Raabe

O título deste romance e o uso de pérolas na história são resultado da licença poética. Embora os egípcios usassem madrepérola dentre suas joias naquela época, não houve evidências arqueológicas referentes ao uso propriamente dito das pérolas até os séculos mais recentes. No entanto, Madrepérola na Areia não teria o efeito proposto.
As Escrituras nos dizem que Raabe era uma prostituta (meretriz era o eufemismo usado para essa palavra), e a Bíblia hebraica usava duas palavras diferentes para descrever a prostituição: a primeira, kedeshah, se refere ao templo das prostitutas; a segunda, zonah, se refere aos tipos mais comuns de prostituta. Independentemente de a profissão de Raabe ser mencionada ou não, a palavra zonah é usada. Nossa história gira em torno dessa distinção.
Muitas referências feitas a Raabe, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, incluem o termo zonah (Raabe, a zonah), uma indicação de que o povo de Israel nunca esqueceu totalmente do passado dessa mulher. Embora a maioria das descrições associadas a ela tenha tendências positivas, este relato mostra que Raabe talvez tenha tido uma recepção um tanto quanto ambígua em seu novo lar. Por um lado, ela foi bem-vinda e admirada; por outro, seu passado ainda repercutia no presente.
O nome de Salmom aparece escrito de várias maneiras diferentes no original hebraico, como Salmon, Shalmon e Salmone. Na maioria das versões bíblicas de nossa língua, traduziu-se como Salmom, o que felizmente acabou por não coincidir o nome do nosso herói com o nome de peixe.
Sempre que possível, este livro recorre a fontes bíblicas e arqueológicas. A situação no capítulo dezessete, que compara a experiência de Raabe em Jericó à situação de Israel no Egito durante a primeira Páscoa, foi inspirada em um capítulo do livro Reading The Women of the Bible, de Tivka Frymer-Kensky (Nova York: Schocken Books, 2002, pp. 297-300). No entanto, este livro é por essência um romance - um registro ficcional de uma mulher que teve grande importância histórica tanto para os judeus quanto para os cristãos. A Bíblia hebraica revela que, após a destruição de Jericó, Raabe foi viver permanentemente em Israel, mas não há maiores detalhes sobre sua vida (Josué 6:25). Para os cristãos, o destino de Raabe é revelado em um fragmento de um dos versículos de Mateus, em que se descreve a genealogia de Jesus. Estas palavras simples nos mostram seu destino maravilhoso: E Salmom gerou, de Raabe, a Boaz (Mateus 1:5). Ou seja, Salmom e Raabe se casaram e tiveram um filho.
A Bíblia nos dá uma visão geral do passado de Salmom por meio de diversas genealogias (1 Crônicas 2:11; Rute 4:20-21). Certamente, ele veio de uma família bastante distinta de Judá; seu pai, Naassom, era o líder do povo de Judá e a irmã de seu pai era casada com Arão (Números 2:3-4). Nada se sabe sobre as realizações e feitos de Salmom, mas ainda assim o versículo de Mateus é impressionante. Como seria possível um homem que é praticamente um aristocrata judeu, importante o suficiente para ter seu nome registrado nas Escrituras, casar-se com uma mulher cananeia que ganhava a vida entretendo homens? Grande parte desta obra aborda esse questionamento, e obviamente esse aspecto do romance é puramente ficcional. Sabemos apenas que Salmom casou-se com Raabe, teve um filho com ela e o próprio Jesus enumera a prostituta cananeia como uma de Suas ancestrais. No entanto, a Bíblia não nos revela de que maneira esse casamento aconteceu ou quais obstáculos a relação enfrentou.
Ler um romance não é a melhor maneira de estudar as Escrituras, para isso temos a Bíblia. De forma alguma, esta história tem a intenção de substituir o poder transformador que o leitor encontrará nas Escrituras. Para uma melhor descrição bíblica de Raabe, leia Josué 1-10, Mateus 1:1-7 e o livro de Rute.
Capítulo Um
Ainda não havia amanhecido quando Raabe acordou com uma cotovelada insistente. Deixe de ser preguiçosa, garota. Seu pai e seus irmãos já estão quase prontos para ir. Depois disso, sua mãe lhe deu mais uma cotovelada.
Raabe suspirou e decidiu levantar. Com os olhos turvos e com o corpo pesado, ela se esforçou para ficar em pé. Há dois meses Raabe executava tarefas de homem, acordando antes do dia amanhecer e trabalhando duro na terra, com pouca comida, pouca água e sem o descanso necessário para renovar as energias. Mas era inútil, até uma menina de apenas 15 anos conseguia ver isso. As terras não haviam produzido nada, a não ser poeira, e assim como o restante de Canaã, Jericó estava sob o domínio de uma grande seca.
Embora soubesse que seus esforços seriam desperdiçados, todos os dias ela dava o melhor de si ultrapassando os limites da tolerância, porque, enquanto houvesse trabalho, seu pai tinha esperanças. Tão desesperada, Raabe não conseguia nem pensar.
Rápido, menina!, sua mãe a apressava.
Porém, Raabe já tinha arrumado sua cama, estava quase terminando de se vestir e acabando de fazer tudo em silêncio, com calma. Ela não se apressaria nem que o exército do rei estivesse à sua porta.
Seu pai apareceu triste, mastigando um pedaço de pão envelhecido, com o rosto pálido e cansado brilhando por causa do suor. Raabe vestiu seu cinturão com um movimento rápido e pegou um pedaço endurecido de bolo de cevada que serviria como café da manhã e parte do almoço. Ao dar um abraço apertado no pai, ela disse: Bom dia, papai.
Ele se esquivou de seu abraço e disse: Deixe-me respirar, Raabe. Voltando-se para sua esposa, ele afirmou: Tomei uma decisão. Se eu vir que não há nada a ser colhido hoje, desisto.
Raabe suspirou espantada enquanto sua mãe deixava escapar um lamento inquieto: Inri, não! O que será de nós?
Seu pai encolheu os ombros e saiu. Aparentemente, suas esperanças haviam findado. Ele admitiu a derrota. Em meio à escuridão, Raabe o seguiu sabendo que aquele dia não seria diferente dos outros, mas, só de pensar na desgraça de seu pai, sentiu-se mal.
Seus irmãos, Joa e Karem, esperavam do lado de fora. Karem mastigava um bolo de uvas, privilégio que a mãe preservava para o filho mais velho. A esposa de seu irmão, Zoarah, se aproximou falando baixo por causa de Raabe. Apesar da preocupação, Raabe mostrou um sorriso enquanto seu irmão, casado há um ano, dava as mãos à esposa. Os dois se casaram por amor, o que não era comum em Canaã. Mesmo implicando, sempre que havia chance, com seu irmão mais velho, o coração de Raabe batia mais forte ao pensar em uma união como aquela. Às vezes, em meio à escuridão, enquanto toda sua família dormia, ela sonhava em ter um marido que a amasse tanto quanto seu irmão amava Sarah. Porém, nos últimos dias, seus pensamentos estavam tão consumidos pela preocupação que não lhe restava mais tempo para sonhar acordada.
Esperando no limite mais afastado do pequeno terreno da família, Joa, o filho mais novo, de 14 anos, olhava para o nada. Raabe não o ouviu proferir mais do que três palavras durante tantos dias; era como se a seca tivesse acabado também com sua fala. Ela percebeu que o irmão estava com uma olheira muito forte e com o corpo debilitado, apesar da alta estatura. Provavelmente, ele tinha saído de casa sem comer nada. Raabe pegou o pão que estava guardado em seu cinturão, dividiu-o em duas partes e levou para Joa. O que não era o bastante nem mesmo para ela, imagine tendo de dividir para dois.
Coma isso, rapaz!
Joa ignorou a irmã e ela perguntou: Você quer que eu te perturbe até chegarmos à lavoura, ou não?
Ele olhou irritado para ela, mas estendeu a mão. Ela continuou por perto para certificar-se de que ele tinha comido, e em seguida foi atrás do pai.
À medida que eles andavam em direção aos portões da cidade, os passos assumiam um ritmo mais acelerado. Raabe notou que até mesmo Karem, que costumava não se preocupar, parecia bastante angustiado. Finalmente, ele quebrou o silêncio que pairava sobre eles. Pai, fui até Hebrom, na venda que o senhor falou, mas ele se recusou a vender óleo ou cevada por aquele preço. Ou ele dobrou os preços desde a última vez que o senhor comprou, ou o senhor se enganou em relação ao valor.
Então mande Raabe ir até lá. Foi ela quem negociou da última vez.
Raabe. Tinha que ser, Karem afirmou com um ar de bondade reluzindo de seus olhos. Apenas um olhar para esse rostinho lindo que todas as possibilidades de lucros e quantias desaparecem de Hebrom.
Não é bem assim!, Raabe retrucou muito irritada. Não tem nada a ver com o meu rosto; eu apenas sou melhor nas negociações do que você, só isso.
E você chama isso de negociação? Dar piscadinhas com os olhos não me parece negociação.
Eu vou é dar vassouradas se você não tomar cuidado com o que fala.
Chega!, ordenou o pai deles. Assim vocês me deixam com dor de cabeça.
Perdão, papai, disse Raabe corrigindo-se imediatamente. Seu pai não precisava de mais problemas e ela deveria aprender a controlar seus impulsos. Ele já estava com tantas preocupações pesando sobre os ombros que ela queria ser um conforto, não um fardo a mais.
Raabe não conseguia o consolar em palavras. Em vez disso, seguindo seus instintos, ela estendeu a mão à procura da mão do pai e a segurou. Por um instante, ele pareceu não perceber sua presença. Em seguida, virando-se para ela e meio disperso, ele percebeu a proximidade. Raabe lhe ofereceu um sorriso reconfortante, mas ele afastou a mão.
Você já está muito grande para andar de mãos dadas.
Ela ficou envergonhada e escondeu a mão por entre as roupas. Diminuindo o ritmo de seus passos, Raabe ficou para trás andando sozinha e seguindo as pegadas dos três homens.
Na lavoura, os quatro examinaram cada parte da plantação buscando por sinais de vida. Salvo alguns besouros com cascas grossas, eles não encontraram nada. Quase ao meio-dia, Raabe estava abatida demais para continuar e se sentou enquanto eles concluíam cuidadosamente a inspeção. Quando eles voltaram, seu pai murmurou em voz baixa: O que nós vamos fazer? O que vamos fazer?
Raabe desviou o olhar. Vamos para casa, papai.
Em casa, ela abriu a velha cortina que servia como porta principal e entrou, mas sua mãe a escorraçou gesticulando: Dê um pouco de privacidade a mim e ao seu pai.
Raabe consentiu com a cabeça e saiu. Em seguida, se recostou na parede repleta de lodo em meio às grandes sombras. Ela só queria achar uma forma de ajudar a família, mas nem mesmo seus irmãos conseguiram arrumar trabalho na cidade. A cidade de Jericó, que já estava abarrotada de lavradores desesperados em busca de trabalho, não os animava muito. De que jeito ela, uma simples menina, poderia ser útil? O som de seu nome ecoando pela janela resgatou sua mente distraída.
Deveríamos tê-la oferecido como esposa de Ian no ano passado em vez de esperar uma oferta melhor, disse a mãe.
Como iríamos saber que enfrentaríamos uma seca que nos levaria à falência? De qualquer modo, o dote que ele nos ofereceu não daria para nos sustentar nem por dois meses.
Mas seria melhor do que nada. Fale com ele, Inri.
Mulher, ele não a quer mais. Eu já perguntei, e ele está na mesma situação que a nossa.
Raabe prendeu a respiração tentando não perder detalhe algum da conversa. Em circunstâncias normais, a vontade de escutar a conversa alheia jamais passaria por sua cabeça, mas algo na voz de seu pai a fez especular. Raabe se arrastou como uma lagartixa pela parede e continuou ouvindo.
Inri, se fizermos isso não teremos como voltar atrás.
O que mais podemos fazer? Diga. Um silêncio intenso se juntou à ira de seu pai. Quando ele falou novamente, a voz dele estava mais calma e aparentemente cansada. Não há outro jeito. Ela é a nossa única esperança.
Raabe sentiu um enjoo no estômago. Em que seu pai estaria pensando? As vozes ficaram muito baixas para ouvir. Frustrada, ela foi andando até o fim das terras de sua família. Em uma estrebaria quase destruída, dois cabritos definhados roíam um arbusto ressequido no qual não havia mais nada a não ser madeira. Com os homens e Raabe trabalhando na lavoura todos os dias, ninguém teve tempo de cuidar da estrebaria. O cheiro pútrido agredia seus sentidos - um pano de fundo perfeito para suas emoções mais intensas, ela pensou. Seus pais se referiram a ela como a única forma de salvar a família, mas eles não falavam sobre casamento. De que outra maneira uma menina de quinze anos conseguiria ganhar dinheiro? Com a respiração rápida, Raabe levou as mãos ao rosto. Papai nunca me obrigaria a fazer isso. Nunca. Ele preferiria morrer. Tudo não passava de um malentendido. Mas o enjoo no estômago se intensificava cada vez mais.
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Sua mãe e eu estávamos pensando em seu futuro, Raabe, disse o pai no dia seguinte enquanto Raabe se levantava. Filha, você pode ajudar sua família inteira, mesmo que seja difícil para você. Eu sinto muito-. Ele parou de falar de repente como se não soubesse mais como prosseguir.
Ele não precisou falar mais nada. O terror a apavorou de tal maneira que ela não conseguia respirar. Com grande espanto, Raabe se deu conta de que seus piores medos haviam se tornado realidade. O pesadelo que ela havia interpretado como um mal entendido na noite anterior era verdade. O pai realmente queria vendê-la como prostituta. Ele queria sacrificar o futuro, o bem-estar e a vida dela.
Muitas moças precisam fazer isso - algumas mais novas do que você, disse ele.
Raabe olhou apavorada para o pai; ela queria gritar. Raabe queria agarrá-lo e implorar. Pense em outro jeito, papai. Por favor, por favor! Não me obrigue a fazer isso. Eu pensei que fosse sua garotinha preciosa! Eu pensei que o senhor me amava! Mas ela sabia que seria em vão. Seu pai já tinha tomado a decisão e não se abalaria com suas súplicas. Assim, ela engoliu cada palavra, assim como os argumentos e esperanças. Você nunca mais será o meu pai, ela pensou. Desde quando aprendeu a falar, ela já chamava seu pai de papai com uma ternura infantil, que demonstrava sua afeição pelo homem mais importante do que qualquer outro no mundo. Mas aquela ternura infantil havia se acabado para sempre. A dor dessa constatação era quase pior do que ter de vender seu corpo em troca de dinheiro.
Como se estivesse ouvindo algumas palavras não ditas, ele perguntou novamente: Que outra escolha eu tenho? Raabe se virou para que não precisasse olhar para o pai. O homem que ela amava mais do que qualquer outro, em quem confiava e quem tanto estimava estava disposto a sacrificá-la para o bem de toda a família.
Esse não era um acontecimento inusitado em Canaã. Muitos pais jogavam suas filhas na prostituição para sobreviver. Mas, mesmo assim, ainda que a escolha de seu pai não fosse nada fora do comum, Raabe não se conformou. Havia nada mais sujo e baixo para ela do que viver como prostituta.
Seu pai estava respirando rápida e intensamente. No templo você vai ter reconhecimento. Você será bem tratada.
Raabe se esforçou para falar, como se alguém a estivesse enforcando. Não. Eu não vou para o templo.
Você vai me obedecer!, seu pai gritou. Em seguida, mexendo com a cabeça, ele abrandou a voz. Precisamos de dinheiro, filha. Senão, morreremos de fome, inclusive você.
Raabe segurou o grito contendo-se para parecer tranquila. Não estou me recusando a obedecer ao senhor, meu pai. Apenas estou dizendo que não irei a templo algum. Se temos de fazer isso, não vamos incluir os deuses nessa história.
Seja sensata, Raabe. Lá, você terá proteção e respeito. Você chama o que eles fazem de proteção? Eu não quero o
respeito que as mulheres conseguem no templo. Ela se virou e olhou para ele diretamente nos olhos, mas ele desviou. Ele sabia sobre o que Raabe estava falando. No ano anterior, a irmã mais velha de Raabe, Izzie, ofereceu o primeiro filho ao deus Moloque. O bebê era uma grande alegria, e desde o momento em que sua irmã disse que estava grávida, Raabe sentiu que tinha uma ligação especial com ele. Ela o segurou minutos depois de seu nascimento, revestindo-o e embalando-o, admirando sua boquinha perfeita que abria e fechava como se estivesse mandando beijos para ela. O amor por ele a invadiu desde aquele momento de pureza. Mas sua irmã preferiu a estabilidade financeira, pois estava cansada da pobreza. Então, ela e seu marido Gerazim concordaram em oferecer o filho a Moloque para o próprio bem do menino.
Eles não deram a mínima atenção quando Raabe implorou que eles mudassem de ideia. Os dois estavam decididos. Nós teremos outro filho, disseram eles. Ele será tão lindo quanto esse e terá tudo o que quiser, o que é melhor do que ser criado na pobreza e passar necessidade.
Raabe foi ao templo com eles no dia do sacrifício na esperança de fazê-los mudar de ideia. Mas nada do que ela disse convenceu o casal.
Seu sobrinho não foi o único bebê sacrificado naquele dia. Havia pelo menos uns doze. O lugar estava cheio de pessoas que assistiam aos sacrifícios, e algumas encorajavam os sacerdotes, que ficavam diante de fogueiras enormes cobertos do pescoço até os tornozelos, a oferecer sacrifício. Raabe se apavorou com o que viu e ficou pensando em como seria a natureza de um deus que prometia uma vida boa às custas da morte de um bebê indefeso. Que tipo de felicidade alguém poderia comprar por esse preço? Ela manteve o filho de sua irmã nos braços até quando pôde, murmurando palavras de conforto enquanto observava aquele pequeno corpo. Ele exalava o cheiro do leite e do pão de mel mais doces. Raabe o apertou contra o peito pela última vez enquanto lhe dava beijos de despedida. O bebê gritou quando mãos brutas o arrancaram do colo de Raabe, mas aquilo não foi nada em comparação ao seu último grito à medida que o sacerdote se aproximava da fogueira ardente...
Raabe deu um passo incerto na direção de Gerazim, mas viu que Izzie já estava em seus braços.
Naquele dia, Raabe prometeu que jamais se curvaria diante de tais deuses. Ela os odiava. Apesar de todos encantos fulgentes, ela tinha visto quem eles realmente eram: consumidores da humanidade.
As terras de Izzie e Gerazim estavam tão devastadas quanto as de Inri, e eles fizeram tanto em favor das bênçãos de Moloque. Ela nunca recorreria a ele. Não, o templo não era lugar para ela.
Raabe, seu pai argumentou enquanto mordia uma das unhas já roídas, pense em como será a sua vida fora do templo. Você é jovem, não entende.
Não se tratava de não ter medo. A vida das prostitutas fora dos templos era difícil, arriscada e vergonhosa. Mas ela sentia menos medo de ter aquela vida do que de servir aos deuses de Canaã.
Pai, por favor. Não sei se consigo aguentar a vida no templo. Esperava-se que as filhas obedecessem aos seus pais sem hesitar, e as objeções e os argumentos de Raabe poderiam ser considerados desobediência. Seu pai poderia levá-la à força para qualquer templo e vendê-la sem que ela tivesse chance de se defender. Ela imaginou que seu pai nunca se rebaixaria a tal comportamento, mas depois se lembrou da noite anterior em que também achava que ele nunca exigiria que ela se prostituísse. Raabe perdeu o chão, e nada mais lhe parecia seguro.
Karem, que chegou no meio da conversa entre os dois, afirmou de repente: Pai, o senhor não pode fazer isso com essa menina. A vida dela será destruída!
Inri deu um golpe no ar com um gesto impaciente. E por acaso você descobriu alguma outra maneira de mantermos nossa família durante o inverno? Você arrumou algum trabalho? Ou conseguiu herdar dinheiro de algum tio que nós não conhecemos?
Não, mas eu ainda não tentei tudo. Há outros trabalhos, outras possibilidades. O coração de Raabe bateu mais forte com esperança por causa do apoio de seu irmão, mas a esperança logo se acabou com a resposta do pai.
Quando você se der conta de que não tem mais nada, sua linda esposa e seu filho que ainda nem nasceu morrerão de fome. Raabe é a única certeza de que sobreviveremos. Esse é o único jeito, repetiu ele com uma convicção absurda.
Karem abaixou a cabeça e não falou mais nada.
Raabe caiu no chão sem conseguir conter as lágrimas. Inri foi para o outro lado da casa e sentou-se em um canto olhando para o nada. A discussão findou à medida que suas palavras não ditas os separavam. Em meio àquele silêncio, Raabe sentiu que uma parede havia se erguido entre ela e o pai, e que a parede era tão inabalável quanto os muros da cidade.
