas... isto não é mais hipótese e sim algo comprovado em imagens cerebrais colhidas por ressonância magnética. Por isso, tenho sentido que. muitas vezes, algumas famílias reconstruídas e que fazem com que a criança conheça uma nova realidade, com menos agressão e briga, acabam melhorando um pouco a vida dessas crianças que. seguramente, sempre se traumatizam com a separação dos pais biológicos.


Para deixar bem clara nossa posição sobre o papel da família, principalmente esta que reconhecemos estar cada vez mais presente (a família mosaico), reproduzo uma pequena parte de meu livro “A criança terceirizada. Os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo...” Papirus, 6ª Edição:


“Os estudiosos demonstram cada vez mais o que significa a sensação de abandono, desde o bebê, no primeiro ano, que repentinamente se vê sem a mãe por vários dias, até crianças realmente jogadas ao léu, abandonadas na rua, em bueiros, em cestos ou nas portas dos hospitais. Esse abandono durante a infância pode marcar profundamente o ser humano: ‘Quem viveu o abandono durante a infância pode sentir um medo incontrolável de ser deixado e procurará evitar a todo custo ser abandonado novamente!’ (opinião de Rosemeire Zago, psicóloga clínica, apresentada por estudantes num seminário com os alunos de mestrado do curso de Ciências da Saúde da Universidade Cruzeiro do Sul). Ainda segundo Rosemeire Zago: ‘seguramente, afirmam os psicólogos, quando isso acontece, cada vez que vivenciamos situações de perda, de abandono, é como se tivéssemos revivendo a situação original de abandono, do qual dificilmente nos esquecemos [...] Toda criança fica aterrorizada diante de perspectiva de abandono. Para a criança, o abandono por parte dos pais é equivalente à morte, pois, além de se sentir abandonada, ela mesmo se abandona'.”


Todas essas afirmações confirmam algumas das hipóteses que, pessoalmente, tenho levantado em minha prática de médico pediatra. Viver em família é a melhor solução para a prevenção de distúrbios de desenvolvimento físico, emocional e cognitivo. Ninguém, de verdade, pode substituir a relação pessoal, familiar, com a mãe, o pai e os familiares mais próximos, até porque, garantem muitos profissionais de psicologia e da pediatria, as crianças cuidadas por pessoas pagas para as atenderem acabam muitas vezes não recebendo o amor verdadeiro, mas apenas cuidados higiênicos e práticas alimentares assépticas, nem sempre acompanhadas de paciência, afetividade e carinho.

Claro que nem todas as babás são prejudiciais. Há casos em que elas cuidam das crianças muito melhor do que as mães extremamente ocupadas em suas profissões, que não têm o tempo mínimo e, diga-se de passagem, o menor interesse na função de maternagem. Mas, nesses casos, queiramos ou não admitir, e por mais que isso possa ferir algumas pessoas sensíveis, a mãe é a babá. A famosa frase que diz: “mãe é quem cuida, não é quem pare”, aplica-se muito bem aqui. Às vezes, essas crianças têm tudo o que desejam materialmente (tudo o que o dinheiro compra), mais não têm amor verdadeiro.


Infelizmente, muitas comprovações nos levam hoje a acreditar que, salvo honrosas exceções, tais crianças “poderão ser adultos como qualquer outra criança que tenha vindo de um lar caótico e disfuncional, crescendo sentindo-se pouco valiosa, não merecedora de cuidado, podendo ter dificuldades de cuidar de si mesma” (Rosemeire Zago). Por outro lado, é interessante discutir a questão do excesso de pessoas na família, particularmente quando muitos irmãos solicitam a atenção de uma mãe assoberbada. A criança menor pode se sentir abandonada em famílias numerosas, em que muitos irmãos exigem a atenção dos pais, e estes não conseguem atender a todos. Isso ocorre, como já foi dito, em casos muito específicos, quando os pais estão constantemente ausentes de casa por vários motivos, como excesso de trabalho, viagens, enfermidades ou até porque não estão preparados para cuidar das crianças. “O que é dramático é que essas crianças podem não se sentir amadas nessas famílias, pois o tempo e a igualdade do tempo que os pais dedicam aos filhos indica para eles o grau em que os pais os valorizam (Rosemeire Zago).”


Eu não posso deixar de citar, como fiz em outros compêndios, a imagem que acabei formando da criança e do futuro de um ser humano. Há uma frase de uma pessoa que muito respeito, o escritor português José Saramago, a quem tive a honra de conhecer, que talvez, de forma muito precisa, registra o significado que para mim tem a infância. Escreve-nos Saramago em uma obra sua. e que copio da citação que fiz na página 9 do meu último livro “Quem cuidará das crianças? A difícil tarefa de educar os filhos hoje”. “Quero é recuperar, saber, reinventar a criança que fui. Pode parecer uma coisa um pouco tonta, um senhor nesta idade estar a pensar a criança que foi. Mas é porque eu acho que o pai da pessoa que eu sou é essa criança que eu fui. Há o pai biológico e a mãe biológica, mas eu diria que o pai espiritual do homem que sou é a criança que eu fui.” José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura. 2009.


