Como ganhar perdendo

Ele estava sozinho. A noite estava completamente escura e ele tinhamedo. Tentou acalmar seus temores repetindo para si mesmo que,enquanto estivesse só, nada de mau poderia lhe acontecer. Derepente, alguém o agarrou por trás e o jogou no chão.Ele tentou reagir. Tinha trabalhado arduamente por toda a vida e eraforte, mas seu adversário era tão forte quanto ele.Lutaram vigorosamente a noite inteira e nenhum dos dois conseguiuficar em vantagem com relação ao outro. Quem éessa pessoa - perguntou-se o homem - que tem exatamente a mesma forçaque eu? De onde ela vem e o que quer comigo? Quando começarama surgir os primeiros raios da alvorada, ele sentiu o misteriosodesconhecido girar a perna e escapar do aperto. Os dois homens,suados e exaustos, olharam-se com o relutante respeito que as pessoassentem pelos adversários de valor que elas nãoconseguem derrotar. O homem soube que nunca mais seria a mesma pessoaque havia sido até poucas horas antes.

Essa história poderia ter sido tirada de um arquivo policialou contada por um soldado que estivesse de sentinela. Poderia teracontecido na semana passada ou há mil anos. Contudo, trata-sede uma história da Bíblia, do 32º capítulodo Gênesis. É a história do embate de Jacócom um anjo e de como seu nome foi trocado de Jacó, “otrapaceiro”, para Israel, “aquele que luta com Deus”.A história de Jacó talvez seja a mais interessante daBíblia. Sabemos mais a respeito dele do que praticamente sobrequalquer outro personagem bíblico. Há mais capítulosdo Gênesis dedicados a Jacó e à sua famíliado que a qualquer outro patriarca. Ele é o único quevemos em ação como criança, como jovem, comomarido e pai maduro e como um velho que contempla a morte. Nóso vemos interagindo com os pais, os irmãos, as esposas, osogro, os filhos e os netos, bem como com o Deus dos seus ancestrais.Se lermos a biografia de pessoas boas no esforço deaprendermos a alcançar a bondade, se estudarmos a vida deindivíduos importantes para aprendermos a dar relevânciaà nossa vida e se reconhecermos a Bíblia como orepositório que encerra mais sabedoria a respeito do quesignifica viver na presença de Deus do que qualquer outrolivro, o melhor que podemos fazer é procurar compreender ahistória de Jacó e o que ela pode nos ensinar.

Tudo começou com o avô dele, Abraão, que chegou àconclusão revolucionária de que, por trás detudo, há um único Deus - e não muitos deuses - eque esse Deus exige que os seres humanos tenham um comportamentoíntegro. Abraão e sua mulher, Sara, passaram essacrença para Isaac, o único filho que tiveram juntos.Isaac e sua mulher, Rebeca, tiveram gêmeos, Jacó e Esaú,nascidos depois de uma gravidez difícil, durante a qual Rebecasentia em seu ventre os dois bebês lutando um com o outro - umprenúncio das disputas que iriam marcar a vida deles.

Esaú, o primeiro a nascer, era um caçador rude eparrudo. Jacó, que nasceu se agarrando ao calcanhar do irmão(daí o nome Jacó - “trapaceiro”,“maquinador”), era mais quieto.

Como é comum nas histórias de irmãos gêmeos,eles eram opostos sob muitos aspectos, quase como se cada um delesfosse a metade de uma personalidade completa, como se no úterotivessem pegado a metade das características disponíveise deixado a outra parte para o irmão. Esaú era um homemde poucas palavras. Jacó era mais amável e falava mais.Esaú era o favorito do pai, talvez porque fosse o homemfisicamente forte que Isaac sempre quisera ser e não fora -como o pai de hoje que trabalha o dia inteiro no escritório ese projeta no filho atlético. Jacó era o preferido damãe, talvez porque Rebeca visse mais de si mesma nele,enquanto se perguntava o que teria feito Esaú nascer tãodiferente dela e de Isaac.,

