Os benefícios da Vitamina S (sujeira)!


Recentemente fiz uma atualização sobre alergia a partir da nova edição do Tratado de Pediatria do Nelson (um dos mais antigos e bem conceituados do mundo, hoje em sua 20ª Edição) e justamente na subseção "Prevenção" (pág.1115) me deparei com a seguinte informação:
Segundo a hipótese da higiene, as exposições microbianas de ocorrência natural no início da vida desviam o desenvolvimento precoce do sistema imunológico contra a sensibilização alérgica, a inflamação persistente e o remodelamento das vias aéreas. Caso essas exposições microbianas naturais realmente tenham um efeito protetor contra a asma, sem consequências adversas significativas à saúde, esses achados podem dar origem a novas estratégias para a prevenção da doença.
Confesso que fiquei bastante intrigado com o termo "Hipótese da Higiene" e decidi pesquisar um pouco sobre o tema.

Nas décadas de 70 e 80 do século XX o número de casos de pessoas com doenças alérgicas começou a crescer, levando a uma série de investigações científicas sobre os motivos deste aumento. Uma das hipóteses científicas lançou olhares para algum tipo de alteração ambiental como causa deste aumento, uma vez que o aumento da incidência ocorreu muito rápido - afastando a possibilidade de mudança genética. Desse modo, surgiu a "hipótese da higiene".

Primeiramente formulada em 1989 pelo epidemiologista Dr. Strachan, a hipótese da higiene relaciona o aumento da susceptibilidade de doenças alérgicas a pessoas que não foram expostas durante a infância a agentes patogênicos, como os microrganismos ou parasitas, deixando-as, então, predispostas a desenvolverem propensão a alergias - o sistema imune dos indivíduos não foi devidamente estimulado nos primeiros anos de vida.

A chamada "hipótese da higiene" busca explicar o notável aumento das doenças mediadas via IgE, como a asma, o eczema e a rinite, que ocorreu durante as últimas décadas, relacionada ao ambiente.1 Esta exacerbação é mais prevalente em países industrializados, ocidentais, e é paralela ao desenvolvimento de estilos de vida ocidentalizados. A conexão entre sensibilização alérgica e estilo de vida, conduziu a elaboração desta teoria, na qual o aumento da higiene e asseio, o uso difundido de antibióticos, de água potável purificada e as imunizações por vacinas podem ter privado o sistema imune em desenvolvimento, de estímulos ambientais moldados pela evolução, para manter a imunidade adaptativa longe das respostas TH2. Em síntese, ocorre uma redução nas taxas de estimulação microbiana na infância.2,3

Dados epidemiológicos confirmam que a prevalência de alergia em crianças que moram em fazendas e granjas, e que estão em contato direto com a criação de animais, é bem menor do que aquela de crianças morando nas mesmas cidades e que não têm, entretanto, o mesmo estilo de vida rural. Isto ocorre em decorrência da alta exposição das crianças aos produtos bacterianos, como por exemplo, a endotoxina.4

Alguns estudos sugerem que a falta de infecções virais na infância possa predispor ao desenvolvimento da asma. Por exemplo, crianças que contraem sarampo apresentam menor probabilidade para atopia do que aquelas que receberam imunização através de vacinas. Os micróbios constituem-se provavelmente, no principal estímulo da imunidade mediada via TH1.

