Quarentando
Em 2019 completei 40 anos. Nesta ocasião decidi escrever algumas reflexões bastante íntimas sobre minha trajetãria de vida. Compartilhei estas reflexões no meu perfil pessoal do Facebook onde algumas pessoas que fizeram parte puderam se manifestar. Abaixo transcrevo algumas destas reflexões...
Parte 1
Nasci no interior de Minas Gerais, precisamente em Resplendor - uma cidade bem pequena às margens do Rio Doce. Vivi nesta cidade maravilhosa até por volta dos 10 anos. Moramos em frente à casa dos meus avós paternos (Joel e Maria Teixeira) e ha 10 minutos da casa dos meus avós maternos (Amagates e Tota). Uma vez ganhei um pintinho de 'galinha preta' que rapidamente se tornou um frango adulto. Era meu pet de estimação. Um dos meus tios veio nos visitar e acidentalmente quebrou o pescoço do frango. Todos ficaram com medo de me contar que minha galinha preta tinha morrido... minha mãe me conta que a única exigência que eu fiz foi comer o 'figuinho' (até hoje eu gosto de moela e fígado de galinha!). Vovó Tota era professora de e logo cedo me alfabetizou. As férias eram um capítulo a parte: num ano os primos vinham pra Resplendor. Em outros anos era nós que os visitávamos. Tenho muitos primos: da parte da minha mãe, William, Eu e Liliane Valadão éramos os mais velhos seguidos do Vinicius Ferreira Valadão e da Vanessa Valadão. A seguir vieram Mariana Valadão e a Andressa. Nesta altura já éramos 3 irmãos: Fabrício, Débora e Elaine Valadão Batistoni.
Vovô Joel me ensinou muito sobre a Bíblia. Ele era um exemplo de pessoa compreensiva e amorosa. Vovó Maria fazia um biscoito tipo 'bolinho de chuva' - eu adorava, apesar de ser encharcado de gordura! Nos fins de semana também visitávamos a tia Elizabeth Batistoni. Ela morava na região rural. Era uma festa. Brincávamos juntos com a prima Marcia Batistoni Ramos e o Mateus Batistoni. A gente voltava pra casa cheio de 'bicho de pé'. Que infância maravilhosa! Meu pai Elias Batistoni era o faz-tudo da família. Ele consertava instalação elétrica, achava o barulho do carro, trabalhava no Banco do Brasil, pregava na igreja... meu sonho era saber fazer uma rubrica parecida com a dele - de tão poderosa que era. Minha mãe - Deise V Batistoni era a coruja. Os filhos brigavam? Corre todo mundo pro colo dela. Alguém colheu milho verde? A Deise vai fazer uma papa pra nós (em SP é conhecida como curau). Estudei na Escola Estadual Coronel José Pereira de Jesus (já contei esta história em Jan-2018): uma escola de latão - mas com professores e colegas fantásticos. A noite as crianças da rua se juntavam num banco de madeira na calçada do vô Joel para bater papo. Aprendemos a pegar um pedaço de mangueira e pintar (de modo a parecer uma cobra). Amarrávamos um barbante para dar susto nas pessoas que transitavam na rua (muito antes de existir as pegadinhas!!). Após os 10 anos meu pai foi transferido para outra cidade - Coronel Fabriciano. Uma nova etapa estava pra começar... Vou falar sobre isto ainda esta semana.
Parte 2
Os anos 90 não foram assim tão glamurosos e populares - conhecida como a década que ficou à sombra dos anos 80 (os anos de ouro). Ainda assim, foi nos anos 90 que passei minha adolescência. Lembro vagamente de ver Ulisses Guimarães erguendo a nova Constituição; ainda mais vaga foi a lembrança da morte de Tancredo Neves. Pouco tempo depois nos mudamos para uma nova cidade - Coronel Fabriciano, no Vale do Aço. O Brasil logo teria um novo presidente - Collor. Antes da mudança, porém, me candidatei ao batismo. Havia decidido crer em Jesus durante uma Escola Bíblica de Férias ministrada pela minha prima Celma Soares Teixeira Costa. Ser batizado era a garantia que a partir daquele momento eu era 'membro da igreja' - me senti empoderado.
