O Homem da Camisa Rorschach
Orignal: The Man in the Rorschach Shirt by Ray Douglas Bradbury. Originally published in Playboy Magazine, October 1966. Em Português:? A Cidade Perdida de Marte © 1975 by Hemus-Livraria Editora Ltda.
Brokaw. Que nome!
Um som que parecia latido, ronco, um berro, a afirmação audaciosa de:
Immanuel Brokaw!
Belo nome para o grande psiquiatra, o maior dos que já haviam trilhado as águas da existência, sem emborcar.
Brokaw!
O que aconteceu a ele?
Um dia, como se fosse em passe de mágica, desapareceu.
Apagada a luz que destaca o artista, seus milagres pareciam correr o perigo de inversão. Coelhos psicóticos ameaçavam saltar de volta para as cartolas, fumaças eram puxadas de volta às bocas dos canhões de pólvora seca. Todos nós ficamos esperando.
Foi silêncio por dez anos seguidos, e depois mais silêncio.
Brokaw se perdeu, como se tivesse se jogado, aos gritos e gargalhadas, no meio do Atlântico. Para que? Procurar Moby Dick? Psicanalisar aquele inimigo incolor, e descobrir quais os verdadeiros motivos de sua raiva contra o Louco Ahab?
Quem sabe?
Eu o vi, pela última vez, correndo para um avião que partia para o crepúsculo, tendo a esposa e seis cachorros de luxo latindo lá atrás, no campo empoeirado.
-- Adeus para sempre!
O grito que ele dera, cheio de felicidade, parecia piada. No dia seguinte, todavia, vi homens tirando seu nome em letras douradas da porta do consultório, enquanto os grandes sofás, que pareciam mulheres gordas, eram levados para o tempo inclemente, rumo a algum leilão na Terceira Avenida.
Assim o gigante que fora Gandhi-Moisés-Cristo-Buda-Freud, todos sobrepostos em camadas de uma sobremesa armênia inacreditável, havia fugido, por um buraco no meio das nuvens. Para morrer? Para viver em segredo?
Dez anos depois, eu viajava de ônibus, na Califórnia, percorrendo as costas encantadoras de Newport.
O ônibus parou, um homem com seus setenta anos de idade embarcou, jogando moedas na caixa coletora como se fosse maná caindo do céu. Ergui o olhar, lá atrás do ônibus e arquejei.
-- Brokaw! Com todos os santos!
E ali, com ou sem santificação, estava ele. Desempenado como Deus manifesto, barbudo, benevolente, pontifical, erudito, alegre, aceitando, perdoando, messiânico, tutelar para sempre e eterno...
Immanuel Brokaw.
Mas não em terno escudo, em absoluto.
Em vez disso, como um convertido a alguma igreja nova e cheia de si, ela usava: Bermuda, sandálias mexicanas, de couro preto, um boné de beisebol, dos Dodgers de Los Angeles, óculos escuros, e...
A camisa! Ah, meu Deus! A camisa!
Uma coisa tresloucada, vegetação rasteira, luxuriante, com papa-moscas, uma dilatação e contração de Pop-Ópera, cheia de flores, cravejada em todos os interstícios com animais e símbolos mitológicos!
Pescoço aberto, essa camisa enorme pendia, açoitada pelo vento, como se fossem mil bandeiras em uma parada de nações unidas, porém neuróticas.
Agora, no entanto, o Dr. Brokaw punha de lado o boné de beisebol, levantava os óculos escuros para examinar os lugares vazios no ônibus. Caminhando devagar pelo corredor central ele girou, fez pausa, parou aqui, depois ali, logo acolá. Murmurava, cochichava, falava baixo ora com este homem, ora com aquela mulher ou criança.
Eu estava a ponto de gritar, quando ouvi o que ele dizia:
-- Bem, o que acha dela?
Um garoto, aturdido pelo efeito de propaganda circense na roupa do velho, piscava, precisando de incentivo. O velho o incentivou:
-- A minha camisa, rapaz! O que você está vendo!?
-- Cavalos! -- balbuciou o menino, afinal. -- Cavalos dançando!
-- Muito bem! -- o doutor sorria satisfeitíssimo, afagando o menino, e passando em frente. -- E o senhor?