Aconteceu que os dois estavam sentindo muita vergonha; Inri, porque tinha fracassado como pai - como protetor - e ela, por causa do que estava prestes a se tornar. Raabe ficou paralisada pela traição do pai, e um sentimento de solidão mais sombrio do que tudo que ela conhecia fora aprisionado em seu coração como um corpo na sepultura.
Depois de tudo, Inri não poderia recusar o único pedido de sua filha. Porém, o fato de Raabe não querer entrar no templo deixou seus pais em uma situação ainda mais difícil. De que maneira eles arrumariam clientes para ela? As coisas no templo eram simples e diretas, mas ninguém sabia como proceder de acordo com o desejo de Raabe.
Tem uma mulher que mora perto de nós; ela treinava as mulheres do templo, sua mãe sugeriu. Agora ela ajuda mulheres que trabalham em outros lugares.
Eu sei quem é ela, Inri murmurou. Ela me parece rigorosa. Eu também a conheço. Raabe uma vez viu a mulher agredindo uma das moças até sair sangue da orelha dela. Talvez essa não seja a melhor ideia.
Você nunca aceita as minhas sugestões, respondeu a mãe com a voz trêmula de censura. Você tem ideia de como isso dói em mim? Você sabe como é difícil para um coração de mãe ter que suportar a dor de um filho?
Não, eu provavelmente não sei, Raabe afirmou com palavras fortes como pedra. Ela achou melhor engolir quaisquer referências óbvias à sua própria dor. Dizê-las apenas faria sua mãe ter outro ataque de culpa e sofrimento, e Raabe não estava disposta a consolá-la enquanto sofria por causa de seus próprios sonhos destruídos.
Por que eu precisaria dar metade dos meus lucros a uma mulher que me bateria? Se a intenção é me fazer ganhar o suficiente para manter a família, não podemos ter uma parceira desonesta.
Raabe, nós não sabemos como... como fazer isso, disse o pai batendo os dedos na mesa.
Raabe sentiu o gosto amargo da raiva na garganta. Ignorando-o, ela falou: Vamos até Zedeque, o ourives. Ele saberá o que fazer. De vez em quando, seu pai fazia alguns favores a Zedeque. Ele era um homem rico, ourives do rei, e tinha boas relações na aristocracia de Jericó. Durante os últimos seis meses, por todas as vezes que Zedeque viu Raabe, ele olhava para ela com um desejo tão intenso que não lhe restava dúvida. Ela sabia que ele não a queria como esposa, pois se quisesse, já teria pedido ao seu pai. Contudo, Raabe sabia que ele pagaria bem pelos seus serviços, e ela queria fazê-lo pagar um bom preço. Já que era preciso passar por essa situação horrível, ela queria conquistar um pouco mais do que o alimento que garantiria a sobrevivência de sua família durante a seca. Raabe se libertaria do pai; ela ainda o amava e sua dedicação pela família continuava a mesma, mas estava determinada a nunca mais depender da proteção dele.
O que Zedeque tem a ver com isso?, perguntou a mãe.
Inri não respondeu. Ele fechou os olhos, esfregou as mãos na cabeça e disse: Nada não.
Raabe saiu em silêncio para chorar sozinha.
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Quanto será necessário para nos alimentar por um ano?, Raabe perguntou ao pai enquanto seguiam para o comércio de Zedeque. Suas pernas tremiam mais e mais a cada passo, porém ela se recusava a submeter-se ao medo que a desolava em seu íntimo.
Por quê?
Peça a quantia necessária para isso e mais um cordão, brincos e braceletes de ouro para mim.
Garota, você é bonita, mas não é tão bonita. Nenhum homem em sã consciência pagaria tanto por uma noite, ainda mais para você.
Seria ela atraente o bastante para convencer Zedeque a lhe dar uma boa quantia? Raabe sabia que já atraía os olhares dos homens nos últimos dois anos, quando seu corpo tomou forma e seu cabelo perdeu a placidez adolescente ganhando cachos firmes castanho-avermelhados. O que ela faria por Zedeque? Não apenas uma noite, ela respondeu distraída. Três meses. Ele me terá enquanto ainda sou jovem e pura... antes de mais ninguém....
Sua voz sumiu. Ela mal conseguia pensar em passar por aquilo de noite em noite, com homens diferentes entrando e saindo de sua vida. Talvez ter um cliente com alguma estabilidade a faria tolerar a situação por mais tempo.
Eu vou pedir, mas não espere que ele aceite.
É um bom negócio. Ele aceitará. Mas olha, três meses e nem mais um dia. Seu pai olhou como nunca havia olhado para ela antes; talvez ele não a conhecesse. Nem mesmo ela conhecia a si mesma.
Zedeque era um homem gordo e dentuço. Ele se vestia muito bem, ornado com ouro da cabeça aos pés, com enfeites em sua barba e guizos delicados nos sapatos de tecido. Quando ele viu Raabe e o pai entrando no comércio, foi direto ao encontro deles atropelando alguns clientes. Bom dia, Inri!, disse ele olhando fixamente para Raabe.
Pelas pupilas escuras de Zedeque, ela conseguia ver o reflexo do próprio rosto - seu nariz pequeno, seus lábios arredondados e seus olhos grandes, inchados por causa das lágrimas. Raabe havia lavado os cabelos para aquela visita; seus cachos escapavam por debaixo do véu, as mechas castanhas em forma de espiral davam forma ao seu rosto e caíam em cascata sobre as costas. Ao se lembrar do motivo que a fez lavar os cabelos, ela demonstrou vergonha e desespero - e pensou no olhar de Zedeque.
Seu pai pigarreou. Podemos falar com você, meu senhor?
Em particular?
Zedeque barganhou o quanto pôde, mas Inri, pensando em si mesmo, não cedeu. Zedeque olhou para Raabe, passou os dedos nos lábios e fez uma última tentativa. Quando Inri a negou gesticulando com a cabeça, Zedeque virou as costas e saiu. Raabe segurou a mão do pai e se levantou para ir embora; o pai lançou-lhe um olhar desesperado, mas ela continuou irredutível e ele cedeu. Zedeque, vendo a determinação dos dois, voltou e aceitou a oferta. Raabe percebeu que seu pai parecia espantado, mas assumiu uma feição branda, disfarçando a própria surpresa. Assim como seu pai, ela mal podia acreditar que Zedeque estava disposto a pagar tanto por ela.
Pelos três meses seguintes, Zedeque foi seu mestre. Ele gostava de ver que ela não sabia nada, e gostou de vê-la chorando durante a primeira semana. Depois, ele também gostou de consolá-la e não foi cruel. Ele nunca bateu ou abusou de Raabe. E se algo lhe despertou repugnância ou nojo, tanto dela mesma quanto dele, ela jamais o deixou perceber.
Quando os três meses se passaram, Zedeque entregou uma sacola cheia de ouro a Raabe. Além da sacola, ele deu algumas tornozeleiras conforme ela havia pedido. Ao conferir a quantia, Raabe percebeu que ele havia lhe entregado dinheiro a mais e voltou para prestar contas. Meu senhor, ela disse, o senhor me deu dinheiro a mais.
Minha querida Raabe está recusando dinheiro? Eu não trapaceio meus clientes.
Clientes? Ele revirou os olhos. Você só teve um, e não está me trapaceando, menina. Eu estou dando a você.
Raabe se curvou agradecendo e segurou a sacola de dinheiro com firmeza, quase desejando que Zedeque pedisse para ela ficar por mais tempo. Ele estava certo; ela não tinha conhecido homem algum além dele. Raabe não gostava do contato com ele, mas ela preferia estar apenas com um homem a ser um brinquedinho de muitos outros. No entanto, Zedeque não mostrou interesse em continuar com ela. Certamente ele já estava satisfeito.
Ela voltou para casa e entregou a sacola de ouro ao pai. Zedeque mandou o pagamento pelos três meses.
Seu pai olhou fixamente para dentro da sacola e exclamou: É muito! Nunca pensei que ele pagaria tanto!
E não vai haver mais outra. Zedeque já está satisfeito. Ele não me quer mais. Raabe tentou repelir as lágrimas.
E o que você esperava? Inri olhou de relance para ela antes de fixar o olhar novamente na sacola. Foi muito bom ele ter ficado todo esse tempo com você, Raabe. Ele é um cidadão do mundo e está acostumado com o melhor.
Como se ela não fosse boa o bastante. Raabe se deixou cair em uma almofada, e as palavras de seu pai a fizeram ver uma verdade que ela não ousava admitir para si mesma. Depois que um homem a conhecesse daquela forma, ele a rejeitaria. De qualquer maneira, ela seria indesejável ou não seria o bastante. Seu pai sabia disso; Zedeque sabia disso, e agora ela também sabia. De repente, ela se sentiu gélida. Raabe apoiou a cabeça nos joelhos, envolveu as pernas com os braços e começou a tremer. Seu pai foi até seus irmãos e sua mãe mostrar a sacola de ouro. Se não fosse pelo trigo e pelo óleo que Zedeque deu, a família já teria morrido de fome. Aquela quantia de ouro era o bastante para o ano inteiro e para comprar sementes para a colheita do ano seguinte.
Através da velha cortina que separava os cômodos, Raabe ouviu a voz abafada dos pais enquanto conversavam. Inri, o que vai ser dela agora?, perguntou a mãe com uma voz aguda. Você consegue convencer Zedeque a ficar com ela?
E como eu poderia fazer isso? Ele já está cheio dela, é isso. E o que devemos fazer? Ninguém vai querer se casar com ela agora.
Você sabia a resposta para isso desde o primeiro dia, mulher. Ela terá de tirar proveito disso, assim como todos nós. Sua beleza será útil a ela; ainda deve haver outros homens interessados. Bem, pelo menos por um tempo.
Raabe se retraiu ainda mais e engoliu um gemido. Sem pensar, ela pegou uma parte do grande tecido de seda do vestido em cada uma das mãos, amaciando-o como uma criança assustada faria com o cobertor. Ela se sentia apavorada pelo medo à medida que pensava no futuro - e em todos os Zedeques que entrariam e sairiam de sua vida e de sua cama.
Ela lamentou pelos sonhos que jamais se realizariam e pelo destino que ela jamais teria. Raabe lamentou pelas escolhas que não fez e, por fim, cansada de tanto chorar, ela fechou os olhos e se deitou no chão frio. Em meio ao desespero, um pensamento lhe ocorreu. Ainda lhe restava uma escolha; embora estivesse sujeita a vender seu corpo por dinheiro, ela poderia escolher seus amantes. Escolheria cada homem de acordo com sua vontade própria. Raabe tinha sido rejeitada por Zedeque, e aquilo foi muito difícil de engolir. Pelo menos aquela amargura ela evitaria. Ela seria dona do seu próprio coração, sem deixar que ninguém entrasse, e expulsaria cada homem antes mesmo de ele se dar conta de que ela não merecia ser amada, como fez Zedeque.
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Durante os meses em que Raabe esteve sob os cuidados de Zedeque, ela teve contato com outros homens importantes que ele conhecia. Muitos deles deixaram claro que, quando Zedeque terminasse, eles ficariam felizes em tê-la.
Raabe escolheu cuidadosamente, e um homem de cada vez. Ela restringia suas escolhas: tinha poucos clientes, mas muito generosos. Seu critério incomum aumentou sua popularidade entre os homens das classes altas, e cada um deles gostaria de ser escolhido. Raabe tornou-se a competição que eles desejavam ganhar.
Raabe, você é a mulher mais bonita de Jericó, muitos homens afirmavam. Nem mesmo o rei tem uma mulher no palácio que se compare a você, sussurravam eles em seu ouvido.
Em poucos dias, essas palavras colocaram sorrisos em seu rosto, mesmo que aquela alegria fosse superficial e passageira. Em seu interior, ela sabia que todos aqueles homens que a consideravam incomparável se cansariam dela depois de três meses, jogando-a fora como se faz com os ossos depois do banquete.
Às vezes, depois de estar com um homem, Raabe pegava a esteira e a sacudia sem parar. Havia dias em que ela dava beijos de despedida no cliente, sorria como se ele fosse o homem mais importante do mundo, fechava a porta e vomitava. Ela odiava o que fazia, mas não parava. Ela achava que não havia alternativa. O que mais ela poderia fazer depois de ter se prostituído? Sua vida se restringira a esse destino.
Quando Raabe alcançou os dezessete anos, tinha uma quantia em prata suficiente para comprar uma estalagem próxima aos muros da cidade, e sair de casa foi mais fácil do que ela imaginava. Dois anos de noites em claro e de dias constrangedores fizeram-na se afastar da família. O seu corpo a levava para onde seu coração já estava há muito tempo. Mas isso não queria dizer que ela não amasse mais a família como antes. Muitas vezes, em sua estalagem, ela sentia falta deles; porém, descobriu que estar com sua família apenas a fazia sentir-se mais solitária. Então, cada vez mais ela dedicou o tempo às necessidades de sua estalagem.
A maioria das donas de estalagem em Canaã também eram prostitutas, e isso era tão comum que os dois quase significavam a mesma coisa. Todavia, Raabe pensava em sua profissão separadamente. Nem todos que entravam eram recebidos em sua cama. Ela fazia questão de que sua estalagem fosse reconhecida como um lugar de elegância e conforto. Decorando-a com tapeçarias e com carpetes valiosos, ela recusou-se a aderir à ornamentação pomposa das outras estalagens. A localização ajudava: os muros ainda eram uma parte exclusiva de Jericó e, apesar do tamanho pequeno das residências e estabelecimentos construídos naquela região, eles eram algumas das propriedades mais cobiçadas de Jericó. Quando Raabe fez vinte e seis anos, sua estalagem era tão popular quanto ela, apesar de não ser tão acessível quanto seu corpo. Foi essa exclusividade que fez a entrada em sua estalagem ser tão requisitada.
Capítulo Dois
Na primeira vez que Raabe ouviu falar de Israel, ela estava trabalhando. Escondida sob um lençol de linho, observava com os olhos entreabertos enquanto Joabe, seu cliente, andava angustiado. Sua sobrancelha era tão castanha que a fazia lembrar a casca de uma noz. Raabe percebeu que ele estava agitado, mas esperou até que ele estivesse pronto para falar. Os homens admiravam as mulheres que se calavam nas horas certas. Quando finalmente se cansou de andar como um leão enjaulado, ele começou a falar.
Raabe, os hebreus derrotaram o rei Siom e seus filhos ontem à noite. O rei dos amorreus foi destituído por um bando de nômades. Agora toda Canaã corre perigo.
Do que você está falando?, perguntou ela, enrolando-se no lençol e sentando-se. Siom não pode ter sido derrotado. Siom, um dos maiores reis do leste do rio Jordão, dominava o reino como uma águia. Ela ouvia muitos homens o chamando de indestrutível e que seu reino estaria seguro para sempre.
Ele foi destruído, já disse, pelos hebreus. O líder deles, um velho chamado Moisés, enviou uma mensagem ao rei pedindo para viajar por suas terras em paz. Siom não apenas negou, como também preparou seu exército para atacá-los em Jaza. Talvez ele tivesse pensado que seria uma vitória fácil. Mas não demorou muito para que os hebreus virassem o jogo. Joabe parou de falar e ficou olhando para o nada, como se lhe faltassem palavras. Eles são bravos; estavam sem nenhum armamento. Então, quando o exército de Siom começou a correr....
Raabe se esticou. O exército de Siom correu?
É o que eu estou dizendo. Eles foram massacrados, e aqueles que não morreram de imediato correram. Mas os hebreus sem armadura correram mais rápido e os capturaram. Eles mataram alguns homens com fundas. Quem conseguirá dormir tranquilamente depois disso?
Raabe ficou de queixo caído com aquelas palavras. Para ela, assim como para todos que ouviram falar sobre aquele acontecimento, os hebreus eram um povo desconhecido. Impossível! Quem são esses hebreus? Nunca ouvi falar deles. Como eles demonstraram tanto poder? Os ouvidos de Raabe não estavam acreditando no que ela dizia.
Isso é o mais impressionante. Eles não são ninguém. São um bando de escravos fugitivos. Joabe foi caindo até o chão e recostou a cabeça na parede. Quarenta anos atrás, eles fugiram do Egito e, até então, vagavam pelo deserto. Eles não têm cidades, nem muros, nem terras para plantar ou arar, nem vinhas para colher. Todo mundo os ignorou.
O que você está dizendo não faz sentido. Como um exército de escravos conseguiria fugir do Egito? Como se o faraó permitisse. Isso é apenas um boato. Ela olhou para ele e controlou o medo. Cruzando os braços, Raabe se recostou em um travesseiro.
Joabe levantou os braços irritado. Raabe, você é jovem demais para entender. Houve uma grande rebelião de escravos no Egito, liderada por Moisés. Ele afirmava que seu deus queria que o faraó libertasse os hebreus. Faraó recusou-se a princípio, mas tantas pragas recaíram sobre os egípcios pelas mãos do deus hebreu que faraó teve de libertá-los. O Egito estava arruinado. Depois, no último segundo, ele mudou de ideia. Enquanto os hebreus partiam, o faraó preparou o exército e os perseguiu.
Não me diga que os escravos destruíram as carruagens de faraó com suas fundas?, Raabe sorriu forçadamente.
Joabe suspirou. Não foi tão simples. A rota de fuga os levou em direção ao mar, um verdadeiro beco sem saída. O exército invencível de faraó perseguiu os hebreus, mas, diante deles, havia uma quantidade de água impossível de atravessar. Eles estariam condenados, mas o deus deles abriu o mar.
Raabe levantou uma das sobrancelhas: Ah, sei!
Ele abriu o mar, é verdade! Ele o dividiu exatamente ao meio. Eles caminharam por entre as águas até o outro lado na terra seca com a água contida à sua volta. Em seguida, quando faraó e seu exército tentaram segui-los, as ondas os envolveram por cima. Cada um deles foi derrotado.
Enquanto Joabe repetia a história, Raabe se lembrou de ter ouvido algo sobre a morte misteriosa de um dos faraós e de seu exército. Foi quando os pais dela ainda eram jovens, e o Egito ainda não tinha se reerguido totalmente depois daquela derrota. Que tipo de deus ostentaria tanto poder? Se tudo aquilo fosse mesmo verdade, quem poderia se impor contra tal deus? Ela começou a entender o motivo de tanto medo por parte de Joabe.
Curvando-se, ela pegou um tecido bordado que estava no chão e o colocou sobre a própria cabeça. Quer ficar aqui hoje à noite? Posso fazer um jantar se você quiser. Era melhor ela se concentrar em tarefas menores do que nos feitos dos reis e dos deuses. O que ela, uma simples dona de estalagem, tinha a ver com acontecimentos tão grandiosos?
Mas ela não conseguia tirar aquela história de Joabe da cabeça. Na manhã seguinte, os soldados nos portões da cidade confirmaram o que ele dissera, ou pelo menos a parte sobre a derrota de Siom. Hesbom estava sob o domínio dos judeus. Certamente, aquilo já era assustador o bastante, sem falar nos mistérios.
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Juntamente com todos em Canaã, Raabe logo ouviu mais notícias perturbadoras sobre os hebreus. Nos meses seguintes à derrota de Siom, eles haviam ganhado outras batalhas surpreendentes. Eles sitiaram e dominaram as cidades fortificadas de Nofá, Medeba e Dibom, matando todos os habitantes. A cada derrota, Canaã ficava mais e mais aterrorizada. Os rumores corriam, e os hebreus eram imbatíveis. Eles eram incontáveis, e suas armas eram feitas de um metal que ninguém conseguia destruir. Eles tinham cavalos arrebatadores e cresciam mais do que tudo a cada vitória.
Raabe não acreditava naqueles relatos exagerados sobre o povo hebreu. Ela se lembrou das palavras de Joabe enquanto ele falava sobre a derrota de Siom. Eles não eram ninguém. Não tinham um arsenal sofisticado nem armamentos, muito menos terras e riquezas. Aquela era a real faceta do povo hebreu, ela acreditava. E, ainda assim, eles estavam exterminando uma cidade após a outra, um exército após o outro. O que estaria por trás daquele povo?
Até mesmo Jericó, a grande Jericó com seus muros antigos e seu exército bem treinado, estava receosa. Canaã ostentava muitas muralhas, mas nenhuma delas se comparava à morada de Raabe. Os muros de Jericó eram assombrosos. Eles eram tão espessos que as pessoas construíam casas e estabelecimentos neles. Na terra de Canaã, quando as pessoas queriam dizer que alguém era forte, elas faziam comparações com os muros de Jericó. Mas até mesmo o povo de Jericó estava temeroso com as conquistas impressionantes dos hebreus a leste do rio Jordão.