Em Fabriciano, pela primeira vez, estudei em uma escola particular: o Colégio João Calvino. Exceto pelas instalações, a qualidade do ensino não era superior a dos meus professores da escola de lata de Resplendor. A rotina nestes primeiros anos era: de segunda a sexta - estudar; aos sábados íamos a Ipatinga ou em Timóteo (desfrutar da deliciosa companhia da família); aos domingos a rotina era pesada: Ceia do Senhor as 8h seguida da Escola Bíblica Dominical até o meio dia; as 18h a reunião dos jovens e as 19:30 o culto formal de domingo. Tentava participar de tudo. Íamos a Resplendor com frequência: de carro ou, na maioria das vezes, de trem mesmo. Eu sabia que era 'crente'. Sabia que minha salvação estava segura em 'Cristo Jesus'. Gostava de estudar a Bíblia. O que eu não sabia era que o adolescente é um 'ser que ainda não é'. Aprendi - sem muita dificuldade - a ser cínico. Cristãos também são cínicos. Aprendi a exibir meus 'dons' e dissimular minhas fraquezas. Aprendi sobre quebrantamento, arrependimento e confissão a ponto de convencer [e julgar] os mais céticos a respeito da minha sinceridade. A final da copa de 94 foi à tarde - bem na hora da reunião dos jovens. Eu estava na igreja. Eu e mais ninguém. Perdi o jogo, perdi a prorrogação, perdi os pênaltis, perdi a comemoração. Mas não perdi a oportunidade de julgar os outros adolescentes da igreja por não ter ido à reunião.
Confesso que ainda hoje - aos 40 - luto com a questão do cinismo e do julgamento, mas meu sistema de autocrítica melhorou bastante! Em 96 meu pai foi transferido para Rio Novo - uma cidade bem pequena, próxima a Juiz de Fora. Pela primeira vez, agora, teria que morar sozinho. Encontrei um primo em Juiz de Fora - Clayder Soares Ricardo - que me permitiu morar na república dele provisioriamente. Pela providência de Deus, o outro colega que iria voltar pra república desistiu de vir - então minha permanência provisória acabou ficando permanente. Ganhei uma nova família em Juiz de Fora. Morando longe de casa, me tornei filho do Dimas Nogueira e da 'Maria do Dimas', irmão da Lilian, do Douglas e do Luís Vicente Fávero César. Fui muito bem acolhido pelos irmãos da Casa de Oração. Tenho particularmente uma gratidão especial pelo sacrifício que meu pai Elias Batistoni teve que fazer para nos educar. Se eu for capaz de fazer 1% do sacrifício que meus pais fizeram para nos criar acredito que serei uma pessoa melhor. Mesmo com o orçamento tão apertado ele me deu o primeiro computador em 93. Um 386DX400. Um luxo! Aos 17 anos prestei vestibular para Medicina (dez-96) e fui aprovado em 142º lugar!
Parte 3
Entrei na Faculdade de Medicina aos 18 anos. Ainda nos primeiros semestres da faculdade me enamorei pela Samila. Ela cursava Psicologia e eu Medicina. Éramos vizinhos de prédio também. Nossa rotina semanal não era tão agitada: durante a semana - estudar; aos finais de semana - programações relacionadas à igreja (ela era Presbiteriana e eu da Casa de Oração). Eu tocava no louvor, pregava, dava aula na Escola Dominical, fazia trabalho voluntário com crianças carentes mas descobri que minha verdadeira vocação era 'reclamar'. Reclamava de absolutamente tudo e de todos. Eu reclamava tanto que comecei a ficar incomodado comigo mesmo.
Comecei a participar de um grupo vocal chamado Novo Canto. Éramos umas 15 pessoas (eu era um dos mais novos e o mais velho tinha três vezes a minha idade). Cantávamos em igrejas de diversas denominações. Numa época começamos a levar música e pregação. O reclamão cínico começou a refletir sobre a própria vida. Comecei achar minha espiritualidade muito rasa. Mas por onde começar? Comecei a bater altos papos com meu amigo Eloy Heringer e logo percebi que precisava de um pastoreio mais diretivo na minha vida. Pedi transferência da Casa de Oração para a igreja Presbiteriana. Na reunião em que fui recebido como membro o Pr Eloy leu a carta de transferência assinada pelo grande amigo Jorge Luiz. Não lembro exatamente as palavras da carta, mas lembro que a 'liderança da Casa de Oração desejava que eu continuasse sendo uma bênção'. E eu me esforcei muito pra isto. Fui convidado a dirigir o coral da igreja - que na ocasião tinha por volta de 100 integrantes; ao lado do Jeffinho, Serginho e de uma turma muito comprometida produzimos musicais de alto impacto na cidade.
Por conta da faculdade precisei deixar o coral algum tempo depois e decidi me dedicar ao ensino da Bíblia na Escola Dominical e a escrever para um site cristão (www.irmaos.com). Me graduei pela Faculdade de Medicina da UFJF e logo iniciei minha residência médica em Pediatria na mesma instituição. No segundo ano da residência eu e Samila nos casamos. Nossos planos até então eram: casar, a Samila faria doutorado na Unicamp e eu planejava cursar uma subespecialidade em Oncologia Pediátrica. Mas nem tudo anda como a gente planeja.