Alguns estudos apoiam a "hipótese da higiene". Por exemplo:
  1. Em um estudo coorte de 262 crianças em Guiné-Bissau, na África Ocidental, a incidência de sarampo era inversamente proporcional a atopia5
  2. Na Itália, em alunos da Escola da Força Aérea, a prevalência de atopia era menor entre aqueles que apresentavam  soropositividade para o vírus A da hepatite6
  3. No Japão, um grupo de crianças em idade escolar que recebeu vacina BCG e que apresentava forte reação à tuberculina, apresentava baixa incidência de asma e de níveis de IgE sérica7
  4. Na Finlândia, um estudo comparou um grupo controle com outro com história pregressa de tuberculose, analisando em função da idade, sexo e região geográfica. Detectou-se que a história de tuberculose ativa na infância reduzia significantemente a ocorrência de asma subseqüente em pacientes do sexo feminino8
  5. Braun-Fahrälander et al. mediram os níveis de endotoxinas bacterianas na poeira de colchões de 812 crianças (média de idade de 9,5 anos) que habitavam áreas rurais, em fazendas ou não. Constataram que quanto maior o nível de endotoxina menor era a ocorrência de rinite alérgica, asma atópica e sensibilização alérgica. Crianças que foram expostas aos níveis mais elevados de endotoxina, apresentaram incidência 80% menor de doenças alérgicas do que aquelas expostas aos mais baixos níveis. A exposição a endotoxina correlacionava-se inversamente com a produção de várias citocinas pelos leucócitos (TNF-a, IFN-γ, IL-10 e IL-12) configurando uma downregulation das respostas imunes9
  6. Stein et al. avaliaram a imunidade inata e risco de asma em crianças de dois povos semelhantes, que vivem em comunidades, afastados da sociedade, em ambientes agrários, e possuem perfis genéticos semelhantes: os Amish e Hutterites. Os Amish apresentam, entretanto, a incidência de asma três quartos inferior que os Hutterites. Os autores investigaram o sistema imunológico e o perfil genético de 60 crianças de 7 a 14 anos - 30 de cada população, além de recolherem amostras de ar, poeira do chão e colchões de uma dezena de casas de cada comunidade. O pó colhido nas casas dos Amish tinha cerca de 6 vezes mais endotoxinas que o das casas dos Hutteritas, o que deve ter modulado a resposta do sistema imunológico das crianças. Um ponto importante que os diferencia e corrobora a hipótese é que enquanto os Amish cultivam suas terras de forma tradicional, com a ajuda de animais - cavalos e bois, os Hutteritas praticam a mecanização em larga escala10
Então o negócio agora é rolar na lama?
Não. O que é preciso salientar de todas estas informações é sobre a necessidade de equilíbrio a higiene excessiva. O Brasil é considerado um dos países de maior consumo de produtos de higiene pessoal, e grande parte deles é composta por produtos antibacterianos. Eles são procurados como justificativa para eliminar maus odores e evitar manchas nas roupas, diminuindo o suor. Entretanto, o que não se percebe é que, como se tratam de produtos bactericidas, há também o risco de eliminar estas bactérias "do bem" que são fundamentais no amadurecimento do sistema imunológico.

Bibliografia:
1.von Mutius E. The environmental predictors of allergic disease. J Allergy Clin Immunol 2000; 105:9.
2.Romagnani S. The role of lymphocytes in allergic disease. J Allergy Clin Immunol 2000; 105: 399.
3.Romagnani S. Regulation of TH2. evelopment in allergy. Curr Opin Immunol 1994; 6:838.
4. Dois mecanismos tentam explicar a teoria da higiene: o primeiro mecanismo aceito relaciona-se a diminuição na estimulação antigênica decorrente da redução na freqüência de infecções na infância, resultando em uma diminuição nos níveis de citocinas reguladoras, especificamente a IL-10, a IL-12 e o TGF-β. O segundo mecanismo relaciona-se a estimulação do sistema imune inato pela endotoxina, desempenhando importante papel na ontogênese do sistema imune normal.
6.Kilpelainen M, Terho EO, Helenius H, Koskenvuo M. Farm environment in childhood prevents the development of allergies. Clin Exp Allergy 2000; 30:201.
7.Shirakawa T, Enomoto T, Shimazu S, Hopkin JM. The inverse association between tuberculin responses and atopic disorder.Science 1997; 275:77.
8.von Hertzen L, Klaukka T, Mattila H, Haahtela T. Mycobacterium tuberculosis infection and the subsequent development of asthma and allergic conditions. J Allergy Clin Immunol 1999; 104:1211.
9.Braun-Fahrländer C, Riedler J, Herz U, Eder W, et al. Environmental exposure to endotoxin and its relation to asthma and allergic disease. N Engl J Med 2002; 347:869.
10.Stein MM, Hrusch CL. Gozdz J et al. Innate immunity and asthma risk in Amish and Hutterite farm children. N Engl J Med 2016; 375:411-421.