A quantidade de sacrifícios aumentava à medida que as pessoas buscavam proteção contra a ameaça daquele novo inimigo terrível. Raabe sentia de longe o cheiro da carne queimada nos templos e nos altares, a ponto de o rei mandar seus soldados manterem a ordem. Havia rumores de que as prostitutas no templo trabalhavam dia e noite, e Raabe sentia pena delas. Ela esperava que elas ficassem cansadas o bastante para pensar e sentir alguma coisa.
A idolatria desesperadora do povo não atraía Raabe. Quanto mais ela via aquele tipo de fé em prática, mais ela a abominava. Nem mesmo o medo e o desespero a fariam se entregar a Baal, Moloque ou Asera.
Sua vida seguiu normalmente apesar da agitação nas ruas. Ela deixou Joabe, e, por um bom tempo, sua estalagem e sua cama permaneceram vazias. Poucas pessoas viajaram durante aqueles dias, com medo dos assaltos dos forasteiros. Raabe tinha uma quantia suficiente de ouro, e a falta temporária de trabalho não a preocupava. As terras de seu pai receberam uma ajuda extra, ela foi passar alguns dias na lavoura trabalhando duro como lavradora. Sua pele escureceu e suas unhas ficaram feias. Isso não é para mim, ela pensou enquanto observava suas mãos ásperas depois de uma tarde de trabalho debaixo do sol. Perceber aquilo a fez sorrir. Embora tivesse desejado muito fazer aquela escolha aos quinze anos, ela sabia que não merecia viver daquele tipo de trabalho. A vida dos lavradores era curta e dura, e ela não tinha força suficiente.
Certa noite, ela recebeu um convite para um banquete, enviado por um primo distante do rei. Com o passar dos anos, Raabe tinha se tornado uma convidada especial nas festas dadas por homens influentes que queriam um bom divertimento longe das esposas. Ela foi ao banquete sabendo que não poderia mais continuar ausente para que não fosse esquecida nesses meios sociais tão importantes.
Raabe escolheu um vestido de seda cor de creme com detalhes bordados em prata. Por suas roupas, ninguém nunca diria que ela era prostituta. Ela se vestia como qualquer outra mulher elegante de Canaã, tendendo mais à simplicidade do que à exuberância. Ela achava que as curvas do corpo de uma mulher, quando mostradas com certa modéstia, chamavam muito mais atenção que as vestes ultrajantes. Diferentemente da moda na época, que ditava que as mulheres deveriam puxar mechas finas dos cabelos adornando-as na testa, Raabe preferia deixar os cabelos soltos até as costas. Ela usou brincos grandes e colocou enfeites no braço. Ela não queria ficar muito tempo, mas queria deixar boa impressão.
Raabe!, exclamou o anfitrião quando ele a viu entrar, surgiu um belo sorriso de seu longo rosto.
Ela tirou as mãos da cintura e fez uma reverência gentil. Meu mestre.
Eu queria mesmo te ver aqui.
Ela sorriu ao olhar para os olhos dele. Sua casa está linda esta noite, meu senhor.
Agora que você chegou, certamente ela ficou linda.
Raabe sorriu. Eis o perigoso charme real. Ela sabia que qualquer primo do rei gostava de ser tratado como realeza. A mão da realeza estava descendo demais pelas costas de Raabe e ela desviou rapidamente, esbarrando em um corpo forte. Virando-se, ela exclamou. Perdão.
Ela conhecia aquele homem de vista; ele servia como general do exército - ele era um dos melhores militares de Jericó. Como era mesmo o nome dele? Debir, lembrou ela.
Manobras evasivas, disse ele com uma cara séria. Eu entendo. Algumas formas sinuosas surgiram ao redor de seus olhos. Raabe ficou sem ação e virou a cabeça desviando o olhar, e o anfitrião já tinha ido receber outra pessoa.
Um esbarrão amistoso, ela respondeu. Ele sorriu. Eu me chamo Debir.
Eu sei. Sua presença já diz tudo, meu senhor. Eu me chamo Raabe.
Sim. A sua presença também faz o mesmo.
Ela inclinou a cabeça. Suponho que tenha ouvido falar de mim nas conversas com alguns de seus amigos.
Ah! Não sou chegado a essas conversas tolas.
Nem eu. Prefiro conversas inteligentes, mas isso não é muito comum na minha profissão.
Na minha também não. Os dois riram. Naquela noite, um entendimento mútuo misturado com respeito se deu entre os dois. Dentro das primeiras horas em que eles se conheceram, Raabe decidiu aceitar Debir como amante.
Ele ficou muito feliz em ser o companheiro dela. Raabe sabia que ele ficaria com ela não por luxúria ou por algum motivo afetivo, mas simplesmente por estar livre de responsabilidades durante algumas horas. Até mesmo um homem firme como Debir precisava ficar em algum lugar onde não fosse continuamente atormentado para ter de tomar decisões e fazer julgamentos importantes. Por onde quer que Debir andasse, ele carregava nos ombros o peso das expectativas. Suas três esposas e seus muitos filhos dependiam dele tanto quanto as tropas do exército real. Debir ficou com Raabe simplesmente para relaxar.
Diferentemente dos outros homens, Debir gostava da sagacidade de Raabe e de conversar com ela. Assim, por muitas vezes, ele falava sobre assuntos políticos, algo que a maioria dos homens de Jericó pensava estar acima da compreensão feminina; apesar disso, ele nunca compartilhou segredos de Estado. Ele era um soldado dedicado demais para isso. Mas conversava com ela sobre as guerras que aconteciam nos arredores e sobre as mudanças que estavam ocorrendo em Canaã.
Parece que os hebreus sitiaram Ogue, disse ele para ela em uma noite, com os traços do rosto brandos e curiosamente sem expressão, como se tivesse acabado de proclamar a notícia mais arrasadora que Canaã ouvira em cem anos.
Raabe murmurou. Ogue, o rei de Basã, era conhecido por ser um gigante tanto na estatura quanto na habilidade. Sua cama de ferro era considerada uma das maravilhas do mundo, de tão comprida e grande que era. Nenhum cananeu conseguia imaginar alguém que tivesse coragem suficiente para lutar contra Basã. Agora, com certeza eles serão destruídos, afirmou ela.
Debir levantou uma sobrancelha, mas não disse nada. Você não acha?
Digamos que eu não queira tirar conclusões precipitadas. Você não acha que Ogue pode derrotá-los? Você acha que eles podem invadir a cidade de Edrei?
Edrei é uma questão diferente. A cidade é protegida por um desfiladeiro de um lado e uma montanha de outro. Ela é localizada bem no meio desses dois. Estrategicamente falando, Edrei é impenetrável. Não vejo como Moisés e seus guerreiros feiticeiros conseguiriam entrar.
E não é lá que Ogue está?
Por enquanto, sim. Ele se estabeleceu lá, e tudo o que tem a fazer é sentar e esperar os hebreus saírem. Será um cerco longo e cansativo. Os hebreus não podem fazer nada, a não ser esperar. Eles precisarão de comida, bebida e plantação para os animais. Com o tempo, eles terão de desistir e se entregar.
Raabe franziu as sobrancelhas. Eu achei que você estivesse com medo de Ogue perder, mas agora você está me dizendo que ele sequer vai precisar lutar.
Debir foi até a janela, olhou para as plantas e para os montes que levavam ao Jordão. Nenhum sorriso surgiu em seu rosto até quando ele se voltou para encará-la. É muito pior para o orgulho de um rei quando ele precisa se esconder em vez de lutar. Talvez ele não perca, mas também não vença. Ogue é um guerreiro e seu orgulho é grande como suas pernas. Será preciso uma boa dose de consciência para mantê-lo protegido em Edrei.
E você acha que ele tem mais orgulho do que consciência. Vamos apenas esperar para ver.
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Ogue preferiu lutar. Como o rei era tolo, ele preparou o exército inteiro para ir de encontro aos hebreus na batalha. Um único soldado sobrevivente contou a história para um comerciante que passava para ir a Jericó. A cidade de Edrei fora atacada por um enxame de vespões. O local estava cheio deles; os insetos levaram os cavalos à loucura, e não havia como escapar. Seus ferrões eram tão cruéis que mataram dos mais jovens aos mais velhos. Cada um de seus guerreiros gemeu de dor e foi assolado pela vergonha. Ogue não pôde aguentar. Ser aprisionado no próprio reino por um inimigo inferior era muito ruim, mas a indignação de ser picado por vespões era demais para ele. Ele não era um escravo para se acovardar em suas terras fugindo de um bando de inúteis! Assim, ele decidiu reunir os filhos e o exército para lutar contra os hebreus.
Mas os hebreus exterminaram cada um deles e dominaram as terras.
Agora, não vai demorar muito para que Moisés comece a olhar para Jericó, disse Debir depois de contar a história da derrota de Basã a Raabe. Ele estava deitado de costas, olhando para o teto. Somos a primeira maior cidade a leste do Jordão, e se ele entende alguma coisa de guerra, fará de nós seu próximo alvo.
A boca de Raabe ficou seca depois de ouvir aquelas palavras. Bem, então não abra os portões nem saia para enfrentá-los se eles vierem. Estaremos protegidos entre nossos muros.
Com os dedos polegar e indicador, Debir espantou uma mosca que estava perto dele, mas foi tão agressivo que a mosca morreu. Voltando-se para Raabe, ele disse: Você sabe que eles atravessaram o mar Vermelho enquanto fugiam de faraó. O mar se rompeu e caiu sobre o exército do Egito.
Raabe se deixou cair em uma almofada de plumas e se recostou em uma peça escarlate de tapeçaria. Não me diga que você acredita nessa loucura?
Debir olhou para ela de forma enfática. Eu acredito, e tenho acreditado por quase quarenta anos desde a primeira vez que ouvi falar nisso. O deus deles está muito além da nossa compreensão.
O sorriso de Raabe estava cheio de sarcasmo. Outro deus sanguinário. Maravilha! É tudo que Canaã precisa.
Ele mexeu a cabeça e seus olhos brilhavam encantados. Você tem ideias muito estranhas, Raabe. Agradeça pelos deuses não terem acabado com você.
Eu os deixo sossegados e eles retribuem o favor. Por que você acredita nessas loucuras de mares que se partem e de faraó se afogando, Debir? Espalhar boatos não tem muito a ver com você.
Não são boatos.
Você viu com seus próprios olhos?
Debir passou a mão pelos cabelos. Mas eu vi pelos olhos de quem viu em primeira mão: um dos hebreus.
Raabe apromou-se. Você conhece um deles?
Quarenta anos atrás eu conheci. Debir se levantou da esteira e foi sentar-se perto dela. Cruzei com ele antes do meu treinamento militar. Se não fosse tão jovem, eu teria visto que ele era um espião. Naquela época, acreditei que ele fosse comerciante, conforme havia falado. Ele me viu nos portões e me deu um salário por tê-lo ajudado a conhecer a cidade durante uma semana.
Seus olhos se arregalaram. Por que, então, eles não nos atacaram naquela época? Para que esperar por quarenta anos e só então começar a atacar?
Não sei. Talvez esse Moisés estivesse se preparando durante esses anos. Afinal, ele era o líder naquela época também.
Talvez ele morra antes de enfrentar Jericó.
Mas eu tenho a sensação de que nem isso os impediria. O hebreu sobre o qual eu falei com você me disse que o verdadeiro líder é o deus deles. Foi ele quem enviou Moisés para ir ao Egito a fim de libertar seu povo da escravidão. Ele disse a Moisés que havia visto a aflição e a miséria de seu povo e que estava preocupado com o sofrimento deles. Ele queria libertá-los do jugo de faraó.
Raabe franziu as sobrancelhas, pensativa. Palavras como preocupado não faziam parte do vocabulário dos deuses. Mesmo assim, se Debir estivesse certo, haveria então um deus que sentia compaixão do sofrimento humano, e pensar na compaixão vinda de um deus trouxe uma sensação diferente ao seu coração. Um desejo intenso a arrebatou e quase a fez chorar; era o desejo de ter alguém que se preocupasse com seu sofrimento e se importasse o bastante para resgatá-la.
Sem dó nem piedade, ela repreendeu aquele desejo pérfido. Bem, ele não tinha tanta compaixão pelos egípcios, já que afogou vários deles. Ele se importa apenas com os hebreus? Ele não pensou nas mães e esposas que sofriam no Egito?
Debir pegou um dos cachos pesados de seus cabelos e o puxou levemente. Eu não teria compaixão alguma dos egípcios se eles tivessem tratado o meu povo como tratavam os hebreus. Por incrível que pareça, o deus dos hebreus deu muitas oportunidades para que o faraó libertasse seu povo sem que houvesse mortes. Ele dava um aviso após o outro, mas o orgulho foi maior. O Egito não se curvou à sua vontade; se não tivessem perseguido o povo hebreu, ninguém teria se afogado.
Raabe soltou das mãos de Debir o cacho de seus cabelos. O que mais esse homem falou para você sobre o deus deles?
Debir deu de ombros. Ele é um tanto peculiar. Não permite que estátuas dele sejam construídas, as pessoas não podem vê-lo ou tocá-lo; ele diz ser o Único e Verdadeiro Deus, por todos os lugares e acima de tudo. Seria hilário, se não fosse o poder que ele parece ter.
Um deus que não se pode ver? Qual seria o objetivo? Como se pode acreditar em algo que os sentidos demonstram não estar presentes?
Eu não sei, mas o espião hebreu me disse que isso não é impedimento. Ele disse que há outras maneiras de sentir a presença de deus sem ser as imagens.
Raabe se apoiou com os cotovelos e olhou fixamente para Debir. Como, por exemplo?
Eu não sou um seguidor, Raabe. Não sei muita coisa sobre o assunto. Só o que posso dizer é que ele é bastante verdadeiro. Por exemplo - essa você vai achar interessante -, ele proíbe a prostituição como parte da adoração. Um dos lugares onde levei o hebreu foi o templo. Ele cobriu os olhos quando viu as prostitutas com os adoradores e me disse que, segundo a lei dos hebreus, elas deveriam ser apedrejadas.
Apedrejadas?
Você seria uma hebreia muito má, não é, Raabe? Ou seria uma hebreia morta.
Ela engoliu em seco. Havia uma jarra com vinho por perto e ela colocou um pouco em um cálice que ela mesma tinha ornado em prata, esquecendo-se de oferecer a Debir. O vinho desceu como poeira.
Capítulo Três
Ninguém conhecia como Raabe o poder destrutivo de sua profissão. Ninguém sabia melhor do que ela o que aconteciacom a alma de alguém quando entregasse seu corpo sem nenhum envolvimento emocional, sem compromisso algum e sem esperanças no futuro. Nenhum prazer poderia preencher o abismo da solidão que não parava de crescer a cada dia. Havia dias em que ela gostaria de estrangular os homens que a tocavam sem nenhum sentimento, e havia dias em que ela achava que sua morte não seria um destino tão ruim assim. Na verdade, ela já se sentia parcialmente morta, e parecia que o deus hebreu concordava com ela. Ele era um deus de compaixão, mas, para Raabe, ele só tinha pedras. Continue, ela disse a Debir cheia de medo e fascinação ao mesmo tempo.
Debir inclinou-se até ela, tirou o cálice de sua mão e tomou em um só gole o restante da bebida. Aparentemente, o deus hebreu tem um coração tão piedoso quanto o de uma mulher. Naquele dia, os sacerdotes do templo estavam sacrificando muitas crianças.
Você acredita que o espião chorou ao ver? Nunca me esquecerei de suas lágrimas. Ele era um homem grande, com boa estrutura e bastante musculoso - de forma alguma ele parecia frágil, exceto pelas lágrimas que rolavam pelo seu rosto. Como era jovem, eu o considerei um fraco, que chorava como um garoto despreparado diante do sacrifício.
Ele perguntou se eu não sentia aversão. Claro que não, eu respondi. Ele me disse que seu deus jamais permitiria tal atitude, e depois disse: Seus corações são muito endurecidos, Debir. Seu povo se edificou muito além da redenção, e nem mesmo o Senhor consegue resgatá-los. E Ele é o Senhor dos céus e da Terra.
Raabe se voltou para Debir segurando a respiração. Um deus que dava valor à vida? Um deus que se importava com bebês desconhecidos? Um deus que viu a injustiça de Canaã e a declarou muito além da redenção? Mais uma vez ela sentiu aquele desejo, agora ainda mais forte. Mas a ironia daquele desejo também não a abandonava: a ironia lamentável de uma prostituta de Jericó que desejava conhecer o deus hebreu.
Então você acha que o deus deles está sistematicamente nos purificando por consequência de seu julgamento?, ela perguntou. Debir encolheu os ombros. Eu não sou sacerdote. Como soldado, posso dizer que eles estão vencendo batalhas que não deveriam vencer. O deus deles me deixa perplexo, pois parece ter mais poder do que qualquer outro. Poder e compaixão. Nunca vi nada parecido e, se você quer saber a verdade, não me importo em enfrentar isso agora. Só espero que o deus hebreu esteja satisfeito com as terras do oeste do Jordão. Deixe-os se estabelecerem por lá, e talvez possamos negociar com eles.
Mas, para você, isso não vai acontecer.
Debir inclinou-se e encheu novamente o cálice de prata. Se eu fosse o general deles, eu não o faria. Cercados por midianitas, edomitas, amorreus e egípcios, como eles se protegeriam? Seria preciso dormir com um dos olhos abertos para o resto da vida por muitas gerações. Se o deus deles deseja dar descanso ao povo, ignorar-nos não seria uma boa tática.
Você está com medo dele - desse deus?, ela deixou a pergunta escapar.
O fato de ela ter feito essa pergunta poderia ser considerado um insulto a qualquer homem, mas Debir não deu tanta importância à inconveniência de suas palavras. Ele se levantou de repente e começou a andar de um lado para o outro naquele lugar apertado. O Senhor, é assim que eles o chamam, ele falou ajoelhando-se bem perto de Raabe. Ela sentia o calor de sua respiração embebida no vinho à medida que ele falava. Todos estão com medo. Até mesmo os quartéis foram tomados pelo medo. Se Ogue e Siom não conseguiram conter o Senhor, como nós poderemos? Ele não está interessado em termos e compromissos. Ele é como o fogo que se consome. Você perguntou se eu estou com medo. Raabe, eu nunca soube o que era medo... até agora.
Você acha que nós vamos morrer. Não era uma pergunta. Ela conseguia ver a convicção estampada em cada traço do rosto de Debir. O Senhor. Finalmente ela havia encontrado um deus de poder e compaixão, mas ele era seu inimigo.
Sim, eu acho. Mas acredito que ainda levará algumas semanas. O rio está do nosso lado, pois está em período de cheia. Não se pode atravessar nenhum exército por enquanto, mas quando secar, eles chegarão.
Como eles vão passar pelos nossos muros? Ninguém jamais conseguiu fazê-lo por séculos, desde que foram construídos, por causa de sua altura e largura.
Você está certa. Nenhum exército pode passar por essas paredes. Mas não se trata de um exército; trata-se de um deus. Nenhum muro pode conter sua vontade. Debir abaixou a cabeça enquanto dizia isso, e Raabe percebeu algo que nunca tinha visto em seu rosto: desespero. Ele não tinha mais esperança. Naquele momento, ela se convenceu da ruína de Jericó.
Depois que Debir foi embora, Raabe encheu-se com um desejo repentino de estar do lado de fora, distante da repressão de seu lar. Suas sandálias faziam barulho pelas escadas à medida que ela, aliviada, saía para ver o dia claro. Respirando fundo, ela começou a andar como se seus pés tivessem vontade própria.
Não muito distante da estalagem, ela desceu uma rua estreita e se deparou com um grupo de crianças brincando. O barulho delas brincando a fez distrair-se de seus pensamentos, e ela os observava com um sorriso. Mas seu sorriso desapareceu quando descobriu a natureza da brincadeira: eles tinham cercado um mendigo e estavam arremessando pedras e falando palavras grosseiras para ele. O velho se encolheu em um canto, e suas mãos trêmulas cobriam o rosto.
Quando uma pedra mais afiada cortou a testa do homem, o sangue começou a escorrer pela pele enrugada e pingou em um de seus olhos.
Uma menina apontou um dedo para o mendigo e gritou: Vejam como a barba branca dele treme - ele está chorando! Atirem mais pedras!
Chorar não é nada, um garoto ria. Acho que ele molhou as calças!
É isso aí!, muitos espectadores diziam e os animavam com risadas.
Deixem-no em paz!, gritou Raabe.
O garoto, prestes a pegar outra pedra, parou imediatamente e olhou para Raabe, toda vestida de roupas finas. Senhora, ele é apenas um mendigo, a senhora não vê?
Eu já disse, deixem-no em paz.
Todos olhavam para ela naquele momento. O que você quer?
Ele é só um mendigo. Ele fede!
Raabe ficou imóvel. Era comum o povo tratar os moribundos pior do que cachorros sem dono. Provavelmente ela mesma passou por ali por muitos dias sem nem ao menos vê-lo. Com certeza não o maltrataria, mas também não pensaria na condição em que ele se encontrava.