Em um encontro que nos ensina muito a respeito do caráter dosdois irmãos, Esaú volta para casa após um dia decaça malsucedido e encontra Jacó cozinhando um ensopadode lentilha. Morto de fome, ele pede um pouco daquela comida aoirmão. Jacó troca uma tigela do ensopado pelo direitode progenitura de Esaú, de modo que fosse considerado oprimogênito e recebesse, então, a parte maior da herançado pai quando este morresse. Nessa rápida conversa, de apenasseis versículos, no final do capítulo 25 do Gênesis,Esaú é descrito como um homem governado pelos apetites,uma pessoa que vive para o momento sem se preocupar com o dia deamanhã. “De que vale o direito de progenitura se eumorrer de fome hoje?”, pergunta-se ele, como se as pessoasmorressem por deixar de fazer uma refeição! Jacó,por sua vez, é mostrado como um jovem que tenta conseguiratravés da esperteza o que não é capaz de obterpor meio do nascimento ou da força.

O jovem Jacó pertence à tradiçãoliterária do maquinador, o herói que derrota seusoponentes usando a astúcia e não a força - umatradição que inclui Loki, o deus nórdico; oUlisses de Homero, geralmente chamado de Ulisses “astuto”ou “ardiloso”; além dos heróis dos contosfolclóricos de tantas culturas. O que toma Jacó úniconessa tradição é a ambivalência da Bíbliacom relação aos seus estratagemas. Os mitos nórdicosnunca questionam o fato de Loki vencer por meio da astúcia etampouco Homero descreve Ulisses como menos do que heróico. Noentanto, como veremos, a Bíblia não demonstra estar àvontade com a esperteza de Jacó.

Ouvi certa vez um psicólogo estabelecer um contraste entredois estilos de moralidade. Existe a moralidade da esperteza e dasagacidade, em que ter sucesso significa levar a melhor numainteração com outra pessoa através de um negóciofeito com astúcia ou de uma resposta esperta. Nesse tipo demoralidade, o pior pecado é deixar alguém tirarvantagem de nós e a pior punição é avergonha quando outras pessoas nos desprezam por terem levado amelhor. Há também a moralidade da integridade, em que obem maior é a consideração pelos outros, o piorpecado é magoar outra pessoa e a pior punição éa culpa quando nos desprezamos pelo que fizemos. A história deJacó é a história da sua evoluçãodo primeiro estilo de moralidade para o segundo estilo, e neste livrovoltaremos diversas vezes à vida dele porque reconheceremosessa mesma luta, esse mesmo crescimento, na nossa vida.

No desenrolar da história bíblica, Isaac fica velho ecego, acreditando já não ter muito tempo de vida(embora, na verdade, ele ainda vá viver 25 anos). Isaac estápreparado para outorgar a bênção patriarcal aoseu filho predileto, Esaú, designando-o aquele que darácontinuidade às tradições da família. Aquestão é que a cegueira de Isaac é tãoespiritual quanto física. Ele não consegue ver queJacó, apesar de todas as suas limitações, éo mais qualificado para ser o herdeiro de seu legado.

Rebeca, que percebe tudo isso com muita clareza, arquiteta um planopara garantir que o irmão certo seja abençoado. Elaveste Jacó com a roupa de Esaú e cobre os braçossem pêlo dele com pele de cabra, de modo que ele se pareçacom Esaú e tenha o seu cheiro. Feito isso, manda-o para pertodo pai cego, a fim de que este o abençoe antes que Esaúvolte do campo. Embora Jacó não se sinta àvontade com o estratagema, mais por medo de ser apanhado do que pelasensação de estar errado, ele leva o plano adiante eengana o pai, que o abençoa pensando que ele é o irmão.No entanto, começamos a ver a divisão na alma de Jacó,o conflito interior entre seu desejo de obter o que querdesesperadamente e a noção de que só podeconsegui-lo se fizer algo fraudulento, o que o deixa insatisfeito comele mesmo. Essa divisão irá se aprofundar com o tempo echegará ao auge na sua luta com o anjo.