Um rapaz, de todo espantado pelo caráter direto dessa invasão de alguém que viera de algum mundo onde o verão devia ser perpétuo, respondeu:
-- Ora... nuvens, naturalmente.
-- Cúmulos ou nimbos?
-- Bem... não são nuvens de tempestade, não, não. Nuvens felpudas, nuvens que parecem carneiros.
-- Muito bem!
O psiquiatra passava em frente.
-- E a senhorita?
-- Surfistas! -- proclamou uma adolescente, fitando a camisa. -- Lá estão as ondas, bem grandes. Pranchas de surfe. Lindo!
A assim a coisa foi, até o extremo do ônibus, e enquanto o grande homem seguia caminho, alguns fragmentos de risadas surgiam, e logo se tornavam contagiosas, transformavam-se em estrondos de hilariedade. A essa altura, mais de dez passageiros haviam ouvido as primeiras respostas, e entraram na brincadeira. Aquela mulher via arranha-céus! O médico dedicou-lhe olhar desconfiado. O médico piscou o olho. Aquele homem via enigmas, palavras cruzadas. O doutor apertou-lhe a mão. Esta criança via zebras, em ilusão de ótica na selva africana. O doutor deu uma palmada nos animais, fez com que eles pulassem! Esta senhora idosa via Adãos em forma vaga e Evas nebulosas, sendo expulsos de Paraísos um tanto difusos. O doutor acomodou-se no banco ao lado dela, por algum tempo; conversaram em jatos de cochichos, animados, e depois ele se pôs em pé, passou à frente. A velha havia presenciado um despejo? Pois esta jovem enxergava um casal a ser chamado de volta!
Cachorros, relâmpagos, gatos, automóveis, nuvens no formato de cogumelo, lírios que devoravam homens!
Cada pessoa, cada resposta, ocasionava exclamações mais altas de comentário. Descobrimos que estávamos, todos nós, rindo juntos. Aquele velho excelente era um acontecimento da natureza, um capricho, a Vontade de Deus, costurando as nossas vidas separadas, juntando-as em uma só.
Elefantes! Elevadores! Sinais de alarme! O Destino!
Quando ele embarcava no ônibus, nada queríamos saber uns dos outros. Agora, entretanto, como enorme bola de neve, sobre a qual tínhamos de falar, ou uma falha elétrica que deixara às escuras dois milhões de residências, jogando-nos a todos na risada, bate-papo e comentários comunais, sentíamos que as lágrimas limpavam nossas almas, enquanto escorriam por nossas faces.
Cada resposta parecia ainda mais engraçada do que a anterior, e ninguém gritava mais alto suas grandes torturas de gargalhadas do que aquele grande e maravilhoso médico que pedia, obtinha e tratava de nossos males ali mesmo. Baleias. Algas. Prados cobertos de grama. Cidades perdidas. Mulheres belíssimas. Ele fez uma pausa, girou, sentou-se. Levantou-se, sacudiu a camisa de cores tresloucadas, até que estivesse finalmente à minha frente e perguntasse:
-- Senhor, o que vê?
-- Ora, o Dr. Brokaw, naturalmente!
A risada do velho parou, como se houvesse levado um tiro. Ele tirou os óculos escuros, depois os recolocou e me agarrou os ombros, como se quisesse colocar-me em foco.
-- Simon Wincelaus, é você!
-- Eu, eu! -- e ria. -- Santo Deus, doutor, achei que estava morto e sepultado há muito tempo. Que negócio é esse que está fazendo agora?
-- Fazendo, agora? -- e ele apertou e sacudiu minhas mãos, sacudia meus braços, passava as mãos em minha face, com gentileza. Depois emitiu uma grande risada, na qual perdoava a si próprio, enquanto olhava aquela camisa ridícula. -- Que estou fazendo? Me aposentei. Desapareci, bem depressa. Da noite para o dia, viajei mais de três mil milhas, de onde você me viu pela última vez...
Seu hálito de hortelã-pimenta aquecia meu rosto.
-- Agora sou mais conhecido por aqui como... escute!... o Homem da Camisa Rorschach.
-- Da o que? -- gritei.
-- Camisa Rorschach.
Leve como um balão de gás, sentou-se a meu lado.