Parte 4
» CAPÍTULO ACADÊMICO-PROFISSIONAL: Viemos pra Campinas logo após o término da minha Residência em Pediatria. Conforme 'nossos planos', eu havia sido aprovado para uma nova residência em Oncologia Pediátrica em um dos maiores centros de oncologia infantil do mundo (Centro Infantil Boldrini). Samila estava fazendo uma aplicação para uma bolsa de docência na Unicamp. Sabíamos que seria financeiramente muito apertado. A carga horária no Boldrini era bem pesada e não sobrava muito tempo pra fazer plantões extra. Por volta de agosto daquele ano fui diagnosticado com quadro depressivo terrível. Fui consumido por uma total sensação de fracasso. Nadei e morri na praia... faltava pouco... mas eu não conseguia nadar mais. Abandonei a Residência em Oncologia Pediátrica. Entrei em contato com um colega de Juiz de Fora que estava trabalhando em Jundiaí e me convidou para trabalhar num ambulatório de Pediatria Geral. Naquele momento eu tomei uma decisão: eu já tenho uma especialidade médica: Pediatria. Por mais frustrado que esteja em não conseguir ser um Oncologista Pediátrico, não vou medir esforços para ser o melhor pediatra que conseguir. Por 6 anos trabalhei em Jundiaí e morei em Campinas. Em 2014 decidi dar mais um salto profissional e abrir meu próprio consultório em Campinas. Atualmente eu me orgulho em dizer que sou um Pediatra Geral que atende em consultório localizado no maior Shopping Center do interior de São Paulo e me sinto tremendamente realizado profissionalmente.
» CAPÍTULO IBCU: Permanecemos um bom tempo na Igreja Batista Cidade Universitária (mais perto de casa). Como eu vim de um contexto de muito 'trabalho na igreja', me envolvi com tudo que pude. Cantei com as crianças, fiz back vocal no louvor, ajudei no coral da igreja. No final daquele ano, porém, o reclamão cínico locomotiva de eventos conseguiu ofender o pastor da igreja, Pr Fernando Leite, e saímos da IBCU. Escrevi um email para o pastor apontando tudo que 'eu julgava errado' e enviei cópia para todos os que conhecia da igreja. Fernando teve muita paciência comigo. Me repreendeu publicamente. E eu fiquei ainda mais enfurecido. Alguns anos depois Deus tocou no meu coração e eu redigi um novo email, endereçado às mesmas pessoas que antes, pedindo perdão pela minha conduta. A resposta do Fernando foi uma lição pra mim: ele me disse que já tinha me perdoado e sabia que eu iria tomar a atitude de pedir perdão. Ainda hoje tenho amigos na IBCU: Eclair Lino Junior e toda sua turminha!
» CAPÍTULO DEPRESSÃO: Pensa numa doença chata! Tudo de ruim que vc sempre diagnosticou em si mesmo vem a tona; Tudo de ruim que os outros diagnosticaram e vc também aparecem; Vc se sente um fracasso, uma fraude. Procurei um colega Psiquiatra que me ajudou bastante. Ele fez uma pergunta mais ou menos assim: o que vc gosta de fazer? O que te realiza? Era uma pergunta analítica - e eu não precisava responder no consultório, mas me senti desafiado a responder. Descobri que gostava de ler. Sempre me disseram que eu era um bom comunicador. Lembrei que amava a Bíblia. Reafirmei pra mim mesmo que - apesar dos meus altos e baixos - eu pertencia a Jesus porque Ele havia me comprado pra Si. Decidi ler a Bíblia e grandes comentaristas bíblicos. Por que não me tornar um ensinador da Palavra? Peguei o currículo do Seminário Presbiteriano do Sul pela internet e fui seguindo as literaturas indicadas. Estava -e ainda permaneço - convicto que não queria ser pastor. Também não precisava de diploma de teologia. Mas se havia um caminho pra sair da fossa esse caminho passava obrigatoriamente pela Palavra de Deus. CS Lewis, Berkhof, Barth, Agostinho, Dostoiewski, Eugene Peterson, Cheung, Bonhoeffer, Tim Keller, Bible Speaks Today Series foram meus tutores evangélicos. Mas não foram só estes: Rabi Harold Kushner, Rabi Abraham Heschel, Vitor Frankl, Martin Buber, Peter Kreeft, Erik Erickson também exerceram - e exercem - forte influência sobre meu pensamento teológico. Paradoxalmente, o autor que mais me ensinou sobre a 'Sola Gratia' ['somente a graça' - um tema predominantemente protestante] foi um padre católico: Brennan Manning. A história deste padre - e seus livros - me ajudaram a entender quem eu sou. Aprendi que a salvação pertence ao Senhor e Ele me ama como eu sou e não como eu deveria ser, porque eu nunca serei como deveria [por causa do pecado que habita em mim]. Eu sou aquele a quem Deus ama. Jamais poderei ser credor de Deus.
