Enxaquecas na Infância



É horrível ver seu filho sofrer de dor na cabeça, principalmente se ele não entende o que está acontecendo. Então, você dá um analgésico e tudo fica bem. Quando o quadro se repete outras vezes, seu medo aumenta: “Será o sintoma de um tumor ou de algo pior?” Mesmo sabendo que os problemas graves são minoria, você nem pensa em enxaqueca. Pois deveria. A doença atinge 5% das crianças brasileiras com idade até 8 anos e a frequência dessas crises vem aumentando.

A enxaqueca, doença que atinge 1 bilhão de pessoas no mundo, é a 6ª doença crônica mais incapacitante, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). E não é um mal apenas de adultos. Entre as crianças, a prevalência é de 3% a 10% da população infantil mundial, segundo o neuropediatra Marco Antônio Arruda, do Instituto Glia (SP), e pode se manifestar a partir dos 5 anos. Se as dores, de tão fortes, provocam até vômitos em gente grande, imagine o que essa condição pode causar nos pequenos. Mas não para por aí. “Crianças e adolescentes com enxaqueca têm um risco 2,5 vezes maior de apresentar dificuldades socioemocionais, depressão e ansiedade; 1,5 vez maior de baixo desempenho escolar e 1,3 vez maior de perder aula, quando comparados a outros sem o problema”, revela.

Ele se refere a uma pesquisa que realizou com pais e professores de aproximadamente 5 mil crianças com idades entre 5 e 12 anos. Publicado no Journal of Attention Disorders, além dessas descobertas, o estudo fez uma ligação surpreendente: crianças com enxaqueca têm quatro vezes mais chances de apresentar também o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). “Quando certas doenças andam juntas, como colesterol alto e infarto, por exemplo, chamamos isso de comorbidade. Sabendo desse risco, o médico deve pesquisar em crianças com enxaqueca a possibilidade de TDAH e naquelas com TDAH a possibilidade de enxaqueca, para tratá-los de forma integral”, diz.

Além da dor

Mais do que dores de cabeça recorrentes - caracterizadas por dor latejante, normalmente acima dos olhos ou no meio da cabeça -, a enxaqueca pode apresentar outros sintomas, como náuseas, vômitos, aversão à luz (fotofobia), barulho (fonofobia) e odores (osmofobia). Em alguns casos, a crise é precedida ou acompanhada de um fenômeno neurológico chamado aura - a pessoa vê estrelinhas, enxerga em dobro ou tem metade do campo visual apagado, além de apresentar vertigem, dificuldade para falar, fraqueza e/ou formigamento em um dos lados do corpo.

Pode-se dizer que a diferença básica está na frequência com que as crises ocorrem: as cefaleias primárias, como a enxaqueca, se repetem com regularidade. Na maioria das vezes, a dor é unilateral, latejante, forte e se acentua com os esforços físicos. Em algumas pessoas, as crises podem ser desencadeadas por fatores como emoção, alimentos, mudanças no horário de sono ou calor excessivo.

O caráter limitante é um dos primeiros sinais a servir de alerta para os pais. “Quando está com dor, alguns pacientes chegam a vomitar. A escola me liga para eu buscá-la. A criança perde muitas aulas e tem de fazer trabalhos escolares em casa para compensar as faltas...”.

Os tipos mais comuns da doença são sem aura e com aura. Mas existem também formas mais raras. Conheça:
Retiniana
O processo de constrição dos vasos ocorre na retina, provocando cegueira transitória de um olho e dor, que costumam passar em algumas horas.
Hemiplégica
O paciente fica com um lado do corpo mais fraco ou mesmo sem conseguir se movimentar por um tempo até que a crise cesse.
Abdominal
Prevalente em crianças, caracteriza-se por crises de dor abdominal, muitas vezes com náuseas, vômitos, foto e fonofobia.

Múltiplas causas

A questão é que os gatilhos variam muito de uma pessoa para outra. Entre os alimentos que podem desencadear uma crise estão chocolate, molhos, condimentos, queijos e seus derivados, frutas cítricas e comidas gordurosas - em geral, quanto mais natural a alimentação do paciente, melhor.

Quem tem predisposição à doença também precisa ter uma rotina de sono regrada: dormir ao menos oito horas por noite, no mesmo horário. Isso porque a melatonina, hormônio produzido pelo organismo que regula o sono, está relacionada aos níveis de serotonina. Essa última é um neurotransmissor que atua no cérebro e que, se desequilibrado, leva a uma série de problemas, entre eles a enxaqueca.