Ali fiquei, aturdido e calado.
Seguimos a viagem, ao lado do mar azul, sob o céu brilhante de verão.
O doutor olhava em frente, como se estivesse vendo meus pensamentos em letras garrafais, escritas no meio das nuvens.
-- Por que, é o que você pergunta, por quê? Eu vi seu rosto, espantado, no aeroporto, faz tempo. O meu Dia de Ir Embora para Sempre. Meu avião devia ter o nome de Titanic Feliz. Nele, afundei para sempre, no céu sem vestígios. Aqui, estou em forma absoluta, não acha? Nem bêbado, nem doido, nem derrubado pela idade e pelo tédio da aposentadoria. Onde, o que, por quê, como é?
-- Sim -- concordei. -- Por que o senhor se aposentou, com tanta coisa por fazer? Capacidade, renome, dinheiro. Nem um sinal de...
-- Escândalo? Nenhum! Por que, então? Porque este camelo velho não quebrou uma das gibas, mas as duas, com duas palhas. Duas palhas notáveis. A Giba Número Um...
Fez uma pausa, olhou-me de soslaio, com aqueles óculos escuros.
-- Isto aqui é um confessionário -- propus. -- Boca de siri.
-- Confessionário. Isso mesmo, obrigado.
O ônibus continuava em viagem suave.
A voz dele se ergueu, caiu, igualando-se ao zumbido do motor.
-- Você ouviu falar da minha memória fotográfica, não é? Abençoada, amaldiçoada, com a capacidade de recordação total. Tudo quanto é dito, visto, feito, tocado, ouvido, pode ser trazido de volta por mim, quarenta, cinqenta, sessenta anos depois. Tudo que aconteceu, preso aqui.
E afagava as têmporas de leve, usando os dedos das duas mãos.
-- Centenas de casos psiquiátricos, que passaram por minha porta, dia após dia, anos após ano. E nem uma vez examinei as anotações que fazia em qualquer dessas sessões. Logo descobri que só precisava tocar de volta o que ouvira, dentro da cabeça. Fitas sonoras, naturalmente, eu fazia para garantia, mas nunca precisei ouvi-las. E assim você tem o palco pronto para o caso chocante que aconteceu.
Fez uma pausa, logo aduzia:
-- Um dia, quando estava com sessenta anos de idade, uma paciente mulher me disse uma só palavra. Eu pedi que ela repetisse. Por quê? De repente, senti que meus canais semicirculares mudavam, com se algumas válvulas se houvessem aberto para o ar fresco, em nível subterrâneo.
-- "Besta" -- ela disse.
-- "Pensei que tinha disto bosta" -- disse eu.
-- "Oh, não, doutor, eu disse besta."
-- Uma só palavra -- prosseguiu ele. -- Uma pedrinha caiu pela beira. E então... veio a avalanche. Isso porque, do modo mais distinto, ouvi que ela dizia: "Ele amava a bosta em mim", o que é um modo diferente de interpretar a coisa, não? Quando, na realidade, ela dissera: "Ele amava a besta em mim", coisa muito diferente, como deve compreender.
Ele prosseguiu:
-- Não consegui dormir naquela noite. Fumei, fiquei olhando pela janela, a cabeça, ouvidos, tudo parecia estranhamente claro, como se houvesse acabado de curar um resfriado com duração de trinta anos. Desconfiei de mim mesmo, de meu passado, dos meus sentidos, de modo que às três da madrugada seguinte, fui para meu gabinete e descobri o pior.
Ele se recordava, voltou a falar:
-- As conversas relembradas de centenas de casos, em minha mente, não eram as mesmas gravadas nas fitas, nem datilografadas pela minha secretária!
-- Quer dizer que...?
-- Quero dizer que quando eu ouvia "bosta", na verdade era "besta". Capricho era cabra, ou então bicho, ou mesmo carrapicho. Sabor era pavor. Imortal transformava-se em imoral. A sombra era bomba. O sonho limitava-se a simples banho. E sexo? Era nexo, ou quem sabe, perplexo! Sim, fim. Não, bom. Porre virava corre-corre. Qualquer que fosse a palavra, eu ouvia errado. Dez milhões de palavras mal entendidas! Eu examinava os arquivos, ficava apavorado. Sensual tinha passado a pontual. Santo Deus! Que barbaridade!