O comportamento de Jacó faz com que muitos leitores sintam-semal. Sabemos que ele é o herói da história.Sabemos que Rebeca está certa e que Jacó é maisqualificado do que Esaú para ser herdeiro do legado de Abraão.Contudo, o que nos faz sentir mal é o fato de ele receber umabênção espiritual valendo-se de um meio tãodesonesto. Gostaríamos que nossos heróis fossem maisautênticos, para que pudéssemos acreditar que tambémsomos capazes de atingir o sucesso. Durante minha pesquisa, encontreiuma fascinante interpretação psicológica desseepisódio em um comentário do século XIX feitopor um rabino hassídico do Leste Europeu que nunca tinhaouvido falar em Sigmund Freud, mas que sabia alguma coisa a respeitodo comportamento da alma humana. Para o rabino, quando Jacódiz ao pai que é Esaú, ele não estásimplesmente mentindo. De certa forma, ele deseja ser Esaú.Sente inveja da força física e da habilidade de caçadorde seu irmão. Jacó compreende que, na condiçãode gêmeo, ele é, sob alguns aspectos, uma pessoaincompleta e quer tornar-se inteiro assumindo a identidade de Esaújunto com sua própria identidade. Esaú, pelo contrário,nunca demonstra nenhum interesse em adquirir os dons mais cerebraisde Jacó.

O estratagema só funciona durante alguns minutos. Esaúchega e expõe a artimanha do irmão, dizendo que Jacóvive de acordo com o nome que tem, “maquinador/trapaceiro”,mas é tarde demais. A bênção, uma vezdada, não pode ser retirada. Furioso, Esaú ameaçamatar Jacó, e este, prudentemente, segue o conselho da mãee foge para a casa do tio materno Labão, que mora em outropaís.

Na primeira noite que passa fora de casa, Jacó, um adolescenteassustado, com vergonha do que fez, dorme no deserto e sonha com umaescada que vai da Terra até o céu. No alto da escada,ele sente (mas não vê) Deus, que lhe garante que suavida correrá bem, que ele um dia voltará para casa emsegurança, que será uma pessoa especial e farágrandes coisas. O símbolo da escada será um temaimportante na vida de Jacó. Quando temos o primeiro contatocom ele, notamos muitas coisas desagradáveis, mas o que nosfascina a seu respeito e o que faz da história de sua vida umrelato com o qual podemos aprender é que Jacó éuma pessoa que cresce. Se a escada que une o céu e a Terrarepresenta a distância entre Jacó tal como ele ée Jacó tal como ele gostaria de ser, a história da vidadele é o relato da sua luta para subir essa escada -ascender de um nível mais baixo de comportamento para um maiselevado - e tornar-se uma pessoa mais completa. Não atravésdo disfarce e do embuste, mas por meio do sacrifício e docrescimento.

Independentemente do fato de os sonhos virem de Deus e predizerem ofuturo ou jorrarem dos desejos do nosso subconsciente, aquele sonhodeve ter tranqüilizado imensamente Jacó. Ele desperta ereza, prometendo que, se Deus de fato cuidar dele e o levar de voltapara casa em segurança, ele Lhe oferecerá um dízimo,dez por cento de tudo que vier a ganhar.

Jacó prossegue a pé em direção àterra de Harã (atual Síria), onde vive seu tio. No poçosituado na entrada da cidade de Labão, ele encontra sua primaRaquel, por quem se apaixona. Jacó é a primeira pessoacitada na Bíblia que se apaixona por uma mulher e quercasar-se com ela. As referências anteriores são a homensque “tomam” as esposas. Em relação a Isaac,por exemplo, é dito que ele só aprendeu a amar Rebecadepois do casamento, que fora previamente arranjado.

Embora deseje casar-se com Raquel, Jacó não temdinheiro nem perspectivas, por isso não pode pagar pela noivao preço que a família espera. (Nas sociedadesagrícolas, o pretendente tinha que compensar a famíliada noiva por privá-la de um braço para a lavoura. Maistarde, nas sociedades comerciais, nas quais as jovens nãotrabalhavam no campo, a família da noiva passou a pagar umdote ao homem que se oferecesse para levar a moça embora esustentá-la.) Jacó dispõe-se a trabalhar degraça durante sete anos para Labão e assim ter direitoà mão de Raquel.