Raabe examinou os pequenos rostos diante dela. Nenhum deles parecia demonstrar remorso, culpa ou arrependimento. Eram apenas crianças, mas, desde já, tinham aprendido a maltratar os mais fracos e a odiar os indefesos.
Saiam já daqui, ela ordenou. Eles lhe obedeceram em parte porque era adulta, mas também porque suas roupas eram mais finas do que as deles. O povo de Jericó sabia respeitar as pessoas que tinham mais dinheiro.
Ela se ajoelhou diante do homem. O senhor está muito ferido?
Ele se encolheu e não disse nada. Ela viu que o corte era superficial, e seria mais um machucado em seu corpo, além das cicatrizes que ele fizera ao longo da vida. Ao mexer em sua bolsa de linho, Raabe pegou algumas moedas de prata que provavelmente o homem jamais teria recebido em um só lugar. Colocando as moedas nas mãos do homem, ela disse: Vá e procure um lugar seguro para se lavar e descansar. E tente comer algo fresco. Sua boca se abriu e ela viu que os dentes estavam apodrecidos. A visão estranha daquela boca sem dentes, abatida e fedorenta, fez seu coração se encher de piedade em vez de nojo.
Ele envolveu as moedas com seus dedos trêmulos. Levantando as mãos, ele gritou: Malditas crianças! Que muitas maldições recaiam sobre elas!
Shhhhh, Raabe sussurrou. Sem entender o que estava fazendo, Raabe abraçou o homem como as mães fazem com os filhos queridos. De repente, ele começou a chorar, irrompendo em soluços que pareciam não ter fim.
Com muita angústia, ela se deu conta de que eles não eram muito diferentes. Ela também tinha feridas horríveis, mas as suas eram interiores. Ela também estava abandonada e também fora rejeitada. Sua vida havia sido desperdiçada. Não, ela não sentia nojo dele; sentia apenas compaixão e compartilhava da sua dor.
Quando ele se acalmou, ela se levantou. Senhora, ele murmurou. Ninguém me segurava assim desde que eu era menino.
Raabe sorriu e fez um gesto com a cabeça. Cansada devido ao acontecido, ela se afastou e começou a correr de volta para casa.
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Raabe contou aquela história a Debir quando ele foi visitá-la no dia seguinte. Ele deu de ombros, desmerecendo o assunto. Ele é um mendigo, Raabe. Não sei o que tanto te incomoda.
Raabe o analisou em silêncio. Debir era o amigo mais próximo que ela mantinha desde a infância. Ela gostava de sua sinceridade e inteligência, mas tinha de admitir que ele era duro. Impenetrável. Você acha que o deus dos hebreus se importa com os mendigos?, perguntou ela tentando incitar algum sentimento nele.
Como eu vou saber? Eu sou hebreu? Ele se importa com bebês e escravos; talvez ele se importe com mendigos também.
Raabe afastou-se com tristeza. E mesmo assim ele quer nos destruir.
Sim.
Ela se sentiu dividida entre o medo e o desejo. Medo de um deus que desprezava seu povo e desejo de conhecer um deus que fazia dos indefesos vitoriosos. O medo era maior. Sem pensar, Raabe buscou pela mão de Debir e agarrou-se à sua pele grossa até sua mão ficar firme. Debir, vamos fugir. Vamos sair de Jericó.
Não há saída. Você não entende? O Senhor demarcou toda essa terra para o povo dele.
Bem, vamos para outro lugar. Vamos...
Raabe, pare. Eu não vou fugir. Por que eu deveria me ajoelhar a essa gentalha errante e seu deus piedoso? Sou um guerreiro de Jericó, senhor de Canaã. Não trairei minha posição ou meu povo. Ele livrou sua mão da dela e se afastou.
Raabe abriu a boca para tentar convencê-lo, mas a fechou novamente. Debir não sentia aquele desejo intenso de conhecer o novo deus como Raabe. Ele tinha medo do poder desse deus, e
o medo não era nada comparado ao orgulho. De que modo ela poderia contra-argumentar o orgulho de Debir se o medo que ele sentia do deus hebreu parecia fazê-lo mudar de ideia?
Uma tristeza muito forte a dominou enquanto ela observava as costas tensas de Debir. Seus dias juntos estavam chegando ao fim, ela sabia. Ele era um homem que não acreditava no futuro, um homem preparado para morrer. Homens condenados à morte voltavam para suas famílias e, de repente, as coisas que eles consideravam irritantes e enfadonhas pareciam preciosas e valorosas. As prostitutas não atendiam mais às suas necessidades.
Raabe se aproximou e esperou que ele a reconhecesse com um olhar. Ela acariciou com suas mãos macias o rosto dele. Espero que tenhas vida longa, meu senhor.
Você está se despedindo? É melhor assim.
Ele afirmou com a cabeça em um movimento disciplinado. Que o deus dos hebreus seja bom para você, pois os nossos deuses nos abandonaram.
Eu os abandonei primeiro, portanto, seu abandono não representa tanto para mim.
Ele quase sorriu. Mandarei um penhor. Não se preocupe fazendo economias. Gaste o quanto antes.
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Nos dias que se seguiram, Raabe passou muitas horas pensando no futuro. Ela pensava sobre as ruínas de Jericó e as paixões infundadas de seus conterrâneos, que levavam apenas à destruição e à infelicidade, e começou a pensar nos hebreus e em seus costumes estranhos. Muito estranhos, se comparado aos deuses de seu povo. Raabe não conseguia tirá-lo da cabeça. Haveria mesmo um deus que governasse sobre todas as coisas? Seria mesmo real esse deus dos hebreus que libertava alguns e condenava outros por alguma razão incompreensível? Ele fazia mesmo os escravos serem vencedores?
Depois de três dias pensando nessas questões e sem ter contato com mais ninguém, ela sentiu que precisava se divertir e decidiu procurar a família.
Os meus olhos estão me enganando ou a minha filha mais nova me honrou com uma visita?
O sorriso de Raabe desapareceu. Sua mãe a olhou da cabeça aos pés e lhe deu um beijo no rosto. Izzie e Gerazim também estão aqui. A família toda está reunida.
Por um momento, Raabe sentiu uma forte dor. Se não tivesse aparecido, eles a teriam convidado também? E por que convidariam? Ela havia ignorado tantos convites deles no passado. Embora frequentemente mandasse presentes, era raro visitá-los.
Ficarei feliz em rever todos, ela falou honestamente.
É mesmo a minha irmãzinha?, gritou Izzie e correu até Raabe para abraçá-la. Encantadora como sempre. Entre para não sujar suas roupas delicadas. Estou preparando a comida e precisarei de ajuda. Ela chegou mais perto para que apenas Raabe pudesse ouvi-la. Mamãe está me deixando louca.
Raabe riu, sentindo-se mais à vontade. Cozinhar com Izzie seria muito bom.
Mãe, agora que Raabe está aqui, a senhora pode descansar, anunciou Izzie. Por que não vai se divertir com seu neto?
O quê? E deixar vocês duas prepararem tudo? Pode apostar que não.
Izzie resmungou em voz baixa. Perdoe-me, mas cuido sozinha da minha casa há tempo suficiente para preparar o jantar da minha família. E Raabe é dona de uma estalagem reconhecida.
Obrigada por me lembrar, como se eu pudesse esquecer disso, disse a mãe das duas com os lábios se esbranquiçando.
Agora Raabe se lembrou do motivo pelo qual raramente visitava a família. Izzie lhe deu um toque. Ignore-a. Venha comigo. Para o alívio de Raabe, sua mãe não as seguiu, e ela passou duas horas ajudando a preparar algumas iguarias para o jantar da família. Depois de um tempo sua cunhada se juntou a elas e Raabe viu que estava rindo de histórias bobas. Ela sentia saudades da família, apesar dos comentários incômodos e das expectativas estressantes. Ela sentia falta deles e nem sabia disso.
Com o passar dos dias, ela percebeu que estava passando cada vez mais tempo com eles. Com as mulheres, ela limpava o jardim, ia buscar água, fazia queijo e iogurte com leite de cabra, trocava coisas no bazar e desfiava lã. Naquele período, a época de colher o linho e a cevada havia chegado, e então Raabe se juntou à família mais pelo desejo de estar com eles que pelos ganhos financeiros. O penhor de Debir era uma sacola cheia de ouro, quantidade suficiente para mantê-la por um ano. Isso se vivesse por mais um ano, o que ela duvidava.
Raabe não acreditava mais que teria um futuro. Ainda assim, ela machucava as mãos puxando o linho da raiz para proteger os talos frágeis que um dia se tornariam panos. Mas quem viveria para prepará-los? Quem colocaria os fios em um tear para trançá-los? E quem os tingiria, coseria e usaria? Mesmo assim, ela puxava um após o outro até que o solo diante dela estivesse limpo e sua pilha estivesse bem cheia.
Sua família não estava imune à ameaça que se espalhava em Jericó à medida que as notícias contínuas sobre as vitórias dos hebreus chegavam aos portões. Assim, colher os levava a pensar no futuro, mesmo que não fosse muito promissor. O inimigo se aproximava.
Na noite em que todos acabaram a colheita, restava pouco da jovialidade usual do último dia de trabalho. Raabe levou sua parte dos talos de linho para casa e os arrumou no telhado para que secassem. Ela estava exausta de tanto trabalhar. Cansada demais até mesmo para limpar o suor da pele, ela se recostou na parede e apoiou a cabeça nos joelhos.
Ela estava mal, tanto na carne quanto no coração. Uma sensação avassaladora de isolamento a invadiu, apesar do tempo que passou com a família durante aqueles dias e mesmo por terem a tratado muito bem, era como se ela não pertencesse a ninguém. Raabe queria dormir para aliviar a dor do pensamento e do sentimento, mas o sono não vinha.
Ela fora capturada na solidão de seu peito, e nenhuma companhia parecia acabar com esse vazio; capturada em seu próprio corpo, no corpo de uma prostituta maculada por vários homens; capturada em Jericó, que temia um inimigo cujas investidas não seriam contidas pelos muros de pedra e concreto; capturada em Canaã, que fora marcada pela destruição de um deus que afirmava ter o domínio do mundo inteiro. Ela estava presa.
Haveria alguém que pudesse libertá-la de tantas amarras? Seus pensamentos mais uma vez se voltaram para o deus dos hebreus. Se ele fosse realmente o único deus acima de tudo, como os hebreus diziam, logo todos que viviam na Terra pertenciam a ele de alguma forma. Se ele fosse o único deus verdadeiro - mesmo que aquela fosse uma crença remota - mas se ele fosse de verdade, será que nem mesmo a Raabe prostituta, ou a Raabe cananeia, ou a Raabe comum poderia clamar por ele?
Raabe se sentou com uma postura ereta. O que ela perderia com isso?
Deus dos hebreus, ela começou a se questionar antes de calar-se. Ela não fazia ideia de como falar com um deus depois de tantos anos afastada. Deus dos hebreus, recomeçou ela determinada. Ouvi falar sobre teu poder. Teu povo diz que tu és o único deus verdadeiro nos céus e na Terra, e diz que tu ouves os clamores e tens piedade do sofrimento deles.
Se isso não se tratar de histórias loucas de homens desesperados e se tu fores verdadeiramente quem eles afirmam que sejas, eu gostaria que tu te revelasses para mim. Gostaria que tu me desses vida.
,.
Os raios de sol fracos do amanhecer a acordaram de um sono profundo. Ela ainda estava na parede em que havia se recostado na noite anterior. Há meses ela não dormia tão bem, e as palavras de sua oração ao deus dos hebreus de repente surgiram em sua mente. Um deus invisível, sem forma nem imagem. Um deus que ninguém poderia tocar; o deus de seus inimigos. E, ainda assim, naquela manhã Raabe teve uma sensação de paz que ia além de tudo que ela conhecera em tantos anos. Essa sensação seria um feito do deus invisível? Ou ela estava ficando louca? Sua mãe ficaria entristecida ou alegre por saber daquela loucura? O que seria pior - ter uma filha prostituta ou uma filha louca?
Ela se levantou murmurando. Sua serva ainda demoraria a chegar, mas Raabe mal podia esperar para se lavar. Ela estava com cheiro de suor e terra seca. Ela cheirava a trabalho honesto. Enchendo uma bacia grande com água morna, Raabe colocou algumas gotas de água de rosa e óleo, e começou remover aquela sujeira da pele. A paz permanecia, e se aquilo fosse loucura, ela a aceitaria de braços abertos. Se fosse um feito do deus hebreu, então ele era mesmo tudo o que seu povo proclamava. Se esse deus era um inimigo, ela estava do lado errado da guerra.
Ao olhar para o lado de fora da janela, Raabe viu um céu azul sem nuvens e decidiu sair para caminhar. Ela escolheu um caminho largo delimitado por pequenos sicômoros que levavam ao comércio local. De repente, o mau cheiro de carne carbonizada e o som dos tambores invadiram seus sentidos. Ao olhar para cima, ela observou os arredores e viu que estava perto do templo de Baal. A menos de dez passos dela havia uma prostituta tropeçando no próprio vestido que não mais parecia novo, enquanto estava à espera de alguém. Os olhos das duas se encontraram. Ela era filha de alguém, Raabe pensou. Era irmã de alguém. Mas sua vida fora sacrificada, dada em troca de uma promessa de prosperidade.
Abundância, fertilidade, saúde - os cananeus sacrificavam seus filhos em troca de ganhos maiores e de satisfações de todos os tipos. Depois do dinheiro, eles desejavam a luxúria de corpo e alma. Ao satisfazer um desejo deles, o povo esperava que os deuses também satisfizessem todos os seus desejos. A estabilidade financeira e os prazeres do sexo eram mais importantes do que a vida em Jericó.
Passaram-se anos desde que Raabe havia se afastado dos deuses de seu povo. Naquele momento ela viu que não se afastou apenas dos deuses, mas também de seu povo. Eles escolheram aqueles padrões; eles escolheram aquele estilo de vida e o respeitavam. Canaã tinha se transformado na cova do mundo, e Jericó era cova de Canaã.
Seria esse o motivo pelo qual o deus dos hebreus tentava acabar com eles? Haveria esperança para aquele povo? Haveria redenção? A resposta brotou dentro de Raabe como uma náusea que ela não conseguia conter. Eles tinham ido longe demais e ainda eram arrogantes. Rebeldes. Os fracos, os indefesos, os bebês anônimos, os mendigos adoentados e as jovens forçadas a trabalhar nos templos - como aquela moça que olhava para ela com um olhar vago - nenhum deles tinha refúgio, justiça ou esperança de salvação. Todos eles pereciam ou sofriam uma morte lenta causada pela agonia da amargura que não parava de crescer e se recusavam a perdoar, à medida que os mais poderosos exploravam, saqueavam, usavam e violavam conforme seu prazer. Aquele era seu lar, e aquela era sua herança.
Perturbada, Raabe voltou para a casa de sua família. No pequeno jardim, ela viu Joa cuidando das verduras.
Raabe!, chamou ele e se levantou.
Eu queria comprar alguma coisa no mercado para comermos, mas me perdi antes de chegar.
Toda Jericó se perdeu. Venha pegar as verduras comigo. Raabe se ajoelhou na terra sem tomar cuidado para não sujar suas roupas finas. Joa, você acha que o deus dos hebreus é real?
Talvez você deva perguntar isso a Ogue e a Siom. Ah, espere, eu me lembrei agora. Eles estão mortos.
Ou talvez eu devesse perguntar aos próprios hebreus. Ah, espere! Eu me lembrei. Eles estão vivos, apesar dos anos vagando pelo deserto, da perseguição do exército do faraó e do ataque dos maiores reis de Canaã.
Antes você duvidava dele, e agora você o defende. Você precisa se decidir, minha irmã.
Raabe não mostrou se importar muito. Eu sei que não gosto dos nossos deuses, e também não sou muito chegada ao nosso povo.
Raabe!
Pense bem, Joa. Onde está a bondade de Jericó? Onde está a compaixão?
Joa franziu suas sobrancelhas escuras. Nós não somos diferentes de ninguém. Todos são iguais.
Ninguém é igual a ninguém. Os hebreus não vivem de acordo com os nossos padrões.
Os hebreus! Joa pronunciou essas palavras com tanta violência que Raabe mudou de assunto. No entanto, seu humor permaneceu sombrio e, mesmo estando com ele por tão pouco tempo, ela ficou inquieta mais uma vez e foi para casa.
Uma vez dentro de casa, ela viu que não poderia nem se sentar nem comer. Passando de cômodo em cômodo, ela subiu a pequena escada que levava ao telhado, onde os talos de linho secavam. Colocando-os nos embrulhos, ela olhou fixamente ao longe, para além das terras de Jericó. Em algum lugar além do horizonte, os hebreus se preparavam para a guerra.
Eu vejo o mesmo que tu vês quando olhas para Canaã?, ela perguntou ao seu inimigo invisível. Eu vi nosso povo por meio dos teus olhos hoje? Raabe deixou escapar um suspiro. Deus dos hebreus, conheço-te pouco e nada sei sobre os teus pensamentos. Mas se tu és um deus compadecido, certamente o meu povo não te agrada. Peço-te perdão.
O dia ficou mais quente. Raabe pegou o véu transparente da cabeça e o retirou com um gesto brusco. Uma brisa suave aliviou o peso de seus cabelos em seu pescoço e ela levantou o rosto para receber aquela carícia. A paz que a invadira pela manhã - uma paz que não tinha motivo ou explicação - voltou ao seu peito e lhe concedeu uma força renovada.
Deus dos hebreus, és tu? Uma certeza inexplicável encheu sua alma - a convicção de que aquele deus real e verdadeiro estava presente naquele momento. Tu és real, afirmou Raabe respirando fundo.
A paz se aprofundou, aumentando e a envolvendo como um nevoeiro. Eu creio em ti. Tu és o Deus dos céus e da Terra. Posso até estar louca, mas creio em ti.
Raabe se deitou sobre os talhos de linho e ergueu os braços. Eu creio!, gritou.
O som de sua voz a despertou para algo. Pela primeira vez há anos, ela se sentiu amparada por algo seguro, algo bom. Aquele pensamento a fez erguer-se. Assim como o meu povo, sou uma mulher de impiedade. Em pensamentos, ela viu sua cama e lembrou-se do que ela representava. Cada parte de si recordavase de suas iniquidades, de suas dissimulações, de suas mentiras e de sua luxúria. Ela sempre culpava os outros pela vida que teve: a traição de seu pai, o interesse de sua mãe, as necessidades de sua família, a perfídia dos homens, a infidelidade dos deuses.
Ela errou muitas vezes, não restava dúvida. Mas ela também fez suas escolhas. Será que Deus não prestaria conta disso tudo? Perdoe-me , sussurrou ela. Perdoe-me por tudo. Prometo que abandonarei essa vida. Até o fim dos meus dias, abandonarei essa vida.
Capítulo Quatro
Salmom!, gritava uma voz familiar com uma insistência perturbadora.
Salmom agachou-se por detrás de uma pedra. Ele detestava ter de abrir mão de seus momentos raros de privacidade, um luxo difícil de se ter quando se viaja com um grande número de pessoas. Seu amigo, Hanani, gritou novamente. Já é hora de parar de se esconder, grande comandante. Josué tem assuntos a tratar com os líderes das tribos.
Aquilo chamou a atenção de Salmom. Com um suspiro, ele esticou suas longas pernas e levantou-se. Pare de perturbar os ouvidos das ovelhas. Estou aqui. O que Josué quer?
Eu tenho cara de ser um de seus mensageiros?, perguntou Hanani, mexendo na barba e bocejando. Ele apenas pediu para encontrar você; ele quer se reunir com os líderes das tribos, então, chega de se esconder como se fosse uma noiva tímida na noite do casamento.
Salmom sorriu. Quanto mais perto Israel chegava da Terra Prometida, maior ficava sua lista de responsabilidades. Por ser líder, ele agia como mentor, mediador, guerreiro, administrador das decisões, coordenador, organizador, mandante e pastor de rebanhos. Seu pai, Naassom, tinha assumido tantas responsabilidades importantes como líder de Judá que, sob seus cuidados, Salmom se acostumou com os fardos de seus deveres desde jovem.
Obrigado pelo elogio, Hanani, disse ele para o amigo e voltou para o acampamento. Salmom sabia que Josué não costumava reunir os líderes sem motivo. Por ser um homem ativo, ele usava o tempo com cuidado e parcimônia.
Ao chegar, Salmom já encontrou os homens reunidos em volta de Josué e sentou-se em um lugar onde melhor pudesse ouvir. A figura forte de Josué permanecia ereta em uma encosta inclinada. Seus cabelos de tons claros e escuros se agitavam na brisa calorosa, e nada mais nele parecia se mexer. Tenho notícias de Moisés, começou Josué, mas sua voz estremeceu e ele parou.