Fez uma pausa, prosseguiu:
-- Por todos aqueles anos, aquela gente toda! Papagaio, Brokaw, gritei eu, por todos esses anos, desde que a palavra de Deus desceu da Montanha, como uma pulga, dando pulos em sua orelha. E agora, no final do dia, seu velho sabichão, você tem a idéia de consultar suas tábuas, escritas com o fogo dos céus. E descobre que suas Tábuas da Lei são diferentes!
Ele prosseguia:
-- Moisés fugiu do consultório, pela noite. Saí correndo às escuras, desenredando o meu desespero. Fui de trem até a estação do Desalento, talvez por causa da atração exercida por esse nome.
Eu o olhava, ele prosseguia:
-- Caminhei ao lado de um tumulto de ondas que só eram igualadas pelo tumulto em minha cabeça e peito. Como? -- perguntava a mim mesmo -- como pude ter sido semi-surdo por toda a vida, sem perceber? E perceber só agora, quando um simples acidente fez voltar o dom, como, como?!
Ele explicava:
-- Minha única resposta foi uma grande onda que trovejou, caindo na areia. E assim, você tem a palha número um, que quebrou a giba número um desde camelo de forma humana.
Segui-se um instante de silêncio.
Continuávamos no ônibus, este em seu caminho pela estrada praiana dourada, em meio à brisa suave.
-- E a palha número dois? -- perguntei, finalmente, em voz baixa.
O Dr. Brokaw ergueu os óculos escuros, de modo que a luz do sol pudesse ser entrevista em toda aquela caverna que era o ônibus. Observávamos os arco-íris nadando por ali, ele de modo desligado e parecendo apenas um pouco preocupado.
-- A vista. A visão. Tessituras. O detalhe. Não são coisas milagrosas? Espantosas, no sentido de causarem verdadeiro espanto? O que é a vista, a visão, a percepção? Nós realmente queremos ver o mundo?
-- Oh, sim! -- respondi prontamente.
-- Aí temos a resposta impensada de um jovem. Não, meu caro rapaz, não queremos. Aos vinte, sim, pensamos que queremos ver, conhecer, ser tudo. Também pensei assim. Mas sempre tive olhos fracos, por toda a vida, e passava metade dos dias recebendo receitas de óculos novos, dadas pelos oculistas, sabe? Bem, chegou o amanhecer da lente da córnea! Pelo menos, o das lágrimas, aqueles discos invisíveis! Coincidência? Causa psicossomática e efeito correspondente? Isso porque, na mesma semana em que pus as lentes de contato, foi a semana em que minha audição consertou! Deve haver alguma ligação fisio-mental, mas não quero chegar a algum palpite arriscado. Tudo que sei é que mandei preparar minhas pequenas lentes cristalinas de contato, instalei-as nos meus olhinhos azuis e fracos de criancinhas de colo e ... voilà!
Ele declarou:
-- Lá estava o mundo! Lá estavam as pessoas! E lá estavam, que Deus me ajude, a sujeira, lá estava os inúmeros poros na pele das pessoas.
-- Simon -- aduziu ele, deplorando-se com gentileza, os olhos fechados por momentos, atrás daqueles óculos escuros --, você já pensou, você sabia que as pessoas, na maior parte, são poros?
Deixou que essas palavras ficassem no ar por algum tempo, pensei sobre elas.
-- Poros? -- disse eu, afinal.
-- Poros, sim! Mas quem pensa nisso? Quem se dá ao trabalho de olhar. Com minha visão restaurada, entretanto, eu via! Milhares, milhões, dez bilhões de ... poros. Grandes, pequenos, pálidos, vermelhos... todos poros. Em todos, nas pessoas que passavam, nas pessoas dentro dos ônibus, cinema, cabines telefônicas, tudo poros e pouca substância. Pequeninos poros, em mulheres pequenas. Grandes poros, em homens enormes. Ou o contrário. Poros tão numerosos quanto aquela poeira dos infernos, que cai no raio de sol, dentro das igrejas, ao final da tarde. Poros. Eles se tornaram o objeto completo de minha atenção fixa. Eu fitava as belas senhoras, mas não lhe via as bocas, olhos ou lobos de orelhas. Um homem não devia observar o esqueleto feminino requebrando-se, com aquela carne macia e suave? Sim! Mas não, eu só via peles perfuradas como queijos, como peneiras de cozinha. Toda a Beleza transformou-se em Grotesco azedo. Desviar meu olhar era como desviar o telescópio de 200 polegadas do Monte Palomar, dentro do meu cérebro. Para todos os lados em que olhasse, via aquelas luas bombardeadas por meteoros, em aproximação pavorosa!