“Em primeiro lugar, é importante escutar e legitimar a dor de seu filho. A dor física poderá ser controlada por meio dos medicamentos receitados. Já as de fundo emocional, que também podem se manifestar fisicamente, só poderão ser cuidadas se os adultos souberem ouvir a criança. A enxaqueca pode, ainda, estar relacionada a outras dificuldades emocionais, e uma coisa potencializar a outra. Em função disso, o tratamento envolve, necessariamente, atender a todos esses fatores”, afirma a psicóloga Adriana Elisabeth Dias, coordenadora do Colégio Oswald de Andrade (SP). A educadora alerta também sobre a importância da parceria entre pais e professores para que o aluno consiga superar as dificuldades impostas pela doença na vida escolar - sem danos às notas ou à autoestima.

Com ou sem remédio

O diagnóstico é essencialmente clínico, realizado no consultório do neuropediatra. “O principal fator é a frequência, ou seja, as crises têm de ser caracterizadas como recorrentes, com mais de cinco delas de caráter incapacitante. Outro dado a ser levado em conta é a duração do intervalo livre de sintomas”, explica o neuropediatra Farias. Mas como tudo isso pode variar de criança para criança - algumas podem ficar semanas sem enxaqueca, enquanto outras, meses -, os pais têm de ficar de olho.

Uma vez diagnosticada, existem dois tipos de tratamento da doença: com ou sem medicamentos. Na primeira situação, a medicação (triptanos, anti-inflamatórios e analgésicos) pode ser usada para tratar o paciente durante as crises, com o objetivo de cessar a dor e os sintomas que a acompanham. “Só que o uso de analgésicos nem sempre é o mais indicado, uma vez que eles podem causar no organismo uma certa resistência e parar de fazer efeito. O ideal, sendo assim, é buscar um meio de evitar que as dores ocorram”, diz Farias.

Aí entram os tratamentos para prevenir novas crises. Neste caso, os remédios (topiramato, divalproato, betabloqueadores e flunarizina) devem ser tomados diariamente e, com o tempo, tendem a reduzir a frequência, a intensidade e a duração das crises.

Entre as novidades, está uma pesquisa sobre um tratamento minimamente invasivo que traz alívio em poucos minutos. Trata-se da introdução de um cateter em cada narina da criança para administrar um anestésico local que bloqueia o gânglio esfenopalatino (feixe nervoso localizado no nariz) associado à enxaqueca. Realizado em pacientes entre 7 e 18 anos no Phoenix Children’s Hospital (EUA), o experimento levou a uma redução nos níveis da dor, por meses.

Outro estudo recente mostrou que a toxina botulínica, aquela usada para tirar rugas, também pode aliviar a enxaqueca. O procedimento já foi testado em adultos antes, mas não nos pequenos. Os pesquisadores da Universidade da Califórnia em Irvine (EUA) injetaram a substância na região da cabeça e do pescoço em crianças e adolescentes de 8 a 17 anos com enxaqueca crônica, a cada 12 semanas, durante um período de cinco anos. Também houve uma redução na frequência, duração e intensidade das crises. Embora ainda em testes, é possível que esses tratamentos influenciem de maneira positiva o jeito de tratar a enxaqueca no futuro.

Dia a dia

Já o tratamento não medicamentoso inclui a educação do paciente sobre a enxaqueca, para que ele aprenda, principalmente, a identificar e evitar os fatores que desencadeiam o problema no caso dele. Se após notar que determinado alimento causa o desconforto, a dica é simples: ele tem de ser retirado do cardápio ou substituído. “Fazer atividade física regular é outro fator que pode ajudar o tratamento preventivo, pois os exercícios aumentam a produção das encefalinas, neurotransmissores que funcionam como ‘analgésicos’ naturais produzidos pelo nosso cérebro”, explica o neuropediatra Arruda. Além disso, os especialistas indicam também métodos terapêuticos, como a psicoterapia e o biofeedback (técnica que, com o auxílio de eletrodos, ensina o paciente a relaxar os músculos tensionados e, assim, controlar a dor).

Tem cura?

Segundo estudos que acompanharam pacientes por mais de 30 anos, 40% das crianças com enxaqueca serão adultos com a doença. “Mas a boa notícia é que, quando o diagnóstico é feito na infância e o tratamento e medidas de prevenção instituídas nessa época, a chance de cura aumenta”, completa Arruda, sobretudo nos meninos. Nas meninas, com o aparecimento da primeira menstruação, há uma tendência de reaparecimento ou mesmo piora da doença ao longo da vida adulta. Tudo por causa das influências hormonais no processo neuroquímico da enxaqueca - tanto que, a partir da menopausa, cerca de 90% das mulheres com o problema apresentam remissão das crises espontaneamente.

Mesmo que o seu filho não seja curado na infância, há esperança. Com as medidas profiláticas e os tratamentos disponíveis, é possível melhorar a qualidade de vida dele desde agora. Na dúvida, pais e pediatras aconselham: não demore para buscar ajuda.