Dois dias atrás, Moisés reunira o povo de Israel. Estou envelhecendo e não consigo mais os liderar, anunciou ele. A multidão se opôs com desalento, pois Moisés ainda mostrava o vigor de um homem importante, apesar de sua idade avançada. Seus olhos tinham a visão de um jovem forte que caminhava com movimentos nítidos da juventude.
Para impedir os murmúrios do povo, Moisés apenas levantou a mão pedindo silêncio. Ele já estava acostumado com as objeções, e a insistência do povo não o influenciava mais. O Senhor me informou que não devo atravessar o rio Jordão com vocês. Ele escolheu Josué para ser seu líder, portanto, eu o nomeio e o abençoo.
É hora de deixar o medo para trás para que seu destino não lhes seja roubado. Vocês não precisam de confiança em si mesmos ou em seu próprio poder. Fortaleçam-se no Senhor, e quando um desastre se aproximar, não desanimem. Deus nunca os abandonará. Quando Moisés terminou de transmitir a mensagem, ele subiu ao monte Nebo. Passaram-se dois dias, e naquele momento Josué teve notícias recentes sobre ele. Os líderes reunidos mantiveram o silêncio e mal respiravam.
Antes de partir, Moisés impôs as mãos sobre mim e me abençoou mais uma vez, explicou Josué. Salmom ficou olhando o gogó de Josué subindo e descendo enquanto falava. Moisés me disse que não voltaria do monte Nebo. Como sempre, ele estava certo. O Senhor me informou que Seu servo Moisés está morto.
Alguns homens resmungaram; outros ficaram atordoados. Seria mesmo verdade? Moisés estaria morto? Eles se lembraram de que nenhuma geração de Moisés entraria na Terra Prometida, exceto Josué e Calebe, como o próprio Moisés já havia dito.
Salmom olhou fixamente para Josué sem acreditar. Ele notou o brilho das lágrimas em seus olhos castanhos e, de repente, teve a certeza de que jamais viria Moisés novamente. Durante toda a vida de Salmom, Moisés esteve por perto como uma luz guiando o povo. Certamente, eles jamais veriam outro homem de tanta fé, e certamente Israel havia perdido seu maior líder. Salmom pôs as mãos na túnica e a rasgou. Os homens que estavam à sua volta o olharam admirados, como se sua atitude tivesse confirmado que a morte de Moisés era verdade.
Josué fez um gesto com a cabeça e rasgou a própria túnica. Amanhã, disse ele, Israel lamentará formalmente por Moisés. Teremos trinta dias para derramar nossas lágrimas e nos enlutar. Depois, devemos continuar. O Senhor está prestes a nos dar esta terra. Digam às tribos e preparem-nas para o luto. Preparem-nas para a obediência. Levantando seus braços, ele continuou: Preparem-nas para a vitória!
Salmom se levantou com o restante dos líderes e voltou para a tenda, arrastando-se a cada passo; o luto lhe era bastante conhecido, pois Salmom já havia perdido o pai, a mãe e sua jovem esposa. As lágrimas cairiam, ele sabia. Ainda assim, a felicidade estava por perto. Finalmente, depois de uma vida inteira vagando de vale a vale, montanha a planície, de caminhos arenosos a campos de pedra, ele estava perto de casa. Salmom olhou à sua volta e entrou no acampamento onde era a única vida que ele conhecera. Tendas grandes e pequenas ocupavam cada pedaço da terra. Estábulos improvisados resguardavam os animais - ovelhas em alguns, cabras em outros, poucos bois e vacas por aqui e por ali. O cheiro e a poeira enchiam o ar. Como seria viver em uma casa, ter um celeiro e terras? Salmom estava prestes a descobrir. Ter um lar significava mais batalhas e tribulações, mas também representava uma esperança renovada no futuro.
Enquanto ele seguia até a tenda, Micael, Setur e Jedaías cruzaram seu caminho. Bom. Eles eram homens influentes que o ajudariam a espalhar a notícia.
É mesmo verdade, meu senhor? Moisés está mesmo morto?, perguntou Micael. Ele era um homem robusto alguns anos mais velho que Salmom, e havia algo em sua postura firme que era digno da confiança e do apreço de seu líder.
Salmom fez que sim com um gesto. Sim, infelizmente é verdade. Foi a maior perda que já tivemos, mas mesmo assim Josué nos assegurou de que continuaremos marchando até as terras a oeste do Jordão dentro de um mês.
Senhor, tenha misericórdia!, clamou Setur. Estamos despreparados! Como poderemos vencer alguma batalha sem Moisés?
Salmom voltou-se para Setur, pensativo. Estamos mesmo despreparados? Acho que Deus pode cumprir Suas promessas mesmo sem Moisés.
Setur fez um gesto agressivo no ar. Deus usou Moisés para nos libertar da escravidão no Egito, para nos manter vivos pelo deserto e para nos levar à vitória em todas as batalhas que já travamos.
Salmom cruzou os braços. E agora Ele usará Josué. Ou você tem planos melhores? Você recomendaria que voltássemos para a escravidão no Egito?
Estou apenas dizendo que...
Então pare de falar. Você está tomado pelo pânico. Nossa fé nunca esteve em Moisés ou em nenhum outro homem, porque ela está no Senhor Deus. Cada um de nós é substituível, até mesmo Moisés.
Josué tem algum plano?, perguntou Micael.
Ainda é cedo. Você conhece Josué; ele fala mais com Deus do que conosco, e no tempo certo ele terá um plano. Ainda temos um mês inteiro para lamentar por Moisés. Enquanto Salmom se virava, seus olhos estavam fixos em Jedaías e ele se foi. O homem estava se segurando ao máximo para não chorar, e Salmom repreendeu a si mesmo por ter sido tão tolo. Como ele poderia se esquecer da forte afeição que Jedaías sentia por Moisés? Havia um laço especial entre os dois homens, e Jedaías considerava Moisés um herói. Ele o amava.
Salmom estendeu a mão e segurou o ombro de Jedaías. Desculpe! Sei o que Moisés representava para você, e sei o quanto você era importante para ele.
Os lábios de Jedaías estremeceram como os de uma criança, e lágrimas grossas rolaram pelo seu rosto desaparecendo em sua barba. Eu nem ao menos tive a chance de me despedir.
Sinto muito, Jedaías, repetiu Salmom, triste pelo amigo. Ele já conhecia o suficiente aquela situação e não queria parecer insensível. Entretanto, as perdas deveriam ser superadas, e não há atalhos para que isso aconteça. Bom, o luto formal por ele começará amanhã. Se quiser fazer algo especial, visite a família dele.
Jedaías concordou. Salmom sabia que fazer algo prático seria um escape para o sofrimento. Jedaías partiu para a tenda de Moisés.
Então, em breve, estaremos no campo de batalha, disse Micael em meio ao silêncio que seguiu a partida.
De fato. Deus nos deu a terra.
Setur comentou: você parece bastante confiante na vitória. Eu estou, Setur. Minha confiança está em Deus. Você sabe como a fé dos nossos pais os abandonou e sabe também que, mesmo com Moisés, eles se recusaram a lutar pelo medo da perda. Mas eu não pretendo cometer esse erro, pois Deus está dando outra chance à nossa geração. Não estou disposto a perder minha oportunidade assim como meu pai perdeu a dele.
Setur nervosamente umedeceu os lábios ressequidos. Eu também não quero perder minha oportunidade.
Salmom lhe deu um tapinha nas costas. Bom homem. Confie em Deus. Mas se não conseguir confiar nele, apenas obedeçaLhe.
Durante as vinte e quatro horas que sobrevieram aquele momento, Salmom dedicou suas energias convocando os homens e mulheres mais influentes, explicando a eles a história de Moisés e instruindo-os a fazer conforme Josué dissera. A vida sem Moisés parecia impossível, mas talvez o Senhor quisesse fazê-los entender que a carne e o sangue não os levariam ao destino final. Apenas o Espírito do Senhor poderia fazê-lo.
Salmom entendeu que, se as pessoas saíssem da segurança de sua fé, o povo se daria conta de como as batalhas são uma incumbência dúbia. O povo de Israel nada sabia sobre os soldados e as cidades muradas de Canaã. Tudo o que eles tinham era Deus e, somado à fé, isso parecia mais do que o suficiente.
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Depois dos trinta dias de luto, Josué reuniu novamente os líderes das tribos. Já era noite, os líderes se agruparam sob a grande tenda de Josué. As pernas grandes e fortes de Salmom estavam espremidas entre Calebe e Elidade, um dos líderes da tribo de Benjamim. Ele conseguia sentir as velhas vestes deles roçando em sua panturrilha, e uma satisfação curiosa o dominou - a satisfação de estar rodeado por seus irmãos, apesar do cotovelo deles esbarrarem em sua costela e das pernas deles estarem dobradas de uma forma estranha. A companhia dos irmãos o reconfortava, e uma sensação de segurança invadiu seu corpo.
Naquele espaço apertado, a voz de Josué ecoou como o som sibilante de uma flecha lançada. Precisamos preparar o povo para atravessar o rio Jordão.
Elidade pigarreou. Mas, Josué, o rio Jordão está em período de cheia e inacessível. Não seria melhor esperar mais alguns meses? Já se passaram quase quarenta anos, o que são mais dois ou três meses? Salmom se virou com espanto a fim de olhar para ele. Para sua surpresa, ele viu que muitos outros líderes concordavam.
Josué o encarou com seriedade. Foi o Senhor quem falou isso, Elidade?
Elidade se remexeu na esteira. Bem, não. Estou apenas avisando, só isso.
Deixe-me dizer uma coisa a todos vocês. O conhecimento humano não nos fará vencer essas batalhas. Apenas Deus o fará, assim como fazia desde o dia em que Moisés nos libertou da escravidão no Egito. Nós não fomos chamados para ser homens de guerra do jeito que as outras nações conhecem, mas sim para ser um povo de fé. Nosso escudo é a Lei de Deus, e nossa espada é a Sua Palavra. Ele é o nosso lugar forte, e somente Ele nos concederá a vitória. Se não for assim, podemos cavar nossas próprias sepulturas agora mesmo.
O silêncio recaiu sobre os homens. Como era fácil esquecerse de que eles não poderiam viver como as outras nações. Como era fácil se resvalar para o orgulho e a razão humana, que não deixam espaço para os caminhos de Deus. Finalmente, Elidade quebrou o silêncio mais uma vez. Se o Senhor nos levar às águas turbulentas do Jordão, nós seguiremos em frente, Josué. Nós seguiremos a Deus em qualquer lugar. Salmom sentiu que seus músculos contraídos relaxaram.
Bom. O sorriso de Josué revelou a brancura de seus dentes perfeitos. Agora ouçam. Todos vocês voltem ao acampamento e mandem as pessoas prepararem os alimentos. Avisem que atravessaremos o Jordão antes do fim da semana.
E tem mais uma coisa. Estou pensando em mandar dois homens espionarem a oeste do rio para nós. Precisamos principalmente de informações sobre Jericó, mas sem extravagâncias. Vão, avaliem a situação e voltem. Eu gostaria de saber que tipo de recepção nos espera.
Salmom se levantou com um salto. Escolha a mim, meu senhor.
Não, Salmom, preciso de você aqui. Mas traga seu amigo Hanani. Eu escolherei ele e Ezra.
Disfarçando sua decepção, Salmom baixou a cabeça em obediência, pois há muito aprendera a controlar os impulsos. Ele sorriu ao pensar no entusiasmo de Ezra e Hanani por terem sido escolhidos por Josué para uma missão tão importante.
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A correnteza fazia as ondas ficarem intransponíveis. Hanani e Ezra precisaram fazer a travessia da forma mais difícil - enfrentando juntos a força da água para bloqueá-la com seus corpos protegendo um ao outro; um permanecendo firme de costas para a correnteza, suportando a força das águas, enquanto o outro seguia em frente. Com uma determinação absoluta, eles se colocavam contra a força incansável da água, que batia com torrentes violentas que revelavam redemoinhos à medida que seus pés lentamente davam direção a cada passo. Exaustos, os dois finalmente conseguiram chegar à outra margem agarrando-se aos galhos que se arrastavam pelas águas. Por muito pouco eles não se afogaram.
Depois de recuperar o fôlego, Hanani lançou um olhar agoniado para Ezra. Não havia como o povo de Israel atravessar aquele rio.
Vamos direto para Jericó, sugeriu Hanani. Foi primordialmente para isso que Josué nos mandou vir, e nosso tempo é curto.
Essa também será a parte mais difícil de nossa missão, Hanani. Passar pelos portões da cidade sem sermos presos não será tão fácil quanto recolher maná.
Hanani mexeu na barba escura. Isso é inevitável. Apenas mantenha sua cabeça abaixada e não fique igual a uma mosca morta quando chegarmos lá. Entraremos durante a hora de mais agitação da tarde e espero que não notem nossa entrada.
Eu não olharei se você não falar como uma garotinha. Seu sotaque vai nos revelar antes mesmo de você acabar sua primeira frase.
Hanani se voltou para o amigo com um olhar zombador. Pelo menos eu sei falar. E você? Olá, Mi-mi-miriã. Tão profundo. Tão charmoso. Tenho certeza de que Miriã correu para casa e implorou que seu irmão lhe permitisse casar-se com você depois dessa conversa.
Ah, cale a boca.
Hanani estava pensativo, não tinha cabeça para provocações. Suas brincadeiras indiferentes eram apenas uma tentativa de aliviar o peso da ansiedade que recaía sobre sua mente, e ele desconfiava que Ezra estivesse com as mesmas sensações.
O dia ficou extremamente quente e suas roupas ensopadas secaram de imediato. Depois, os dois homens tiraram as vestes mais pesadas e decidiram viajar com as roupas mais simples. O caminho para Jericó estava coberto por pequenas pedras, o que era melhor para os pés. Hanani, cujos pés ficaram resistentes depois de anos de jornada, mal sentiu as deformidades do chão na caminhada.
Apesar de ainda distante, os muros de pedra de Jericó apareceram. Conforme os dois se aproximavam, viram que grupos de soldados marchavam dois a dois nos parapeitos dos muros, permitindo a passagem de grupos vindos da direção oposta sem nenhuma dificuldade.
Bela construção, disse Hanani. Mas qual será a espessura daquelas pedras?
Ezra nem chegou a responder. Eles já tinham discutido o plano. Eles caminhariam em meio à multidão, manteriam os ouvidos bem atentos e andariam até o cair da noite sem falar com ninguém. Hanani sabia que a verdadeira missão deles era ouvir. Qual seria a reação dos habitantes de Jericó em relação às vitórias de Israel, a leste de suas terras? Eles estavam cientes dos acontecimentos dos últimos meses? Eles estavam se preparando para a batalha?
O plano dos dois deu errado desde o princípio. Os guardas nos portões estavam revistando todos, e cada inspeção parecia mais longa e mais minuciosa, o que representava um problema para entrar sem serem notados pelos espiões. Ao se aproximarem, um dos soldados bloqueou a passagem de Hanani enquanto o outro apontou o dedo contra o peito de Ezra. O que vocês fazem aqui?, perguntou ele.
Somos mercadores, respondeu Ezra. De onde vocês vieram?
Na maior parte do tempo, de Midiã. Mas também viajamos pelos arredores.
O guarda franziu as sobrancelhas. Vocês falam estranho.
Hanani olhou em volta desesperado. Não tinha como lutar nem escapar, pois os guardas tomavam quase toda a entrada dos portões. A ousadia era a única esperança deles. Estamos falando engraçado por causa da poeira das estradas, amigo. Minha sede está me matando. E ele, Hanani apontou para Ezra, está com tanta fome que comeria um camelo inteiro. Deixe-nos passar, amigo. Trouxemos dinheiro para gastar em Jericó.
Sim, deixe-os entrar, amigo, pediu uma inesperada voz feminina. Uma mulher com vestes de seda azul-clara recostou-se no muro em frente a eles. Seus cabelos castanhos caíam pela cintura como pequenas argolas reluzentes, levemente cobertos pelo véu que flutuava no vento. Seus olhos grandes de cor de mel eram emoldurados por cílios curvados, e o nariz pequeno apontava como uma seta para os lábios carnudos, muito avermelhados pela bondade da natureza. A seda azul de seu vestido aderia-se com sedução à sua figura curvilínea, deixando pouco à imaginação.
Hanani engoliu em seco. Dona de estalagem, dissera ela. Tudo relacionado a ela lhe era proibido. Ele ficou nervoso e desviou o olhar.
Felizmente, o guarda parecia tão distraído quanto Hanani. Perdendo o interesse no interrogatório, ele encarou a mulher. Raabe! Os negócios não devem estar tão ruins a ponto de você receber homens usando essas roupas em sua estalagem.
Claro que os negócios vão mal, graças a você e aos seus soldados que assustam meus clientes. Agora deixe esses belos mercadores entrarem em minha estalagem para que eles possam gastar muitas moedas de prata com os bons vinhos de Jericó.
O guarda pensou. E o que eu ganho com isso?
Eu lhe darei um jarro da minha água de cevada hoje à noite, mas só se você parar de importunar meus clientes.
Dê logo a água de cevada, bajulou Hanani.
Hanani olhou para a mulher. Ela os encarou com os olhos apertados e, em seguida, saiu, desaparecendo em uma escada esculpida por dentro do muro. Ele tinha certeza de que ela acabara de salvar a vida desses dois homens.
Vocês dois, continuem aí. Se ela voltar, vocês entram. Sabe, acho que ela está desperdiçando força e energia, pois não acredito que haja tanta prata no bolso de vocês.
Mesmo estando em um canto, a presença dos dois atraiu muitos olhares curiosos e hostis. Salvos por uma dona de estalagem
- uma zonah! No final das contas, talvez a morte sob tortura não fosse um destino tão cruel assim. Ele não conseguia se imaginar explicando essa sequência de acontecimentos a Josué.
Finalmente, a mulher chamada Raabe voltou. Ela passeou sem pressa até Hamish, fazendo gracejos com os lábios a cada passo que dava. Hanani apreciou aqueles passos ondulantes, pois cada homem que antes olhava fixamente para ele e para Ezra agora se focava em Raabe. Aqui está sua bebida, jovem soldado. Agora, entregue-me os meus clientes e vá incomodar outra pessoa.
Hamish pegou o jarro de suas mãos e riu. Ei, companheiros, vejam o que eu ganhei. Água de cevada feita pelas mãos delicadas de Raabe, e nenhum de vocês vai beber sequer uma gota.
Hanani e Ezra entraram no mesmo momento, seguindo Raabe muito aliviados enquanto ela os levava para sua estalagem nos muros de Jericó.
Capítulo Cinco
Ninguém ficaria mais surpreso do que Raabe por encontrar dois espiões hebreus a dez cúbitos de sua estalagem. Ela sabia que eles eram hebreus desde a primeira vez que os viu. Além do sotaque diferente, havia algo no comportamento deles. Eles pareciam fortes e tinham a postura de soldados, e não de mercadores. Certamente os dois levantaram suspeitas dos guardas, e se ela não tivesse interferido, eles teriam sido presos. A cidade de Jericó havia sido dominada pelo medo dos hebreus desde a queda de Ogue, e cada pessoa estranha que se aproximava dos portões era inspecionada com muito cuidado e pouca sutileza.
Em seu lugar, qualquer outro cidadão de Jericó também desconfiaria e insistiria para que eles fossem revistados, mas Raabe entrou em pânico ao pensar nos dois em perigo. Ela não aguentaria saber que alguém do povo do Senhor havia sido destruído, e viu que precisava ajudar. Ao se aproximar, ela não tinha plano ou estratagema algum; Raabe sabia apenas que precisava desviar a atenção dos soldados. Portanto, ela improvisou.
Depois daquele momento, havia dois hebreus andando atrás dela como filhotes de leão seguindo a mãe. Quem a mataria primeiro? Os hebreus ou os soldados de Jericó? Definitivamente, ela perdera a cabeça. Não restava dúvida. Mas mesmo pensando nisso, ela se perguntou se o deus dos hebreus a aprovaria.
Calando-se por um momento enquanto eles passavam pela soleira de sua estalagem, Raabe puxou o véu para frente e disse: Por favor, sentem-se, meus senhores. Vocês devem estar cansados devido à longa jornada. Gostariam de algo para se refrescar?
Os homens, depois de entrarem pela porta, firmaram seus movimentos como se preferissem não tocar em nada. O homem mais baixo, com a barba tremendo, negou com a cabeça. Não, obrigado. Nós trouxemos comida.
Raabe fez um gesto apontando-lhes a mesa e colocou taças de vinho diante deles. O mais nervoso puxou do bolso algo embalado em um pano fino. Ele estava tão tenso que esbarrou em uma das taças de vinho, e Raabe teve de buscar um pano para limpar a sujeira. À medida que ela se movia, os olhos deles se desviavam de um lado para o outro, nunca se fixando no rosto ou no corpo dela, mas sempre buscando qualquer outro ponto para olhar que não fosse ela.