Na noite do casamento, depois de todos terem bebido muito, Labãoastuciosamente substitui Raquel por Léia, sua filha mais velhae muito menos atraente. Na manhã seguinte, quando Jacódescobre o engano e reclama, Labão retruca: “Eu entendoque existem lugares onde a filha mais nova passa à frente damais velha, mas nunca permitiriamos que isso acontecesse aqui.”Jacó, que havia ludibriado o pai do mesmo jeito, fica sem tero que dizer. Ele acaba de aprender como é sentir-se vítimada trapaça de um homem esperto e agora compreende por que éerrado mentir e enganar: que tipo de vida uma pessoa pode ter nummundo onde ela não pode confiar em ninguém?

Jacó só recebe permissão para casar-se comRaquel depois de prometer outros sete anos de trabalho semremuneração. Suas duas esposas lhe deram váriosfilhos, a maioria de Léia. Raquel, como Sara e Rebeca antesdela, tinha dificuldade em conceber. Os rebanhos de Labãoexpandem-se sob os cuidados de Jacó e os dois homens ficamricos. Após alguns anos, Jacó sente que échegada a hora de pegar a família e os rebanhos e voltar paracasa. Preocupado com a possibilidade de Labão tentar enganá-lode novo, ele parte em segredo enquanto o tio está longetosquiando ovelhas. Labão o persegue e consegue alcançá-lona fronteira entre Harã e Canaã. Jacó lembra aLabão de que o serviu fielmente e que o tio tentou enganá-lovárias vezes. Labão obtém de Jacó apromessa de que irá tratar as duas esposas, e filhas dele, coma devida consideração. Assim, eles separam-se de ummodo cordial. Jacó está agora pronto para atravessar orio, chegar a Canaã e ir para casa. Ele manda as mulheres, ascrianças e os animais para o outro lado do rio e, quando anoite cai, fica sozinho na margem oposta. É, então, quea misteriosa figura o ataca à noite e luta com ele atéo amanhecer.

Quem é esse ser misterioso? Por que ele agride Jacó epor que a luta termina empatada? A maioria dos comentários oretrata como uma figura maligna, um inimigo perigoso que procurafazer mal a Jacó. Alguns o consideram o anjo da guarda deEsaú, outros um demônio que protege a fronteira quesepara os dois países e tenta evitar que as pessoas atravessempara o outro lado. Há também quem o veja como apersonificação de todos os perigos que espreitam naescuridão.

Sempre interpretei essa história de um modo diferente. Vejo omisterioso agressor como parte do próprio Jacó. Épor isso que ele surge quando a Bíblia destaca que Jacóestá sozinho. É por isso que ele tem exatamente a mesmaforça que Jacó, não é nem mais forte nemmais fraco. O oponente, o anjo, é a consciência de Jacó,a parte dele que o intima a sobrepujar seus maus impulsos. A luta sedá entre a parte dele que vence através da esperteza eda fraude e a parte dele que se sente intimada por Deus a subir umaescada até o céu, a tornar-se uma pessoa exemplar.

Jacó está em guerra com ele mesmo. De algum modo, senteorgulho da sua habilidade de usar a esperteza para enganar as pessoase conseguir o que quer. Por outro lado, não se sente àvontade com toda essa astúcia nem com o fato de perceber queas pessoas ficam ressentidas com essa atitude e deixam de confiarnele.