Outra pausa, ele continuava:
-- E a mim mesmo? Meu Deus, ao me barbear de manhã, passava por tortura requintada. Não conseguia arredar os olhos de meu rosto perfurado. Com os demônios, Immanuel Brokaw, dizia a mim mesmo, você é o Grande Canyon ao meio-dia, uma laranja com um bilhão de umbigos, uma toranja com a pele descascada.
-- Em resumo, minhas lentes de contato haviam-me levado de volta aos quinze anos de idade, isto é, a uma situação de dúvida e horror crucificantes, de imperfeição absoluta. É a pior idade na vida de todos, que voltava para me perseguir, com seu fantasma esburacado e de covinhas.
-- Fiquei como verdadeiro destroço humano, um frangalho. Ah, a segunda Adolescência, tenha piedade de mim, pedia. Como pude ser tão cego por tantos anos? Cego, e sabia que havia sido, e sempre dizia que não tinha importância. Assim, havia tateado pelo mundo, como um míope sôfrego, deixando de ver os buracos, rasgões, saliências dos outros, bem como em mim mesmo. A Realidade, agora, havia me jogado no olho da rua. E a Realidade eram -- os Poros.
-- Fechei os olhos e fui deitar-me, por dias seguidos. Depois, sentei-me na cama e proclamei, de olhos arregalados: a Realidade não é tudo! Recuso esse conhecimento. Surjam leis contra os Poros! Aceito, em vez disso, as verdades que intuímos, ou que fazemos, para viver por elas.
Negociei os meus olhos, isto é, entreguei minhas lentes de contato com a córnea a um sobrinho sádico, que gosta de lixo, pessoas encaroçadas e coisas peludas.
Ele prosseguia:
-- Pus de volta os meus antigos óculos, sem a correção de grau. Passeava agora por um mundo de nevoeiros gentis, que regressavam a mim. Vi o bastante, mas não o demasiado. Descobri pessoas-fantasmas, apenas entrevistas, a quem podia voltar a amar. Vi o "eu" no vidro do espelho de manhã com o qual podia novamente ir dormir, admirar e aceitar como camarada. Comecei a rir todos os dias, com nova felicidade. De começo, baixinho, mas logo podia rir bem alto.
Ele fez uma pausa e observou:
-- Que piada é a vida, Simon. Por vaidade, compramos lentes que vêem tudo, de modo que perdemos tudo!
E ele continuava:
-- E devolvendo o que chamam de fragmentos de sabedoria, realidade, verdade, ganhamos de volta a inteireza da vida! Quem não sabe disso? Os escritores sabem! As novelas inventadas são muito mais "verdadeiras" do que toda a reportagem adornada com fatos e dados na história do mundo!
-- Mas eu tive, afinal, de enfrentar a grande cisão que contrariava minha consciência. Meus olhos. Meus ouvidos. Santo Deus, dizia eu, baixinho. Os milhares de pessoas que passam por meu consultório, deitam em meus sofás, procuram ecos em minha Caverna Délfica, ora essa, tudo absurdo! Eu não vira uma só delas, não ouvira com clareza!
-- Quem era essa tal Srta. Harbottle?
-- Quem era o velho Dinsmuir?
-- Qual era a cor, aspecto e tamanho verdadeiro da Srta. Grimes?
-- Teria a Sra. Scrapwight realmente se parecido e falado como uma múmia de papiros egípcios, tirada de um tapete? Não podia, sequer, adivinhar. Dois mil dias de neblina cercavam meus filhos perdidos, que eram simples vozes chamando, esmaecendo, sumindo.