Ela se lembrou de que Debir tinha falado que as prostitutas eram condenadas à morte por aquele povo. Seria ela repugnante para eles? Ela encolheu as sobrancelhas ao pensar naquilo. Em seguida, ela decidiu seguir em frente e conquistar a confiança deles. Seria muito difícil? Metade dos homens de Jericó comia na palma da sua mão, e provavelmente os hebreus não seriam diferentes. Quais são os seus nomes?, perguntou ela.
Eu sou Ezra e este é Hanani, respondeu o mais alto. Ele tinha uma pele bastante clara, em contraste com seus cabelos escuros, e se não fosse pelo nariz torto, ele seria muito bonito para o padrão. O que se chamava Hanani olhou para ele, considerando inapropriada aquela informação.
Nós só estamos aqui para... para... para procurar algum lugar para ficar. Nós não queremos nenhum... nenhum... bem, quero dizer, nós só queremos um lugar para descansar e seguiremos em frente, disse Hanani.
Raabe se levantou e deu um passo atrás. Ela sentiu a própria voz gélida enquanto dizia: Vocês são apenas convidados em minha estalagem. Em seguida, para sua surpresa, ela se viu dizendo: Chega de ser o que eu era.
Nesse momento, os três se entreolharam. Finalmente, Raabe disse: Descansem tranquilos. Vocês têm uma amiga, embora eu deva lhes avisar que vocês ainda não estão a salvo.
O que você quer dizer?, perguntou Hanani, levantando a perna com um impulso repentino que derrubou a taça de vinho novamente, mas que daquela vez pelo menos estava vazia.
Ela se curvou e pegou a taça. Quero dizer que sei que vocês são hebreus, e todos os soldados lá fora chegarão à mesma conclusão se pensarem nas evidências.
De onde você tirou essa ideia?, perguntou Hanani olhando para a porta.
Não saiam agora. Seria um grande erro. Vocês ficarão mais protegidos aqui comigo do que lá fora com os soldados. Não perceberam como eles suspeitaram enquanto vocês tentavam entrar nos portões? Seu sotaque nos é estranho, e vocês têm o corpo e a postura de soldados. Além disso, Jericó está em alerta máximo por causa das muitas batalhas que vocês conquistaram a leste do Jordão. Se eu não os tivesse distraído, vocês estariam sob chicote e lança agora.
Ezra pigarreou como se aquela última palavra tivesse perfurado sua garganta. Por que nós deveríamos acreditar em você?, perguntou ele.
Raabe olhou pela janela em direção ao portão. Porque, se eu não estiver enganada, aquele mensageiro entregará uma mensagem aos homens do rei agora mesmo. Logo eles virão atrás de vocês.
Hanani foi para mais perto dela escondendo-se pela parede para ser visto. Pela sua expressão, Raabe viu que ele havia reconhecido o mensageiro que ela mencionou, e Hanani viu um grupo de soldados erguendo os olhos, em direção à estalagem. Um deles disse algo e deu uma pancada no chão. Precisamos sair daqui, disse ele a Ezra.
Como?, perguntou ela. Se descerem essas escadas, vocês serão pegos. Raabe cobriu o rosto com as mãos por um momento. Não acredito que estou fazendo isso. Ouçam, tenho uma ideia melhor. Vou esconder vocês.
Por que você faria isso?, perguntou Ezra com a voz cheia de suspeita.
Bem, com certeza não é por causa de suas barbas bonitas. Raabe comprimiu os lábios em uma tentativa de refrear a ira que a desconfiança de Ezra e Hanani lhe provocara. Ela pensou e viu que não poderia culpá-los pelo ceticismo; nem mesmo ela entendia a própria atitude.
Por que ela estava arriscando a vida para ajudar aqueles hebreus ingratos? Por causa do deus deles. Ela queria estar com ele. No fundo Raabe acreditava que o Senhor destruiria Jericó, e ela não queria ver a si mesma e sua família em meio à ruina. Eu quero ajudar vocês porque acredito em seu deus como nunca acreditei em nenhum outro. Eu quero ajudar vocês porque prefiro seguir o Senhor a seguir os caminhos de Jericó.
Eu não quero me opor ao seu deus; agora, vocês querem ou não viver? Se quiserem, me escutem.
O fato de ela ter mencionado Deus pareceu diminuir a agitação deles. Tudo bem, murmurou Ezra ainda pensando na resposta de Raabe.
Ela fez um gesto para o alçapão que levava ao telhado. Coloquei alguns talos de linho para secar lá em cima. Vão até a escada do quarto atrás de vocês e se escondam debaixo do linho. Já está escurecendo e, se vocês tomarem cuidado, ninguém os verá no escuro.
Sua estalagem fora construída no alto; o telhado projetava uma passagem estreita com o muro, pairando sobre a lateral da cidade. Três vezes ao dia, os guardas marchavam pelo telhado de sua casa. Raabe sabia que o próximo grupo não chegaria até a manhã seguinte, o que faria daquele lugar um esconderijo seguro pelas próximas horas. Raabe subiu a escada atrás dos dois e os viu escondidos debaixo do linho.
É um longo caminho, sussurrou Hanani enquanto olhava ao redor, com a voz ainda um pouco trêmula.
Raabe se lembrou da sensação de enjoo quando subiu até o telhado pela primeira vez. Há espaço suficiente, assegurou ela. Outros perigos pareciam muito maiores do que a altura. Entendam uma coisa, avisou ela. Minha vida corre tanto perigo quanto a de vocês, pois agora eu traí meu povo.
Enquanto voltava para onde eles estavam antes, Raabe ouviu o som de um espirro sufocado. Nem mesmo a porta do alçapão abafou o barulho. Ela fechou os olhos com força e se encolheu. Não há problema algumas pessoas terem reações adversas quando próximas a linho seco, mas naquela noite um simples espirro poderia levá-la à morte.
Depois disso, o outro som que ela ouviu foi o de pés pelos degraus. Raabe gelou. A escada! Agarrando-a, ela puxou a escada e levou para o quarto. Pesava mais do que ela imaginava. Em geral, ou seu servo a trazia ou ela a arrastava pelo chão. Mas ela não ousou fazer nada que pudesse levantar suspeitas, como arrastar móveis pesados, enquanto os soldados se aproximavam. Gotas de suor se acumulavam em sua testa à medida que ela dava um pequeno passo após o outro com a escada içada em seus braços doloridos. Um dos pés encostou no degrau mais baixo, ela acabou tropeçando. A escada quase escapou das mãos, e os passos se aproximavam. Ofegante, ela deu alguns passos de dança e recuperou o equilíbrio.
Os passos chegaram à porta exatamente quando ela encostou a escada na parede, onde cortinas azuis de linho a esconderiam. Raabe mal teve tempo para respirar antes de ouvir as batidas na porta. Ela se virou e viu, para seu horror, que um dos hebreus havia deixado as vestes mais pesadas nas almofadas. Um som de espanto escapou de sua boca e, ao lado das vestes, os restos da refeição estavam à vista. Raabe escondeu tudo debaixo dos lençóis da cama e colocou a coberta bordada por cima de tudo, esperando que os soldados não reparassem naquele amontoado estranho. Por precaução, ela tirou dois travesseiros do chão e os colocou na cama, mas outra sequência de batidas impacientes na porta a fizeram dar um salto.
Esperem, homens! Estou indo, ela gritou e abriu a porta. Dois homens com o uniforme de soldados do rei estavam do lado de fora. Os guardas do rei! Não me digam que ele deseja a minha companhia?
Seus lábios se contraíram antes de uma sombra de seriedade recair sobre os rostos dos soldados outra vez. Um deles tinha olhos grandes como os de sapo, junto com sobrancelhas espessas. Aqueles olhos mostravam-se atentos sob as pálpebras enquanto o homem respondia: Não. A majestade está muito bem, obrigado, Raabe. Estamos aqui por causa de seus convidados. Ele esticou o pescoço e olhou para a estalagem por cima de Raabe. Engrossando a voz, ele exigiu: Traga os dois homens que entraram na sua estalagem. Eles são espiões e estão envolvidos em uma missão contra o nosso povo.
Raabe arfou. Espiões! Eu poderia ter sido assassinada em minha cama!
O homem dos olhos esbugalhados se mexeu impacientemente. Sim, sim, traga-os até aqui, mulher.
Mas eu não faço mágica. Como poderei trazê-los se eles não estão aqui?, remungou ela.
Está dizendo que eles não entraram aqui com você?
É claro que não. Eles entraram, tudo bem. Mas como eu ia saber que eles eram espiões? Pensei que fossem como qualquer outro peregrino, e não é culpa minha se foram embora.
Eles foram embora? Quando? Para onde foram?
Foram ao anoitecer, logo na hora de fechar os portões da cidade. Eles quase não ficaram aqui, e quase não deram dinheiro. Não sei para onde foram, mas se forem atrás, talvez ainda consigam pegá-los. Não saíram há muito tempo.
Os dois soldados a deixaram de lado e entraram para observar ao redor. Sem aviso, um deles foi até a cama e a chutou. Raabe quase desmaiou. Se ele encontrasse as vestes do hebreu, com certeza ela seria presa. A bota por pouco não encostou na pilha de coisas antes de ele se afastar, e Raabe quase caiu de tanto alívio. Eles entraram no outro cômodo, olharam pela janela e, sem encontrar nada, saíram sem pedir desculpas.
Um pelotão dos guardas armados do rei aguardava os dois soldados no fim da escada. Ela os viu abrir os portões e sair em busca dos dois espiões na estrada que levava até o rio Jordão. Assim que os perseguidores saíram, o portão foi fechado novamente.
Raabe encostou-se na parede com uma respiração irregular e ofegante. Colocando a mão trêmula na cabeça, ela começou a rir. Raabe havia conseguido; ela conseguiu salvar os hebreus e, ainda por cima, a si própria. Raabe tinha traído sua nação, seu povo e seu antigo estilo de vida. O tamanho de sua decisão a atingiu como um grande peso, pois ela traíra os conterrâneos para salvar os hebreus. Não. Não pelos hebreus, mas sim pelo Senhor.
Com cuidado, pois os joelhos ainda tremiam, ela foi até os convidados que ainda estavam debaixo do linho. De volta ao recinto, eles se lavaram e cuidaram de suas necessidades imediatas. Raabe sabia que seria preciso levá-los para cima novamente caso os guardas do rei decidissem voltar. Todavia, impulsivamente ela perguntou: Vocês vão me falar sobre o Senhor?
Ezra, que estava sentado mais perto dela, lançou-lhe um olhar surpreso. O que você quer dizer com isso?
Quero saber algo sobre o Senhor. Seu deus. Vocês vão me falar sobre ele?
O que você gostaria de saber? Tudo.
Hanani demonstrou surpresa e, em seguida, riu por um momento antes de a cotovelada de Ezra tirar seu fôlego. Para a alegria de Raabe, nenhum dos dois se recusou a fazê-lo. Durante uma hora inteira, eles a presentearam com histórias sobre o Senhor, sobre como Ele protegeu Israel com Seu poder e compaixão durante a longa jornada no deserto e sobre o fato de Ele ser o único e verdadeiro Deus. Em cada palavra, Raabe sentia mais e mais apreço por aquele deus - o Deus - cuja face nunca lhe seria revelada.
Finalmente, um pouco arrependida, Raabe disse: Prendi vocês aqui por muito tempo. Vocês precisam se esconder no telhado mais uma vez, pois os guardas do rei podem voltar.
Hanani e Ezra subiram a escada bem cansados, dessa vez com os pés arrastando até os talos de linho. Raabe subiu com eles e ficou lá em cima por alguns minutos para vê-los se ajeitar. O cheiro de linho seco tomou conta de suas narinas, um cheiro prazeroso de planta.
Vocês têm que ir bem cedo, antes do amanhecer, ela explicou em voz baixa para que mais ninguém a ouvisse. Os guardas caminham pelo perímetro do muro assim que o sol nasce, e eles podem descobrir que vocês ainda não foram embora.
Hanani mostrou que ouviu. Nós ouvimos você falar com os guardas do rei. Por que você, uma... uma mulher de Jericó, protegeu homens de Israel?
Ela estava ajoelhada no parapeito enquanto eles permaneciam escondidos debaixo dos talos de linho. Se qualquer pessoa olhasse para cima, veria apenas Raabe. O dia escurecera e Raabe sentiu o anoitecer envolvê-la como um cobertor macio. As estrelas reluziam em meio à escuridão do céu como pontos de esperança, e ela pensou na pergunta de Hanani. Por que ela ajudou o inimigo? Por que ela fez de seu nome um objeto de maldição de todos os cananeus pelo resto das gerações futuras? Porque, apesar de tudo, era a coisa certa a fazer.
Estou ajudando vocês porque sei que o Senhor lhes deu esta terra. O medo sufoca o meu povo, e ouvimos que o Senhor abriu as águas do mar para que vocês saíssem do Egito. Nós soubemos do que vocês fizeram com dois reis amorreus, Siom e Ogue. Quando ouvimos falar dessas conquistas, perdemos a coragem. Mas eu sei que o Senhor, seu deus, é Deus nos céus acima de toda a terra. Sei que é Ele quem luta as suas batalhas e quem as conquista para vocês. Foi por isso que eu os salvei.
Ela só não falou sobre querer muito pertencer a Ele por medo de parecer ridícula. Raabe estava convencida de que eles a ultrajariam, e de que o próprio Senhor a rejeitaria. Então, em vez disso, ela se sentou para fazer um acordo com Ele por intermédio de Seus homens. Hanani e Ezra, mostrei bondade para com vocês. Salvei suas vidas. Portanto, agora, como vocês retribuirão minha bondade? Vocês juram que pouparão a mim e minha família quando invadirem Jericó?
Hanani mexeu em um dos talos de linho até que somente seu rosto ficasse visível. Em meio à escuridão, Raabe conseguiu ver o branco de seus olhos. Você não tem dúvida de que Deus concederá a vitória a Israel, não é?
Raabe fez que não com a cabeça.
Você tem muita fé. Nunca pensei que encontraria alguém assim fora de Israel.
As palavras dele levaram lágrimas aos seus olhos, mas ela se virou para que ele não visse o brilho delas contra a luz das estrelas. Aquelas palavras expressavam aprovação de um homem que, há pouco tempo, a considerava digna apenas de desprezo. E ela havia conquistado aquela aprovação não por meio da manipulação feminina, mas por sua fé. No entanto, seria aquela aprovação tão boa para uma mulher morta?
Então, vocês vão salvar nossas vidas? Vocês pouparão meus pais, meus irmãos, minhas irmãs e os filhos deles?
Hanani estendeu a mão e tocou a orla de suas vestes. Nossas vidas em troca das suas, prometeu ele com uma firmeza nas palavras que a convenceu. Raabe, se você não contar o que fizemos a ninguém, trataremos você com bondade quando o Senhor nos conceder a vitória.
Ela engoliu em seco. Seria mesmo real? Ela teria, de fato, feito um acordo pela vida dela e de seus familiares? Que o Senhor os abençoe, sussurrou ela.
E a você também, falou Hanani com um sorriso. Se não fosse por você, estaríamos envoltos em mortalhas em vez de talos de linho.
Tentem dormir um pouco. Logo virei buscá-los, e vocês ainda têm uma jornada pela frente. Assim como eu.
Raabe permaneceu vigilante a noite inteira. Ela continuava pensando no acordo que tinha feito com o Senhor por intermédio de Seus homens, e que Ele aceitara. Ela fez algo para Ele, e agora Ele faria algo por ela.
Sem perder tempo, ela se levantou e foi até o telhado depois do anoitecer para esconder os homens. Eles dormiam como bebês, e lhe ocorreu que eles tinham mais coragem do que habilidades para espionagem. Certamente, um dos dois deveria ficar acordado para vigiar. O Deus dele os protegera mesmo assim, e Raabe ficou imaginando se já estaria sob aquela proteção. De volta para dentro da casa, ela mostrou-lhes a janela. Vocês têm que descer pela parede. Os guardas estão muito perto daqui, e se forem pela escada eles acharão vocês.
Noite passada, vi os soldados seguindo em direção ao rio Jordão. Vocês devem ir em direção àquelas montanhas, a norte, para terem certeza de que não os pegarão. Escondam-se lá por três dias, pois os vigias nunca ficam mais do que isso. Depois, sigam viagem.
Eu andei pensando, disse Hanani. Não se pode dar ordens a um exército no meio da batalha. É preciso marcar sua localização de alguma forma para que as forças amigas a reconheçam e a poupem. Ele olhou em volta por um momento até seus olhos se fixarem em uma corda grossa de cor escarlate que compunha uma tapeçaria. Você deve amarrar esta corda do lado de fora da janela. Além disso, traga toda sua família para sua casa. Não podemos garantir a vida de ninguém fora dessa estalagem. O sangue de cada um recairá sobre a própria cabeça, mas nós nos responsabilizaremos pela segurança de todos os que permanecerem aqui dentro. No entanto, Raabe, se você nos trair, nosso juramento não mais existirá.
Eu prometo, não serei desleal nem a vocês nem ao seu Deus.
Você é uma mulher extraordinária, exclamou Hanani, e Ezra concordou com um gesto.
E vocês dois despertaram isso em mim, respondeu ela com um sorriso alegre.
Temos que correr antes do sol raiar, interviu Ezra. É muito alto para sua escada. Você tem alguma corda grossa, Raabe, ou espera que nós voemos?
O Senhor abriu o mar para vocês. Certamente, Ele pode lhes prover um par de asas, não é?
Sim, mas enquanto esperamos elas crescerem, talvez fosse bom se você arrumasse uma corda, resmungou Hanani.
Vocês deveriam ter uma corda, amigos hebreus. Raabe revolveu uma caixa até achar uma corda, e Hanani, sem perder tempo, amarrou-a na cintura com um nó seguro. Ezra se apoiou pelo lado de fora do muro fazendo o máximo de esforço enquanto aguentava o peso do corpo de seu amigo. Os pés de Hanani finalmente tocaram o solo fora dos muros de Jericó.
Ezra amarrou uma das pontas da corda na cintura e a outra em um gancho na parede, onde Raabe costumava pendurar uma candeia. Seu rosto estava mais firme do que a corda quando ele a entregou para Raabe. Você acha que aguenta o meu peso? Talvez o gancho consiga suportar meu peso se você perder a força, mas, a essa altura, suspeito que devo bater no chão de qualquer jeito.
A boca de Raabe ficou seca. Não vou deixar isso acontecer. Mas... não force o peso enquanto desce, e não pare para admirar a paisagem ou algo assim. Desça o mais rápido que puder.
Não se preocupe, eu já vi o bastante de Jericó. Mas voltarei para buscar você e sua família no dia da batalha. Agora, segure essa corda com firmeza; minha vida está em suas mãos. Ezra deu um último sorriso motivador a Raabe e pendurou-se do lado de fora da janela. Ele permaneceu pendurado pelos dedos por um breve momento enquanto Raabe apoiava os pés em um canto da parede e enrolava várias vezes a corda em volta do braço. Em seguida, ele soltou. Raabe deu um grito abafado à medida que era puxada por uma força arrebatadora. Seu corpo escorregou pelo chão movido pelo peso oscilante de Ezra, e ela o imaginou caindo no chão. Segurando com toda a força, ela pôs os pés contra a porta e se segurou.
Ah, Deus; ah, Deus; ah, Deus, ajude-me!, pedia ela sufocada. Em seguida, Raabe recuperou o equilíbrio, respirou fundo e liberou a tensão pouco a pouco. Ezra tentava ajudar, quando possível, agarrando-se com uma das mãos ou dos pés nas rachaduras entre as pedras, mas havia poucas, e assim Raabe teve de suportar seu peso na maior parte da descida. Ela nunca tinha carregado tanto peso, e aquele tinha quase o dobro do peso dela. Colocando mais firmeza nos pés, ela segurou a corda até as mãos sangrarem, os braços ficaram feridos devido à fricção que ela tanto tentou controlar. Raabe ignorou o sangue, ignorou as feridas e continuou. Ezra já tinha passado da metade do caminho quando a corda se soltou do braço de Raabe, arrancando uma boa parte de sua pele. Ele caiu a uma grande velocidade e Raabe não tinha fôlego nem ao menos para exclamar. Usando toda a força, ela se agarrou à corda e segurou. Ezra estava pendurado a uma pequena altura e, em seguida, tocou lentamente ao chão. Aquela fora a parte mais tranquila de toda a descida.
Logo que Ezra se soltou do nó da corda, os dois correram em direção às montanhas. Na escuridão da madrugada, Raabe os perdeu de vista antes mesmo de piscar os olhos. Com a vivacidade despertada pelo perigo, ela puxou a corda e a guardou o mais rápido que pôde a fim de precaver-se, caso os soldados quisessem revistar sua casa novamente. Depois, ela guardou a escada e, por fim, cuidou de seus braços e de suas mãos, que estavam cheios de sangue. Pelo menos os dois se lembraram de levar todos os pertences daquela vez, graças a Deus.