Vamos recordar a situação: Jacó estáprestes a voltar para casa depois de ter partido desacreditado. Nodia seguinte, ele espera ver o irmão Esaú pela primeiravez depois de vinte anos. Jacó lembra-se evidentemente daspalavras de despedida de Esaú: “Na próxima vezque eu vir você, vou matá-lo pelo que me fez.”Consigo imaginar Jacó tentando arquitetar um plano astuto paraevitar a confrontação e, depois, dizendo aos seusbotões: “Não! Durante toda a vida, sempre queestive em dificuldades, minha reação foi mentir efugir. Eu me odeio por ser uma pessoa que mente e foge. Gostaria deser suficientemente corajoso para enfrentar as consequênciasdos meus atos, mas, todas as vezes que tento, acabo recuando. Estoucom medo de encontrar Esaú amanhã, no entanto tambémtemo continuar a seguir esse padrão de resolver os problemasfazendo trapaças.”

Sabemos que Jacó ama Raquel, mas em determinado ponto a Bíblianos diz que ele odeia Léia. É sugerido que ele adetesta porque, todas as vezes que a vê, Jacó se recordade como foi ludibriado quando se casou com ela, fato que lhe traz àlembrança como ele próprio enganou o pai para que esteo abençoasse. Jacó não consegue escapar daquiloque o faz recordar-se diariamente do ponto mais baixo da sua vida, odia em que se separou da sua família e começou adesvalorizar-se como pessoa. Com que freqüência nósodiamos as pessoas não por causa do que elas são oufazem, e sim porque nos lembram alguma coisa de que nãogostamos em nós, algo que desejaríamos esquecer? Jungescreve a respeito do que ele chama de "a sombra", o ladonegativo da nossa personalidade, os aspectos que desprezamos em nósmesmos e preferiríamos fingir que não temos. Contudo,quanto mais tentamos colocá-los atrás de nós emantê-los fora da nossa vida, mais eles nos seguem comosombras.

Creio que muitos de nós conseguimos nos identificar com a lutade Jacó, simbolizada na narrativa bíblica como uma lutacorpo a corpo com um anjo. Existem ocasiões em que sentimosessa divisão: quando parte de nós quer tomar o caminhomais fácil e outra parte insiste em seguir o trajeto maisdifícil; quando parte de nós quer dar dinheiro para omendigo e outra parte apresenta razões para que guardemos odinheiro; quando parte de nós quer fazer o papel do BomSamaritano e parar para ajudar alguém que estáprecisando enquanto uma voz dentro da nossa cabeça nos diz quenão devemos nos envolver. Existem momentos em que nosrepreendemos e nos perguntamos: como pude fazer isso? Eu nãosabia que era errado? Ou, então, advertimos a nósmesmos: pare agora, senão você vai ter problemas.Sabemos como é fácil, com a prática, nãodar atenção à voz da consciência. OTalmude diz que o mau hábito entra primeiro na nossa vida comoum convidado, mas logo depois se toma um membro da família eacaba tomando posse da casa. Passamos, dessa forma, a sentir queperdemos uma parte preciosa de quem somos e de quem queremos ser. .

Como Jacó, conhecemos a sensação de tentar subirmais alto na escada, sentir medo da altura e ansiar pela sensaçãofamiliar do chão sólido debaixo dos pés. Nósvoltamos aos antigos hábitos e nos menosprezamos por isso.

Quem vence essa luta épica entre Jacó e suaconsciência? Uma vez que os dois antagonistas sãoaspectos do mesmo homem, podemos compreender que Jacó ganha eperde ao mesmo tempo. No final da luta, ele está ferido emancando, mas mesmo assim a Bíblia o descreve como shalem- palavra hebraica que encerra conotações detotalidade, integridade, de estar em paz consigo mesmo. Esse termoestá relacionado com shalom, “paz”. Em certosentido, Jacó ganhou ao perder. Até aquele momento,sempre que tinha dores de consciência, ele havia sido capaz deracionalizar seu comportamento, de silenciar a voz que o avisava deque estava agindo de maneira errada. Paradoxalmente, quanto maisfraco estava, mais fácil lhe era derrotar a consciência.Jacó nunca se sentiu suficientemente seguro para fazer a coisacerta quando agir corretamente parecia difícil. Somente depoisde subir parcialmente a escada que vai da Terra ao céu, apenasquando o casamento, a paternidade e a experiência de serenganado pelos outros o fizeram adquirir um certo grau de maturidade,ele foi forte o bastante para permitir que sua consciêncialevasse a melhor. Deixaria assim de ser Jacó, o trapaceiro, ese tomaria Israel, aquele que luta com Deus e com os homens, ou seja,com sua consciência e sua natureza menos honrada. No hebraico,o nome Jacó possui a conotação de akov,“torto”, enquanto Israel remete ao termo yashar,“reto”.