-- Meu Deus, eu havia caminhado pela praça do mercado com um sinal invisível de CEGO E SURDO, e as pessoas tinham acorrido a preencher minha mão de pedinte com moedas, saindo dali curadas. Curadas! Não era milagroso, estranho? Curadas por um destroço velho, que tinha perdido o braço, ao qual faltava uma perna. O que? O que dizia a eles, e que era certo, depois de ter ouvido errado? Quem, na verdade, foram essas pessoas? Jamais saberei.
-- E depois pensei: existem cem psiquiatras nesta cidade que vêem, escutam mais claramente do que eu. Mas de quem são os pacientes que entram nús em mares bravios, ou pulam dos escorregas à meia-noite, nos jardins públicos, ou amassam as mulheres e fumam charutos em cima delas?
-- Assim, tive de enfrentar o fato irredutível de que obtivera uma carreira vitoriosa.
-- Os aleijados não conduzem os aleijados, gritava minha razão, os cegos e paralíticos não curam os paralíticos e os cegos! Mas uma voz, em um canto na minha alma, respondia com ironia imensa: "Vejam só, você, Immanuel Brokaw, é um gênio de porcelana rachado, porém brilhante! Seus olhos encobertos enxergam, suas orelhas arrolhadas escutam. Suas sensibilidades fraturadas curam em algum nível por baixo da consciência! Muito bem!"
-- Mas não, não podia viver com minhas imperfeições perfeitas. Não podia compreender ou tolerar aquela coisa secreta e delambida que, por meio de telas e ofuscações fazia de doutor para o mundo e curava os males.
-- Restavam-me diversas escolhas, nessa ocasião. Recolocar minhas lentes de contato? Comprar aparelho auditivo, para melhorar minha audição? E depois? Descobrir que perdera o contato com minha mente melhor e oculta, que se acostumara comodamente a trinta anos de má visão e audição horrível? Seria o caos, tanto para o curador quanto para os curados.
-- Continuar cego e surdo e trabalhar? Parecia uma tewmeridade, embora meus assentamentos fossem limpíssimos, sem mácula.
Uma pausa então, e esclareceu:
-- Por isso, aposentei-me. Fiz as malas e parti para o esquecimento áureo, para deixar que a cera inacreditável de juntasse em meus ouvidos estranhos mas terríveis...
Seguiamos no ônibus, ao longo da costa, naquela tarde acolhedora e quente. Algumas nuvens passavam sobre o sol. Sombras formavam neblinas nas areias e as pessoas por ali, sob guarda-sóis coloridos.
Pigarreei.
-- O senhor vai voltar a medicar, doutor?
-- Estou medicando, agora.
-- Mas o senhor acabou de dizer...
-- Oh, não de modo oficial, nem com consultório, honorários, nada disso, nunca mais -- respondeu, rindo baixinho. -- De qualquer modo, estou muito preocupado com o mistério. Isto é, como curei toda aquela gente, bastando impor as mãos, mesmo se os braços estavam cortados nos cotovelos. Ainda agora, continuo pondo a "mão".
-- Como?
-- Esta camisa que estou usando. Você viu. Você escutou.
-- Quando o senhor vinha pelo corredor?
-- Exatamente. As cores, as figuras, os padrões. Uma coisa para este, outra para aquela, uma terceira para o menino. Zebras, bodes, relâmpagos, amuletos egípcios. O que, o que, o que? pergunto e elas vêm, resposta, resposta, resposta. O Homem na Camisa Rorschach.
Esclareceu, então:
-- Tenho uma dúzia dessas camisas, em casa. São de todas as cores, todas as combinações diferentes de padrões. Uma foi desenhada para mim por Jackson Pollack, antes de morrer. Uso cada camisa um dia, ou uma semana, se as respostas forem rápidas, cheias de animação e recompensa. Tiro então a antiga, ponho a nova. Dez bilhões de olhares, dez bilhões de respostas espantadas!
Perguntava-me:
-- Não podia eu vender estas camisas Rorschach ao seu psicanalista em férias? Para examinar os amigos? Chocar os vizinhos? Divertir sua esposa? Não, não. Este é meu divertimento particular mais especial e querido. Ninguém deve partilhar dele. Eu e minhas camisas, o sol, o ônibus, e mais de mil tardes pela frente. A praia espera e, nela, a minha gente!