O que lhe restava fazer naquele momento era convencer sua família de Jericó de que estavam a salvo nas mãos do Senhor, e não nas mãos dos seus deuses. Bastava convencê-los a entregar suas vidas às promessas de seu inimigo mais temido.
Capítulo Seis
V ocê está maluca?, exclamou seu irmão Joa. Você perdeu o juízo?, gritou Karem, seu outro irmão.
Raabe ia abrir a boca, mas Joa tinha mais a dizer. Ela apreciou a interrupção, pois não se sentia apta a defender-se muito bem.
Se descobrirem que você abrigou espiões hebreus, eles vão te matar, e vão nos matar por termos a infelicidade de ser da sua família.
Um momento em silêncio seguiu o comentário de Joa, e Raabe engoliu em seco. Embora ela não pudesse culpá-los por estarem desconfiados, era ruim ser humilhada e rejeitada.
E como eles descobririam?, Raabe perguntou esforçando-se para manter a voz firme. Pensem, o que vocês têm a perder? Se não disserem nada, ninguém em Jericó saberá. Mas se os hebreus chegarem e destruírem nossos muros, conforme eles já fizeram em todas as outras cidades, nossas vidas serão poupadas.
Na semana que vem, vocês e suas famílias irão passar alguns dias comigo. Vocês podem trabalhar, como de costume, mas não muito longe. Se o exército for visto, um alarme ecoará e vocês terão tempo para voltar com segurança. Se eles não vierem, vocês poderão voltar para suas casas sem prejuízo algum. Apenas pensem no que pode acontecer se eles chegarem e derrotarem nosso exército quando vocês não estiverem comigo, pensem no que vocês perderiam. Há semanas quase não falam de outra coisa a não ser o medo dos hebreus, mas agora vocês não precisam ter medo. Aconteça o que acontecer, nossas vidas serão poupadas.
Como você pode acreditar neles? Você está confiando na palavra de pagãos sem lei! O que há de bom nisso?, rebateu Joa.
O Deus deles leva os juramentos a sério, e eles Lhe obedecem sem questionar. Novamente, eu lhes proponho: o que vocês vão perder se aceitarem minha sugestão?
No fim das contas, todos decidiram ficar com Raabe por algumas semanas. Eles passaram os sete dias seguintes comprando suprimentos, assim como toda a Jericó, por medo de um possível cerco iminente. Com isso, havia filas imensas, preços altíssimos e esperas frustrantes e, por vezes, inúteis. Pelo menos eles estavam em um dos poucos lugares de Canaã que não precisava se preocupar com água; a cidade ostentava várias fontes naturais que ficavam cada vez mais abundantes depois do período de seca.
Todos estavam muito preocupados com o possível cerco longo e entediante, mas Raabe estava preparada para um período curto e conclusivo. Ela comprou poucos mantimentos, pois sabia que se os hebreus vencessem, ela conseguiria levar apenas o que fosse possível carregar nas costas. Raabe não sabia como Israel cumpriria aquela façanha; sabia apenas que eles derrubariam os muros da cidade. Os hebreus venceriam.
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Hanani e Ezra ficaram nas montanhas durante três dias, conforme Raabe havia aconselhado. Hanani economizou na comida para ter a certeza de que aquela quantidade seria suficiente no caminho de volta. Um pequeno riacho provia água para beber e, à medida que os dias ficavam mais quentes, a falta de cobertores não representava problema para os dois. Eles faziam turnos de vigilância durante a noite, atentando-se às evidências de um possível ataque. Mas Raabe provou ser confiável mais uma vez, e nenhum inimigo se aproximou.
Na manhã do quarto dia, eles saíram das montanhas e seguiram em direção ao acampamento de Israel. Eles levaram quase o dia inteiro para chegar ao Jordão, e, quando chegaram, Hanani olhou para as águas turbulentas. O rio se agitava e se movia em um ritmo acelerado e maligno, como se risse da tentativa de atravessá-lo. A correnteza estava ainda mais forte do que antes.
Ezra entrou na água sem hesitar, e Hanani, sem querer ficar para trás, respirou fundo e seguiu o exemplo. Ele sentiu a força desde o primeiro passo, mas se deu conta de que, se não continuasse andando, as águas o matariam. Ele continuou em frente, mal conseguindo enxergar com os olhos cheios de água. Quando olhou em direção à margem, ele viu que Ezra estava quase se deixando levar pela correnteza. Ezra estava com grandes problemas. Ele estava mais perto da terra, mas também estava sendo levado por um forte redemoinho que o puxava para baixo.
Hanani suspirou. Ele tinha de descobrir um jeito de salvar Ezra. Ao olhar para o alto, viu um galho cumprido que pendia sobre as águas. Fazendo uma oração incoerente, ele foi até o galho sabendo que este deveria, de qualquer jeito, ser firme. Hanani intentava usá-lo como uma corda para se segurar enquanto tirava o amigo do rio. Mantendo um dos olhos no galho e o outro em Ezra, ele forçou o corpo ao máximo. Não! Logo que pegou o galho, ele viu Ezra afundar. Agarrando-se ao galho, se deixou levar pela correnteza até onde vira Ezra pela última vez. Onde você está, meu amigo? Volte para onde eu possa te ver! De repente, a cabeça de Ezra apareceu.
Ezra!, gritou ele, estendendo a mão. Ezra parecia um pouco sonolento e desorientado. Hanani agarrou os cabelos do companheiro e os puxou com toda força.
Aaai! Ezra se recuperou o suficiente para perceber o que estava acontecendo e agarrou-se no braço de Hanani. Ali eles permaneceram até recuperarem o fôlego, depois seguiram até a margem. Tropeçando, os dois homens ofegavam e balbuciavam dando graças pelo ar que enchia seus pulmões. Depois de alguns minutos, Hanani se levantou e ajudou Ezra a se levantar.
Obrigado, agradeceu Ezra e, em seguida, vomitou muito. Hanani fez caretas e se virou para dar um pouco de privacidade ao amigo.
Tudo bem agora?, perguntou ele quando Ezra se esticou. Sim. Obrigado por ter salvado a minha vida.
Hanani levantou uma das mãos. O rio Jordão não é nada se comparado à ira da sua irmã se eu levasse o seu cadáver para casa.
Os lábios azulados de Ezra formaram um sorriso e ele se levantou gemendo. Ir para casa parece uma boa ideia - vamos. Já chega de espionagem.
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Hanani ficou feliz ao ver sobre a terra árida as tendas de seu povo. Como ele suspeitava, a notícia sobre a chegada dos dois rapidamente se espalhou, e Josué foi recebê-los pessoalmente.
Ele fez a recepção dos dois e logo chegou ao ponto. Venham, venham! O tempo é curto. Fico feliz com seu retorno bem-
-sucedido, homens. Agora vocês precisam me dizer o que encontraram. Vejo vocês em minha tenda. Com isso, ele se afastou.
Hanani, dolorido porque quase se afogara e por causa da longa jornada, tentou acompanhar o mais velho sem se cansar. Pelo canto de seus olhos, ele viu uma figura familiar.
Hanani e Ezra!, chamou Salmom correndo em direção a eles. Shalom! Como vocês estão ótimos, disse ele com um sorriso apontando para as vestes manchadas e para o cabelo emaranhado de Hanani, que há algum tempo não sabia o que era um pente. É bom ter vocês de volta.
Sim, sim. É bom, interrompeu Josué. Mas podemos comemorar depois. Esses filhos de Judá nos devem informações. Salmom, você pode vir conosco, já que Hanani está sob sua liderança e que, além disso, vocês são amigos, falou ele sem diminuir o ritmo.
Salmom os acompanhou andando junto com eles. Hanani, que conhecia Salmom desde muito pequeno, reparou nos músculos tensos do amigo e sabia que aquele era um sinal claro de nervosismo. Salmom estava morrendo de curiosidade. Hanani olhou para ele e sorriu, tentando, apesar do cansaço, demonstrar alegria. As notícias são boas, meu amigo, disse ele sem palavras. Essa missão não será como a que aconteceu uma geração atrás. Salmom relaxou os músculos. As palavras não se faziam tão necessárias entre amigos de longa data que já haviam enfrentado guerras e estabelecido a paz.
Josué entrou na tenda e a fechou. A noite caía e o ar esfriava, mas ainda estava muito quente na tenda. Mesmo assim, Hanani não se incomodou. Assim como outros israelitas, ele estava acostumado com o clima instável e as inconveniências da vida nômade. Josué deu uma volta até que toda a tenda estivesse fechada, para manter privacidade total. Bem, falem. O que vocês descobriram?
Hanani fixou o olhar por alguns segundos em algumas almofadas e ficou pensando se seria grosseiro sentar-se antes de falar. Suspirando, decidiu não pedir nada e mudou o foco de seu olhar em uma tentativa de aliviar a pressão de suas pernas doloridas. Talvez, depois de dar as boas notícias, Josué o deixasse sentar. O Senhor definitivamente entregou a terra em nossas mãos, começou ele.
O povo de Jericó e o restante de Canaã falam sobre nós com medo, continuou Ezra. Eles já esperam a derrota e estão apavorados por causa do nosso povo.
Ah! Essas notícias encorajarão e fortalecerão nossos homens. Agora, falem desde o começo. Vocês ficaram longe por alguns dias. Onde ficaram?, incitou Josué.
Nada de almofadas, pelo que ele pôde perceber. Os ombros de Hanani caíram. Nós nos escondemos nas montanhas durante os últimos três dias porque o rei de Jericó mandou alguns soldados nos procurarem. Pensando no restante da experiência, Hanani passou a mão pela barba. Passamos a primeira noite em Jericó.
Verdade? Em que lugar de Jericó vocês ficaram? Em uma estalagem, respondeu Ezra.
Uma estalagem?, falou Josué levantando a cabeça, e o pescoço de Salmom deu um giro tão rápido que Hanani achou incrível ele ainda continuar preso ao corpo. Você quer dizer, na casa de uma zonah?
Não foi bem assim, Josué. Raabe nos ajudou. Ela salvou nossas vidas, Hanani falou em voz baixa.
Salmom revirou os olhos. Era justamente o que precisávamos. Juntar-nos a prostitutas cananeias que salvarão nossas vidas.
Não foi assim que aconteceu, repetiu Hanani .
Então, continue falando. E você ainda a chama pelo nome, como se fossem conhecidos. A forma irônica com a qual Salmom falava não afetou Hanani.
Bastante sem graça e engolindo em seco, começou a explicar com palavras cada vez mais trêmulas. Os guardas nos viram na hora em que entrávamos nos portões. Eles levantam suspeitas dos estrangeiros por causa das nossas vitórias, e qualquer um que se pareça, mesmo que remotamente, com um israelita chama atenção; além disso, nossos sotaques nos entregaram. Em seguida, quando as coisas começaram a ficar perigosas, Raabe apareceu. Ela disse aos guardas que éramos convidados de sua estalagem e deu água de cevada a eles. Depois, ela nos escondeu debaixo dos talos de linho que secavam no telhado, quando os soldados do rei foram nos procurar. Acreditem, ela salvou nossas vidas e arriscou a dela.
Por que uma mulher de Jericó teria tal atitude? Por que ela trairia seu povo para salvar dois estrangeiros como quaisquer outros?, perguntou Salmom.
Hanani olhou surpreso para os amigos. Seu rosto bonito, com um queixo quadrado e um nariz fino demais para um soldado, se modificou sob suspeita. Seus olhos pareciam tensos e acusadores. Hanani projetou seu queixo. O quê?
Sem querer ofender, mas vocês tinham pouco dinheiro e muito menos sofisticação para atrair uma mulher como essa.
Quietos, todos!, interrompeu Josué. Você disse que essa mulher salvou suas vidas. Ela lhes disse por quê?
Josué, ela fez isso por causa do Senhor. Raabe tem mais fé em Deus do que nossos pais e falava mais como uma de nós do que como uma deles. Pergunte a Ezra.
Ezra concordou com a cabeça, que balançava como uma maçã suspensa por um galho fino em um dia de ventos fortes. Ela disse que o Senhor é Deus acima dos céus e da Terra.
Isso parece... extraordinário.
Foi exatamente o que pensamos, Josué. Nenhum de nós queria nada com ela, mas pelo jeito que ela falava do Senhor e como salvou nossas vidas, a nós, quero dizer, era o que parecia certo, você não acha, Ezra?
O que parecia certo?, perguntou Josué com uma sobrancelha levantada.
Bem, nós fizemos uma promessa a ela, gaguejou Hanani. Ela arriscou a vida para nos salvar. Primeiro, ela nos levou para sua estalagem. Após nos esconder, mentiu para os soldados. Ela até ajudou Ezra a descer pela janela com uma corda. Ela é delicada também. Ao ver o olhar de Salmom, ele se apressou: O peso de Ezra deve tê-la feito sentir muitas dores. Ezra concordou mais uma vez, e não se ofendeu. E, antes de irmos, ela pediu que nos escondêssemos nas montanhas por três dias, para que os guardas do rei não nos encontrassem. Então, na verdade, ela salvou nossas vidas quatro vezes.
Entendi. Vocês falaram sobre uma promessa. Podemos saber qual é?
Hanani se aproximou falando ao pé do ouvido de Josué. Nós prometemos poupar a vida dela e de seus familiares se ela nos ajudasse. Ela sabe que nós vamos derrotar Jericó, e acredita que
Deus já nos concedeu a vitória. Então, ela pediu misericórdia antes mesmo de a batalha começar. Esse tipo de fé deve ser recompensada, não acha? O próprio Deus não a recompensaria?
Salmom, que permanecera em silêncio na maior parte do tempo durante o monólogo, berrou: Vocês estão tentando nos impressionar?
Isso não é brincadeira, afirmou Josué com um mero sussurro. Salmom olhou pasmo para Josué. O homem mais velho apenas mexeu a cabeça, como se tivesse uma informação que só ele conhecia. Acredito que vocês fizeram um bom trabalho.
Josué, eles prometeram a uma prostituta que não tocaríamos nem nela nem em sua família, mesmo quando Deus nos ordenou destruir Jericó por inteiro?
Mas você não entende que só a mão do Senhor poderia tê-los levado à casa dessa mulher? Se ela não os tivesse visto, eles estariam mortos. Em toda Jericó, haveria mais alguém que ajudasse nossos homens? Alguém que reconhecesse o Senhor? Os outros podem até temê-lo agora, enquanto sua fama se espalha, mas alguém O serviria? E como, naquele exato momento, aquela mulher percebeu a presença de Hanani e Ezra? É a mão do Senhor, e de mais ninguém, Salmom. Talvez esse tenha sido o Seu plano desde o início. Pensou Josué por um momento. Nós cumpriremos essa promessa.
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Salmom estava chocado e teve dificuldades para entender a história que os espiões contaram. Suas emoções sofreram altos e baixos, como as costas de um camelo. À primeira vista, ele se encheu de alegria pelo retorno do amigo; depois, ficou consternado quando ouviu que ele tinha passado a noite com uma zonah. Aquela era uma séria transgressão da Lei. Depois, ele sentiu alívio ao saber que nenhum dos dois havia tocado nela. Naquele momento, eles estavam exaltando-a como uma figura heroica de fé e garantindo a ela o perdão das ordens de destruição enviadas por Deus.
Ele fingiu que entendeu o pensamento de Josué. Ainda assim, poupar a vida da zonah cananeia parecia ridicularizar a misericórdia de Deus ao extremo. Deus permitiria que uma nação inteira fosse destruída, mas pouparia a vida de uma pessoa tão indigna? Salmom nunca desobedeceria a Josué, mas isso não significava que ele teria de concordar com o líder.
Pela manhã, os homens do acampamento já sabiam da notícia de que eles deveriam se preparar para partir. Naquele mesmo dia, fizeram os primeiros passos de sua jornada a Jericó. Durante a noite, acamparam nas margens do rio Jordão. Por dois dias, Josué e os líderes das tribos jejuaram e oraram para buscar a vontade de Deus. No terceiro dia, eles tinham a certeza de que Deus lhes concederia um milagre. Não se falou nada para o povo sobre o que aconteceria ou que eles atravessariam o Jordão; eles sabiam apenas que deveriam seguir a Arca da Aliança, caixa sagrada que guardava as pedras originais com os Dez Mandamentos. Josué não queria que a dúvida abalasse as pessoas enquanto elas esperavam durante aquelas horas finais. Por isso, ele escolheu preservá-las até os últimos minutos possíveis dos detalhes mais estarrecedores do dia que chegaria.
Na manhã seguinte, o entusiasmo percorreu o acampamento como feixes silenciosos de luz. Josué reuniu os membros das tribos e falou para esperarem muitas maravilhas: A Arca da Aliança do Senhor seguirá à frente de vocês no Jordão. Assim que os sacerdotes que a carregarem colocarem os pés no rio, as águas serão divididas.
Um murmúrio coletivo surgiu em meio às pessoas. Salmom, que estava perto de Hanani e Ezra, viu seus rostos empalidecerem. Ele tinha ouvido a história dos dois atravessando o rio e sabia que eles não estavam nada entusiasmados para entrar novamente nas águas furiosas. Ele colocou a mão nas costas de cada um deles para motivá-los.
Deus tem um plano diferente guardado para vocês agora, meus amigos. Suas vestes não irão nem ao menos molhar. Esqueçam a ideia de nadar. Dessa vez, vocês vão caminhar.
Os dois olharam para ele com um misto de dúvida e admiração. Salmom riu. Sejam fortes, amigos corajosos. Vocês estão prestes a testemunhar um milagre, assim como nossos pais na fuga do Egito. Deus parece ter um propósito particular por ter escolhido esse período improvável para nossa travessia. Ele quer nos mostrar Seu poder e glória. Mas Salmom não disse acreditar que Deus queria que aquela geração mais nova tivesse uma experiência em especial para os preparar para as tribulações da conquista. Ele abriria as águas para abrir também os corações daquele povo e deixar espaço suficiente para Si mesmo.
Hanani torceu o nariz. Seria mais fácil se as demonstrações de Deus e de Sua grandeza não envolvessem tanto risco às nossas vidas. Quero dizer, andar por entre as águas de um rio turbulento não é um comportamento muito normal, não é?
Salmom fez um gesto com a boca para prender o riso. Suponho que nós não conseguiríamos verdadeiramente aprender a confiar em Deus sem pagar um preço. Quando virmos essas águas se partirem, ficaremos com vontade de andar em meio a elas.
Salmom segurou o ombro de Hanani tentando dar-lhe confiança. Em seguida, se afastou para assumir a posição de líder de seu povo à medida que todos esperavam por sua volta. Seus olhos se encheram de lágrimas enquanto ele sentia o grau de dependência que tinha em Deus. Nos dias normais, ele se ocupava com a tarefa de pastorear pessoas, era fácil encher a cabeça com autoconfiança. De repente, sua vontade assumia o controle e ele começava a depender de si mesmo, muito mais que de Deus. Suas habilidades, sua força humana e sua força de espírito o levavam a enfrentar muitas tarefas complicadas. Mas, naquele dia, a impossibilidade de ter essa atitude o impactou. Despido de todas as ilusões de poder, Salmom, em seu interior, transbordou com uma nova sensação de liberdade por compreender que apenas Deus pode ser a fonte de suas forças, e isto aliviou seu fardo de falsas responsabilidades.
Como se estivessem esperando Salmom chegar depois do momento de autolibertação, os sacerdotes entraram no rio com a Arca. Naquele mesmo instante, as águas do rio acima pararam de fluir. Elas formaram um monte a uma grande distância, em uma cidade chamada Adão, quando o fluxo das águas que seguiam para o mar Salgado foi completamente interrompido. O leito do rio diante deles se transformara em uma estrada enorme. Era imenso o caminho pelo qual as pessoas atravessavam em grandes fileiras, enquanto os sacerdotes permaneciam em solo seco no meio do Jordão. Toda a nação de Israel caminhou para o lado oeste do rio em direção à Terra Prometida sustentando-se no milagre de Deus. Eles ficaram por tempo suficiente para juntar vinte pedras pesadas no meio do rio Jordão, almejando edificar um monumento como um sinal para as gerações futuras.
Para Salmom, foi maravilhoso ver o rio Jordão voltando a fluir normalmente depois que os sacerdotes pisaram nas margens do lado oeste. Ninguém mais poderia suspeitar e achar que era coincidência depois daquilo. Mais ninguém poderia duvidar da intenção e do poder do Senhor.