Você se lembra da prece de Jacó na primeira noite queele passou fora de casa, logo após ter sonhado com a escada?Ele pediu a Deus que o protegesse e o levasse para casa em segurançae prometeu dar a Ele o dízimo dos seus rendimentos se os seuspedidos fossem atendidos. Na sua última noite antes de voltara Canaã, momentos antes de o anjo o atacar, Jacó rezanovamente. Dessa vez, porém, não há promessas,ele não tenta barganhar com Deus. Agora Jacó diz aDeus: “Já fizestes por mim mais do que eu tinha odireito de esperar. Nada possuo para Vos oferecer em troca. Tudo queposso dizer é o seguinte: estou me voltando para Vósporque preciso de Vós. Tenho que fazer uma coisa amanhãe não sei se estou à altura desse ato. Contudo, se Vósestiverdes comigo, talvez eu consiga dar um jeito. Na primeira noiteque passei longe de casa, Vós me prometestes que eu cresceriae me transformaria em uma pessoa especial. Para que essa promessa setome realidade, Vós precisais me ajudar amanhã.”

Em sua prece, Jacó não pede a Deus que resolva seusproblemas. Não pede a Deus que faça Esaú teramnésia e esquecer a raiva. Ele não reza pedindo poruma idéia esperta que lhe permita passar a perna em Esaúe convencê-lo a perdoá-lo. Ele reza pedindo por forçapara fazer a coisa certa. É logo depois disso que o anjo oagarra.

Jacó é ferido na luta com o anjo. Talvez a liçãomais importante que tenha aprendido naquela noite é que elepode ser ferido mas também pode sobreviver ao ferimento. Écapaz de pagar o preço da honestidade, da generosidade; e issocertamente vai doer, mas ele conseguirá superar essa dor. Dra.Rachel Naomi Remen, médica e autora de best-sellers, escreveuo seguinte a respeito dos ferimentos físicos: “Como vocêpoderia viver se não soubesse que seu corpo pode curar-se?Você andaria de bicicleta, dirigiría um carro ou usariauma faca para cortar legumes? Ou você nunca sairia do sofá?”O ferimento de Jacó é ao mesmo tempo emocional efísico. Pela primeira vez na vida, ele se permitirá serforçado a fazer a coisa certa, a olhar frente a frente para oirmão e tentar reparar o erro que cometeu ao enganá-loem vez de usar a sagacidade para evitar uma confrontaçãoou desculpar seu comportamento. Jacó sabe que vai doer, mas,assim como aprendeu a confiar e ter certeza de que seu corpo podecurar-se quando é ferido, ele está preparado paraacreditar que sua alma se recuperará da dor de fazer algodifícil. Então, coloca sua fé na crençade que agir corretamente é o melhor remédio para umaalma perturbada.

Em determinado momento na luta noturna de Jacó, seu misteriosooponente lhe pergunta: “Qual é seu nome?” Pareceuma estranha indagação a ser feita no meio de umabriga; contudo, nos tempos antigos, o nome era mais do que um rótulode identificação, pois indicava a personalidade dapessoa. “Quem é você?” na verdadesignificava: “Que tipo de pessoa você é?”,“Você vive de acordo com quais valores?”. Jacóestá lutando com sua consciência, seu eu melhor. Porisso, perguntar a si mesmo “Qual é o meu nome?” éa sua maneira de indagar: “Quem sou eu realmente? Que tipo depessoa quero ser? Sei quem fui até agora, quem eu quero serdaqui em diante?”