Satisfeito, prosseguia:
-- Assim é que caminho pelas praias deste mundo no verão. Não existe inverno aqui, é notável, eu sei, não existe inverno de descontentamento, quase parece, e a morte é um boato que fica para lá das dunas. Eu caminho em meu próprio tempo, a meu jeito, encontro as pessoas e deixo o vento sacudir minha grande camisa, que parece vela de navio, ora para o norte, ora para o sul e vejo como os olhos se arregalam, espiam, zombam, apertam-se, pensam. E quando certas pessoas dizem certa palavra a respeito de minhas cores feitas a tinta eu paro, bato papo. Caminho com elas por algum tempo. Olhamos para o grande vidro do mar. De lado, dou também uma espiada na alma delas. Às vezes caminhamos por horas, em sessão prolongada. Em geral só é preciso um dia e, sem saberem com quem caminharam, livres de tudo, dou-lhes alta, sem saberem que foram meus pacientes. Passam a caminhar na praia do entardecer, rumo a um amanhecer ainda mais claro. Atrás delas, o homem surdo-cego faz sinal de boa viagem, e volta para casa, a fim de devorar um jantar feliz, satisfeito por ter realizado bom trabalho.
-- Às vezes, encontro alguém que quase dorme na areia e cujos problemas não podem ser arrancados, para morrerem à luz do dia. E então, por acidente, colidimos uma semana depois, e caminhamos à beira da água agitada, fazendo o que sempre foi feito; temos o nosso confessionário peripatético. Isso porque muito antes de sacerdotes enclausurados, murmúrios e arrependimentos, os amigos já caminhavam, falavam, ouviam, e nisso de falar e ouvir, curavam os desesperos na alma um do outro. Os bons amigos trocam os problemas por todo o tempo, dão presentes de desalento mútuo e, assim, livram-se dele.
-- O lixo se junta nos gramados e nas mentes humanas. De camisa berrante e bastão coletor de lixo, eu saio todos os dias para... limpar as praias. São tantos, tantos corpos deitados ali, sob a luz! Tantas mentes, perdidas na escuridão! Eu procuro caminhar entre eles todos sem... tropeçar...
O vento soprava pela janela do ônibus, fresco, fazendo uma série de ondulações na camisa estampada do velho pensativo.
O ônibus parou.
O Dr. Brokaw, de repente, viu onde estávamos e deu um salto.
-- Espere!
Todos no ônibus se voltaram, como para assistir à saída do ator principal. Todos sorriam.
O Dr. Brokaw apertou minha mão, saiu correndo. Na parte dianteira do ônibus ele se voltou, espantado por seu próprio esquecimento, levantou os óculos escuros e olhou para mim, os olhos infantis e azuis.
-- Você...
Para ele, eu já era um sonho nublado, situado em algum ponto além da orla da visão.
-- Você... -- ele disse, falando para aquela nuvem fabulosa de existência que o cercava de perto, aconchegante -- você não disse o que vê em minha camisa!
Empertigou o corpo, a fim de pôr à mostra aquela inacreditável camisa Rorschach que esvoaçava e batia, todas as linhas e cores sempre em mudança.
Olhei, pisquei, respondi:
-- Um nascer do sol! -- gritei.
O doutor quase cambaleou, recebendo esse golpe de gentil amizade.
-- Tem a certeza de que não é um pôr do sol? -- gritou de lá, levando uma das mãos ao ouvido.
Voltei a olhar e sorri. Contava que ele notasse meu sorriso, a mil milhas de distância, dentro daquele ônibus.
-- Não -- insisti. -- Um nascer do sol. Um belíssimo nascer do sol.
Ele fechou os olhos para digerir as palavras. Suas mãos enormes percorreram a costa de sua camisa agitada pelo vento. Assentiu, depois abriu os olhos pálidos, acenou uma vez e desembarcou para o mundo.
O ônibus continuou a viagem. Olhei uma vez para trás.
E lá o Dr. Brokaw, andando diretamente para a praia onde se encontrava uma amostra do mundo, mais de mil banhistas sob aquela luz quente.
Ele parecia estar pisando, de leve, em água feita de gente.
Na última vez que o vi, continuava gloriosamente flutuando.