Pois então, continuando, se a criança que eu fui é responsável pelo homem que sou, como eu acredito, a infância é a fase da vida de importância vital e a redescoberta da importância da puericultura que, infelizmente, reconheçamos, tem sido ignorada ultimamente na formação do pediatra, tem que ser altamente diferenciada e exaltada, principalmente quando falamos da nova família, dos novos cuidadores e desta sociedade em mutação tão rápida que temos medo de não conseguirmos controlar.


Por outro lado, também não posso deixar de citar dois grandes pensadores e humanistas: Mahatma Ghandi, que afirmava e reafirmava ser possível melhorar o mundo com a verdade e o amor, e a Madre Teresa de Calcutá, que afirmava que a verdadeira e mais terrível fome do mundo não era de comida, mas sim de afeto e carinho.

O que está mudando no mundo, face às novas situações das pessoas e do novo papel do homem e da mulher, não é só a família. O que mais tem mudado no mundo, em nossa opinião, é a questão da doação e da vontade de participar ativamente da vida de outro ser. Amar um filho, ou uma pessoa que cuidamos, adotamos, que trouxemos para nossa família, significa ter uma capacidade de doação acima de qualquer outro sentimento mais mesquinho. O que é fundamenta, nesses novos cuidadores é que tenham amor pelas crianças que estão sob suas responsabilidades. Sem amor não é possível ajudar alguém a crescer e a encontrar felicidade. Aliás, citando novamente “Quem cuidará das crianças”, repito uma frase que lá coloquei, de autoria de Winnicott: “é possível que a capacidade de encontrar felicidade na vida, de aceitar os problemas que todos seguramente enfrentam, ou seja, de ser adaptado à vida, dependa de um tempo e de uma pessoa”. Esse tempo é o primeiro ano de vida. Essa pessoa é a mãe.”


E o que dizer da nova situação, que cada vez fica mais comum, dos casais homossexuais que adotam crianças? Há perguntas frequentes que nos são dirigidas sobre como será a identificação das crianças com esses pais, e se isso seria algo preocupante. Eu pessoalmente acho que ainda temos pouco tempo de experiência significativa com esse tipo de problema, mas na minha opinião, se existe o amor, o respeito, o cuidado e não há violência e abandono, com presença e afeto, seguramente a situação será muito mais adequada do que de casais considerados “normais” em função da heterossexual idade, onde o amor, o bem conviver e a tranquilidade existencial há muito já desapareceu. Tenho a impressão de que a vida familiar tranquila e a percepção das crianças de que os seus cuidadores se amam e por isso a querem também, é fundamental. Talvez a pior coisa que uma criança pode sentir é a percepção de estar vivendo numa família em que a paz desapareceu e que a busca do amor entrou em decadência.


Terminando... e sabendo que temos muito a estudar, observar e ensinar... O mais importante é que os cuidadores, sejam quais forem, devem amar, respeitar e cuidar da criança. A presença constante e o acompanhamento do desenvolvimento e crescimento nos primeiros anos de vida, principalmente nos 6 anos iniciais, na chamada primeira infância, são fundamentais. Espero que possamos discutir cada vez mais este papel fundamental do pediatra, que é o ator que mais perto está da família enquanto cuidadora das crianças. O pediatra é um clínico, preventivista, e tem que ser um pouco, ou muito, sociólogo, psicólogo, psiquiatra e principalmente perceber quando as “doenças sociais e psicológicas familiares estão existindo” e alterando o desenvolvimento de seu pequeno ou pequena paciente.


Cabe ao pediatra perceber precocemente os danos que podem estar acontecendo por conta das modificações existenciais na vida das crianças e das famílias e tomar as medidas necessárias de terapia e encaminhamento a outros profissionais, para tentar minimizar os sofrimentos e as sequelas do momento atual e também do futuro desse ser, que nos é entregue quando exercemos a prática da puericultura com amor e dedicação. Sempre ao final de meus livros ou dos capítulos que escrevo a pedido de outros colegas, deixo um endereço para contato e para que me sejam enviadas críticas e sugestões. Quem quiser opinar, criticar, sugerir ou mesmo dialogar comigo, por favor, pode usar dos endereços eletrônicos: jomafi09@gmail.com ou o meu profissional, da Unicamp: jmartins@ fcmunicamp.br

Atenciosamente,
Prof. Dr. José Martins Filho
Professor Titular e Emérito de Pediatria
Faculdade de Medicina da Unicamp
Membro da Academia Brasileira de Pediatria (cadeira nº 21)