» CAPÍTULO IPBG: Passamos a cooperar com os irmãos da Igreja Presbiteriana de Barão Geraldo (também próximo de casa). Era uma igreja menor, com uma liturgia muitíssimo tradicional, mas decidimos que iríamos tentar. Reclamar menos e ajudar mais. E assim fizemos. Cooperei no ensino da Escola Dominical e também em algumas pregações. Preguei com frequência na congregação mantida pela igreja - ajudei os seminaristas a sonharem com o crescimento daquele trabalho. Fui eleito para presbítero desta igreja por 2 mandatos seguidos. Neste ano 2019 decidi abdicar do meu mandato de presbítero (que já exercia pela 2ª vez na IPBG). É tempo de fazer uma revisão de vida. Não sou mais capaz de passar uma noite sem dormir, sem sentir-me cansado e com dor de cabeça no dia seguinte -- aliás, sempre dormi muito cedo. Não sou capaz de ouvir um discurso inflamado sem fazer ponderações. Não consigo abraçar desafios sem considerar, antes, alguns riscos existentes.
» CAPÍTULO FAMÍLIA: Deus nos presenteou com dois filhos maravilhosos. Lorena, a mais velha, é a loirinha mais inteligente que eu conheço. Segundo a minha esposa ela é igual eu: não gosta de pentear o cabelo... já eu acho que ela se parece com a Samila: o armário está sempre bagunçado! Filipe (Pipão) é o caçulinha mais delícia do mundo. Sabe aquele olhar de gato de botas? Ele sabe fazer direitinho. E funciona!!! Meu desafio hoje é ser pastor dentro da minha família. Ensinar meus filhos que Deus os ama porque Ele é amor. E mesmo quando a gente faça alguma coisa errada Ele está pronto a nos perdoar. Minha esposa é uma joia preciosa. Ela sabe ler as expressões do meu rosto [achava que psicólogo lia a mente das pessoas - minha esposa lê até minha alma!]. Desejo amá-la Abraão amou Sara a ponto de - mesmo na velhice - enxergar toda a beleza do seu amor por ela. Queria cuidar melhor dos meus pais. Moramos longe e não nos falamos com a frequência que deveríamos. Mas eu não quero falar por falar - ou telefonar por telefonar... Quero aprender a compartilhar minha vida, meus temores e minhas alegrias com eles. Antes eles eram meus pais. Agora quero que eles sejam meus amigos e confidentes.
» Hoje completo 40 anos de vida. Tenho muito a agradecer a muita gente e não posso fazer isto aqui. Os 40 anos me tornaram mais ciente do quão pecador eu sou e do quanto eu preciso de Deus na minha vida. Aprendi também que Deus não precisa do meu trabalho. Ele continua sendo bom. Ele continua sendo Deus. Aprendi que para ser reconhecido como cristão não preciso falar em línguas [embora creia na contemporaneidade dos dons], mas dominar este órgão tão impetuoso.
Preciso, agora, escolher as batalhas que valem a pena serem travadas, cuidar de meu próprio coração para não estar entre aqueles que, apesar de ganharem o mundo, acabaram por perder a própria alma. É tempo de fortalecer o amor pelo meu ofício e revisitar minha vocação ministerial - desejo retomar meu amor pela pregação, ensino e descobrir novas convocações de Deus.
Por sinal, quando o assunto é revisão de vida não posso deixar de fora os ensinamentos do Pr Ricardo Agreste a respeito do livro de Eclesiastes. Bem possivelmente, o autor de Eclesiastes é alguém em plena crise da meia idade, olhando para o seu passado e avaliando o que fez do melhor de suas forças físicas, emocionais e intelectuais. Suas conclusões, para o leitor menos atento, são pessimistas e céticas. No entanto, uma análise mais profunda, nos revela uma grande sabedoria em suas palavras.
Numa destas palestras ouvi do Pr Agreste, muito mais em tom de brincadeira do que como informação acadêmica, que se considerarmos os livros bíblicos de Cantares, Eclesiastes e Provérbios como produto do mesmo escritor, teremos três textos representando muito bem momentos distintos da vida de um homem. O primeiro deles, Cantares, representa o momento das grandes paixões e amores. Bem possivelmente, ele se encontrava entre seus 20 e 40 anos. O segundo deles, Eclesiastes, representa o momento das grandes crises existenciais e das reavaliações que caracterizam o período entre os 40 e 60 anos. E finalmente, Provérbios, apresenta a preciosa sabedoria sintetizada entre os 60 e 80 anos por aqueles que, ao longo da vida, procuraram viver com sensibilidade.
Obrigado a todos que fazem parte da minha vida.