Acho significativo que no final da luta Deus dê a Jacóum novo nome. Qual o significado de uma pessoa mudar de nome? Conheciindivíduos que mudaram de nome, mudaram de religião,mudaram de emprego ou foram para outro estado como uma maneira dedizer que não queriam continuar a ser o que haviam sido atéaquele ponto. Quando um atleta profissional se converte ao islamismoe recebe um novo nome, quando um judeu decide observar os costumes epede às pessoas que o chamem pelo seu nome hebraico, o que eleestá dizendo a respeito de quem costumava ser e de quem ele éagora? Quando uma mulher, ao se casar, resolve adotar o últimonome do marido, ou manter o nome de família dela, ou usar osdois nomes ligados por um hífen, o que ela está dizendoem relação ao grau em que o casamento redefine seusentimento de quem ela é? Certa vez, quando uma moça medisse que usaria o nome do noivo após o casamento, demonstreiuma leve surpresa: “Eu tinha a impressão de que vocêera uma feminista convicta.” Eia respondeu: “E sou. Sevou ser conhecida pelo nome de um homem, prefiro que esse nome seja odo homem que eu escolhi ao daquele que minha mãe escolheu.”

Na Bíblia é Deus que muda o nome de Jacó paraIsrael, o que, para mim, simboliza a vitória da suaconsciência, da sua natureza superior, na batalha paraestabelecer que tipo de pessoa ele se tomará. Na luta pelaalma de Jacó, o anjo saiu vencedor.

Jacó ficou sentido ao perder a batalha contra o anjo, masteria ficado ainda mais magoado se tivesse continuado a ganhar. ADra. Remen escreve a respeito de uma paciente que sentia dores nopeito que nem os remédios, nem a meditação, nema cirurgia conseguiam aliviar. Certo dia, a paciente percebeu quesentia a dor sempre que estava prestes a fazer algo em que nãoacreditava, que carecia de integridade e comprometia seus valoresmais profundos. Era seu anjo que a atacava. Para a Dra. Remen, “aperda da integridade emocional ou espiritual pode estar na origem danossa consciência sofredora... O estresse (que é capazde nos afetar fisicamente) pode ser tanto uma conseqüênciade sermos transigentes com os valores quanto uma questão depressão do tempo e do medo do fracasso”.

É doloroso sermos derrotados pela consciência,sentirmo-nos impelidos a tomar o caminho mais difícil, aresistir à tentação, a pedir desculpas.Acredito, porém, que dói mais continuar a vencer aconsciência. Um número expressivo de vezes, para atingiruma meta importante, comprometemos nossa integridade, fazemos algo emque realmente não acreditamos, para depois vermos aconteceruma ou outra coisa que nos deixa frustrados: ou ganhamos o prêmioe percebemos que não valeu a pena conquistá-lo ouacabamos sem o prêmio e sem a integridade.

Naquela noite escura na margem do rio, o desejo de Jacó de serbem-sucedido - de conseguir de qualquer jeito o que queria na vida -entrou em conflito com sua crescente necessidade de pensar em simesmo como uma pessoa boa. Ele tentou enganar, aquietar, contestar epersuadir sua consciência. Pela primeira vez, porém, suaconsciência foi forte o bastante para erguer-se firme diantedele. Dessa vez, ela não cederia, não seria convencidade nada. Ela não seria derrotada. Como tantos momentos quetememos, como tantas coisas que não temos certeza de que somoscapazes de fazer, a efetiva confrontação revelou-se bemmais fácil do que Jacó supunha. E ele, para seuassombro, descobriu que passou a gostar mais de si próprioquando sua consciência prevaleceu. Sempre que derrotamos apequena e suave voz de Deus dentro de nós, nósperdemos. Essa voz, porém, não será silenciadapara sempre (e Deus ajude a pessoa que conseguir silenciarpermanentemente a voz da consciência). Ela achará umaocasião em que estejamos vulneráveis, nos atacaránum momento de fraqueza. E, ao fim da luta, nós estaremos,como Jacó/Israel, machucados e mancando. No entanto, tambémcomo Jacó, estaremos inteiros, estaremos em paz com nósmesmos como nunca antes estivemos.