Naquela noite, Israel acampou na terra que seria seu novo lar. Tratava-se da fase de primeiras vezes, refletiu Salmom: a primeira vez que os filhos de Israel seriam circuncidados; a primeira vez que eles celebrariam a Páscoa nas margens ocidentais, relembrando da libertação do Egito, da escravidão e da morte; a primeira vez que colheriam os frutos de plantações de suas próprias terras. Mas também era um momento de últimas vezes: a última vez que eles comeriam maná, o alimento milagroso que os sustentou por quase quarenta anos; a última vez que eles vagariam pelo deserto como nômades. Salmom se deu conta de que, muito em breve, eles aprenderiam a arar e a plantar, assim como o restante do mundo. A guerra era a única coisa que os separava de uma vida normal e estável. Ele sentiu enjoo só de pensar sobre esse assunto. Salmom ainda tinha semanas para pensar sobre esse assunto, juntamente com os outros homens também nascidos no deserto enquanto eles recuperavam suas forças depois de serem circuncidados com facas de pedra. Não poderia haver batalhas em Jericó até que eles recuperassem as forças. Deus, que estava com tanta pressa para fazê-los atravessar, estava satisfeito por deixá-los esperando daquele lado do rio.
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Josué não conseguiu dormir. Os guerreiros de Israel tinham quase recuperado as forças e estavam prontos para lutar. Ele sabia que o destino de Israel dependia daquela próxima batalha, e as estratégias estavam sob sua responsabilidade. Como ele precisava do Senhor para encorajá-lo, a força de Deus seria indispensável para tomar decisões.
Com movimentos flexíveis para um homem de sua idade, Josué levantou-se da esteira e vestiu um manto grosso. Saindo da tenda, ele caminhou até sair do acampamento de Israel. O sol já invadia o céu quando Josué chegou próximo a Jericó. Ele estava perto o bastante para ver os muros, ou seja, ele viu que não faria diferença nem mesmo se Israel tivesse como subir por escadas ou usar aríetes, pois a cidade era inacessível. Ele virou os olhos para o chão e tentou vencer sua batalha interior contra o desânimo.
Ao erguer os olhos, Josué teve um susto. A poucos passos diante dele, havia um homem com uma espada nas mãos. O homem era alto, forte e, pelo visto, nascido e criado para ser guerreiro. Sua espada era diferente; ela brilhava como a luz da lua, ornada com joias em sua base e com uma ponta afiada como nunca se viu. Parte de Josué queria correr na direção oposta, mas ele também era um guerreiro corajoso e forte. Quem era aquele homem e o que ele estava fazendo ali? Josué manteve-se firme e deu um passo à frente.
Você está conosco ou com nossos inimigos?, perguntou Josué enquanto seus olhos analisavam a expressão do homem.
Mais de perto, Josué pôde ver que o rosto do homem estava estampado com uma paz incomum. Era impossível estipular sua idade, pois não havia rugas, marcas ou cicatrizes. Ainda assim, seus olhos eram cheios de sabedoria. Josué não conseguiu desviar o olhar daquele homem que nem piscava.
Com nenhum dos dois, respondeu ele.
Josué levantou uma sobrancelha. Nem amigo nem inimigo? Quem ele era, então? As palavras seguintes do homem apagaram todos os pensamentos de Josué.
Sou o comandante do exército do Senhor, e venho como tal.
Josué pôs o rosto ao chão em reverência, pois aquele não era um homem qualquer. Aquele pensamento o impressionou tanto que ele mal podia se mexer. Assim como Abraão, ele fora honrado com uma visita celestial. Que mensagem meu Senhor tem para Seu servo?, perguntou ele.
Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é terra santa.
Josué obedeceu na hora. Ao seu redor, estabeleceu-se o silêncio. Depois de algum tempo, Josué se arriscou a olhar para cima apenas para ver se o comandante do exército do Senhor havia desaparecido com tanto esplendor como quando apareceu. Lentamente, Josué se ajoelhou. O que aquilo representava? Se Deus havia enviado o comandante de Seu exército, por que ele não disse que estava do lado de Israel?
Depois, Josué pensou que Deus não estava do lado de Israel; Ele fez com que Israel ficasse do Seu lado. Josué não clamava a Deus por si mesmo ou pelos seus próprios interesses, como as pessoas ao redor costumavam fazer com seus ídolos. Em vez disso, o Senhor clamava por Josué e pelo povo escolhido para Si mesmo.
Depois que Josué finalmente se levantou, outro pensamento lhe sobreveio. Ele não era o comandante do exército de Israel, e não lhe cabia a maior responsabilidade daquela empreitada impossível. Deus enviou o comandante de Seus exércitos para que eles enfrentassem aquela batalha. De repente os muros de Jericó não pareciam mais tão inacessíveis. Não com o exército do Senhor lutando contra eles.
Capítulo Sete
Jericó esperava alarmada como um porco pressentindo o próprio abate. Espiões levaram notícias terríveis sobre o Jordão, que se abrira, e sobre a travessia dos hebreus pelo leito do rio, feita como se eles caminhassem por um campo. Eles disseram que seus inimigos eram mais numerosos do que formigas, e o rei mandou que os portões da cidade fossem fechados. Ninguém entrava e ninguém saía. Raabe se perguntava quais eram as intenções do rei. Se o rio não pôde impedi-los, como pedras empilhadas o fariam?
Mas os hebreus não atacaram imediatamente. Depois de atravessarem o rio em período de cheia em vez de esperar que as águas se acalmassem, como qualquer nação normal faria, naquele momento eles não pareciam ter pressa para atacar. Eles descansaram, jejuaram e ficaram à toa. Raabe e o restante do povo de Jericó ficaram confusos por causa daquele comportamento. A espera os desgastava.
Quando os hebreus decidiram seguir adiante, como se finalmente estivessem certos de atacar Jericó, algo muito frustrante aconteceu em sua abordagem. Primeiramente, os guardas armados se aproximaram e, em seguida, vieram o que parecia ser sacerdotes carregando trombetas feitas de chifres de carneiros e uma caixa ornada, que carregavam com um cuidado primoroso. Apresentando a retaguarda, veio a força principal dos guerreiros. Suas trombetas faziam um som assustador a cada hora enquanto andavam em volta de Jericó em uma marcha sem fim. Ao vê-los, os vigias que ficavam sobre os muros começaram a atirar flechas. Raabe, que estava vigilante na janela, prendeu a respiração. As flechas caíram a poucos cúbitos dos hebreus, como se eles tivessem calculado a medida exata dos arcos de Jericó. Eles apenas marchavam, um passo após o outro, um cúbito após o outro. O povo de Jericó nunca tinha visto nada parecido. O que eles estavam fazendo? Exibindo sua força? O que aquilo faria contra os muros de pedra?
No primeiro dia, eles marcharam em volta da cidade e foram embora. No segundo dia, voltaram mais cedo para que os bebês despertassem de seu sono com o barulho das trombetas, fazendo o choro deles se juntar ao estrondo. A família de Raabe foi para a casa dela e não saiu mais depois daquele dia. Eles falavam pouco e, como o restante de Jericó, observavam e esperavam sentindo-se desprotegidos e angustiados.
Raabe aprendeu a falar com o Senhor no silêncio de seu coração, pois sua estalagem minúscula estava cheia de gente, o que não lhe dava privacidade. Ela não sabia se Ele conseguia entender seus pensamentos, e esperava que, se Ele pudesse, não considerasse suas palavras desrespeitosas ou inadequadas. Mesmo assim, ela achava que conversar com o Senhor acalmava seus medos, e havia muito a se temer, pois o exército dos hebreus sempre estava por perto de Jericó.
No terceiro dia, os soldados do muro começaram a criticar o exército que marchava, mas os hebreus não reagiram. Nenhum deles falava. Apenas olhando fixamente para a frente, eles marchavam e ignoravam os soldados. De qualquer maneira, eles não conseguiam ouvir devido ao barulho que faziam com suas trombetas.
Eles voltaram no quarto e no quinto dia. Os ânimos se exaltavam e a tensão recaía sobre a cidade. Como se o fato de travar uma guerra usurpadora em seus portões não fosse violenta o bastante, os homens começaram a brigar por tolices e as mulheres gritavam com antigas amigas em tons de provocação. Pela janela, Raabe conseguia ouvir as conversas entre os soldados enquanto eles falavam sobre os assuntos do Estado em Jericó. Ela ouviu dizer que os sacrifícios no templo aumentavam ainda mais. Ninguém estava desperdiçando o sangue dos carneiros nem dos touros, pois ter animais era uma comodidade durante um cerco. Eles estavam sacrificando humanos, mais do que nunca, e estavam facilitando o trabalho dos hebreus, pensou Raabe.
Muitas pessoas se esconderam em suas cabanas chorando com as mãos nos ouvidos. Outras permaneciam ofendendo sobre os muros, competindo para ver quem insultava mais. Aquelas pessoas eram criativas e entretinham a si mesmas; nenhuma delas parecia perturbar-se com exército inimigo.
No sétimo dia, os hebreus mudaram sua tática. Chegando ainda mais cedo do que nos outros dias, eles não foram embora depois de uma só marcha. Eles continuaram andando, duas, três, quatro, cinco vezes tocando a toda hora suas trombetas apavorantes. Até mesmo os que antes insultavam foram silenciados e tomados pelo medo. Raabe ficou olhando pela janela durante o dia tentando identificar Hanani e Ezra, mas eles estavam longe demais para ela ter certeza. Ela permaneceu com a corda escarlate nas mãos para certificar-se de que ela não sumiria. Ela ficou pendurada do lado de fora de sua parte do muro como um fio de esperança. Naquela corda escarlate estavam seu futuro, sua vida e a vida de seus familiares. Seu futuro dependia de uma corda. Não, ela lembrou a si mesma. Meu futuro depende de Deus.
Depois de sete voltas quase intermináveis ao redor da cidade, o som das trombetas ficou ainda mais alto, quase insuportável. Em seguida, como se fossem um só, o povo deu um grito que fez Raabe se arrepiar. A força daquelas vozes fez o chão tremer, e ela colocou as mãos sobre os ouvidos tentando abafar o barulho.
Todavia, mesmo com suas mãos pressionando a cabeça, ela ouviu que o barulho aumentava e sentiu o chão literalmente tremer. Raabe foi olhar pela janela e viu que, à sua direita e à sua esquerda, os muros impenetráveis de Jericó estavam, de fato, ruindo! Eles estavam esmorecendo e caindo em volta de todos. Sem nem ao menos uma flecha lançada, sem fogo e sem aríetes, com nada mais, nada menos do que um grito, o Senhor arruinara a fortaleza de Jericó. A cidade fora derrotada.
Os olhos de Raabe se encheram de lágrimas, e ela ficou paralisada por causa do choque daquela cena. À medida que a poeira densa das pedras e do cimento começou a baixar, Raabe conseguiu ver a dimensão do perigo. Com exceção da sua parte do muro, que por um milagre permanecera intacta, até onde seus olhos podiam ver, toda a estrutura defensiva da cidade estava em ruínas. Em algumas partes, barreiras pequenas, menores do que a altura até os joelhos de Raabe, ainda permaneceram; em outras partes, nem isso restou. Para seu desespero, ela ainda viu pernas e braços esmagados pelas pedras enormes, e sabia que o extermínio da guerra havia começado. Por algum tempo, as palavras não saíram de sua boca. Depois, ela se deu conta de que precisava alertar aos seus parentes, que estavam uns agarrados aos outros em um outro cômodo longe da janela, com medo do que havia destruído sua cidade natal.
Arrumem suas coisas, ordenou Raabe com uma voz trêmula saindo de seu transe. Preparem-se. Os muros ruíram e logo eles virão até nós.
Os muros ruíram? Foi esse o barulho que ouvimos? Mas não pode ser! A voz de Joa assumiu um tom irreconhecível. Deixe-me ver.
Raabe se afastou para que ele visse. Ele sentiu um impacto no peito e um som escapou de seus lábios. Não... não! Como isso aconteceu? Eles nem entraram na área de disparo. Isso foi mágica
- algum tipo de encanto poderoso?
Não. Raabe se lembrou de que Ezra falara que o Senhor não gostava de magia, feiticeiros e adivinhadores. É o poder de Deus.
Karem se aproximou de Joa. Veja!, apontou ele. O restante do muro desabou, mas essa parte onde estamos ficou intacta. Se aqui tivesse desabado, estaríamos mortos como aquelas pobres pessoas. Parece que esse Deus poupou nossas vidas.
Vivendo o pior dia da história de seu povo, Raabe se viu sorrindo. Não era Hanani, nem Ezra, nem Josué, nem o exército de Israel, nem a força da promessa, mas o próprio Deus escolhera poupar sua vida. Eles foram salvos por Suas mãos.
Com mais confiança, ela disse: Venham todos. Vocês precisam se preparar. Não podemos demorar depois que eles vierem atrás de nós. Peguem o que conseguirem carregar, como eu falei com vocês. Deixem tudo o que não for essencial para trás.
As crianças choravam, assim como as irmãs e cunhadas de Raabe. Seus pais também choravam, e seus irmãos vertiam lágrimas silenciosas enquanto arrumavam as coisas. Todo o estilo de vida deles fora arruinado. Deus os havia resgatado, mas eles ainda estavam muito confusos e decepcionados para mostrar gratidão.
Todos ouviam o exército dos hebreus entrando em Jericó, e o som da luta ressoava. Pessoas correndo, gritos, choros, brigas, confrontos com metal. Depois, Raabe ouviu passos de alguém subindo suas escadas, e por um momento seu corpo paralisou. E se eles não mantivessem a promessa? E se eles a traíssem? Depois, ela se lembrou das palavras de Hanani e sabia que ele seria fiel.
A porta se abriu, e lá estava o próprio Hanani, seguido por Ezra. Eles estavam sujos e com um sorriso de orelha a orelha. Vê-los deu uma força súbita a Raabe, e ela correu em direção aos dois rindo e chorando ao mesmo tempo. Vocês vieram. Vocês vieram por nós.
Não era a nossa promessa? Josué, nosso líder, nos mandou tirar vocês de Jericó. Nós te levaremos para um lugar próximo ao acampamento de Israel. Certifique-se de levar tudo o que precisa. A cidade será totalmente destruída, pois recebemos a ordem de não deixar nada de pé. Educadamente, os dois ignoraram os lamentos e as lágrimas dos membros da família de Raabe, e um momento estranho tomou conta do lugar, como se o inimigo lutasse para ser amigo.
Foi mais fácil para Raabe, que teve mais tempo para se adaptar. Ela já tinha fé no poder do Senhor e na verdade de quem Ele era. Obrigada!, murmurou sem conseguir pensar em mais nada. Com um impulso, ela pegou a corda escarlate e a pôs em sua sacola. Ela sempre a guardaria para se lembrar da bondade do Senhor para com ela, e a corda seria uma lembrança de que Ele escolhera salvar sua vida.
As escadas de sua estalagem estavam mais firmes do que nunca, imunes à destruição que reinava em todo lugar. Hanani foi à frente, e depois Raabe e sua família, com Ezra na retaguarda. Logo que eles saíram, o mau cheiro atingiu Raabe. O cheiro de madeira e carne queimadas, de sangue, de dardos e de cinzas causou-lhe um impacto tão forte que sua garganta ardeu. Ela não pôde cobrir o nariz porque suas mãos estavam cheias de coisas. Raabe começou a respirar pela boca tentando ao máximo não enjoar. Logo que eles saíram da escada, Hanani parou, e Raabe, curvada pelo peso de duas grandes sacolas, esbarrou nele.
Oh! Perdão.
Hanani mexeu a cabeça. Não olhe para baixo, disse ele. Depois, virando-se ele falou para todos: Não olhem para baixo e fechem os olhos das crianças.
Raabe sentiu o sangue sair de seu rosto. Hanani começou a andar novamente, e ela o seguiu com a boca seca. Na soleira da porta que havia no fim da escada, havia um corpo caído, sangrento e sem vida. Para seguir em frente, Raabe teve de dar um passo mais largo sobre o tronco. Ela tentou não olhar, mas mesmo assim viu que aquele pescoço tinha um fim, e que aquele corpo um dia teve uma cabeça. Raabe virou o rosto e viu a cabeça não muito longe dali, perto de uma roseira, com os olhos arregalados mais por surpresa do que por agonia. Ela reconheceu aquele rosto: era Hamish, o guarda do portão. Uma grande mosca saiu de sua boca sem vida, e Raabe fechou os lábios para não vomitar.
Ela se forçou a andar para frente, focando o olhar nas costas de Hanani, ignorando tudo, menos os retalhos na costura sob o qual os músculos se contraíam e relaxavam a cada passo. Por viverem dentro de muros, o extermínio pelo qual eles passaram foi limitado. Era um terror mais do que suficiente para o resto da vida. Sempre que Raabe ouvia as palavras guerra ou batalha depois daquele dia, sua mente recordava aquelas imagens.
Perto de onde o grande portão da cidade costumava ficar, Hanani parou novamente e se virou. Preciso avisar a Josué que nós te encontramos. Não saiam daí. Ezra, eu já voltarei, gritou ele para ter a certeza de que tinha sido ouvido em meio ao estrondo. Ezra fez um sinal com a mão para indicar que ouvira.
Raabe apoiou as sacolas no chão e cobriu seu nariz e sua boca com as mãos trêmulas. Os sons que a rodeavam eram aterrorizantes, e sem dúvida eram os sons da destruição e da aniquilação.
Saído de lugar nenhum, segundo Raabe, um guerreiro alto foi depressa até o grupo que esperava. Ele fez um movimento repentino em direção a ela, erguendo sua espada manchada de vermelho. Raabe arfou e levantou as mãos em um gesto inconsciente de rendição. Ezra parou de proteger a retaguarda e gritou: Salmom, pare! Eles estão conosco!
O homem curvou o rosto em direção a ela e, por um momento passageiro, Raabe sentiu que seu olhar se prendeu ao dele. Seus olhos grandes, quase negros, pareciam desafiá-la enquanto a analisavam. Apesar de ser bonito, com uma boca bem desenhada e um nariz cinzelado, uma austeridade obscura marcava cada traço, fazendo-o parecer não muito acolhedor. Ele era bonito, mas frio.
É melhor você sair daqui com eles antes que alguém os corte em pedaços, ordenou ele.
Naquele momento, Hanani estava correndo em direção a eles e chegou a ouvir algumas palavras. Nós iremos imediatamente, Salmom. Eu estava apenas falando com Josué.
Raabe teve a impressão de uma ira antes do homem se virar e gritar algo para um grupo de soldados que correram para obedecer às suas ordens. Apenas depois que ele virou as costas, ela voltou a respirar outra vez. Com alívio, ela retomou sua caminhada interrompida atrás de Hanani, passo a passo, enquanto ele os tirava das ruínas de sua nação.
Eles caminharam por uma hora em um silêncio ininterrupto, até que Raabe finalmente conseguiu falar. Vocês lutarão contra outras cidades?
Sim, respondeu Hanani.
Ela fez um gesto com a cabeça. Era óbvio que o Senhor não estava satisfeito apenas com Jericó. Debir já havia lhe dito isso antes, e pensar nele trouxe lágrimas aos seus olhos. Ela sabia qual foi seu destino - o destino que ele escolhera. Ela lamentou por sua morte, pois Debir tinha sido seu amigo.
Raabe não conseguiu dizer mais nada. A jornada foi cansativa e, embora Hanani e Ezra tivessem ajudado a eles a carregar suas sacolas, ainda havia muito peso. As crianças menores tiveram que ser carregadas na maior parte do caminho, e Raabe tentava ignorar a pontada de dor que sentia, dando o seu melhor sob os raios abrasadores do sol. O suor fez marcas desiguais em sua pele, pois ela estava coberta pela poeira densa das construções decaídas de Jericó. Sua família a seguia com tropeços, sustentando-se mais no sofrimento e na perda do que no peso dos bens materiais. Raabe se perguntou se eles realmente acreditaram que Deus derrotaria Jericó.
Logo após o meio-dia, eles chegaram a uma colina pequena cercada por palmas e acácias. Vamos deixar vocês por aqui agora, avisou Hanani. Josué pediu que levássemos notícias preliminares da guerra ao acampamento de Israel. No caminho de volta à cidade, vamos parar aqui novamente para trazer-lhes água. Não há poço por perto.
Raabe fez uma reverência a eles. Vocês salvaram nossas vidas.
Assim como você salvou as nossas, replicou Ezra com um gesto.
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Eles estavam felizes por ter sombra. Ninguém estava comfome, e as crianças, exaustas pela caminhada esgotante, dormiram sem problemas. Izzie ajudou Raabe a espalhar alguns cobertores para criar um ambiente mais confortável, e elas também amarraram a corda escarlate entre duas tamareiras, pendurando um cobertor, a fim de criar um espaço que garantiria um pouco de privacidade. Dos muros de Jericó para um cobertor. Eles haviam perdido, de fato.
Os adultos sentaram-se perto uns dos outros tentando prover algum tipo de segurança pela proximidade. Raabe continuou pensando na resposta de Hanani à sua pergunta - que Israel continuaria guerreando contra Canaã. Eles abandonariam Raabe e sua família? À mercê de outros deuses e dos povos cananeus? À mercê de outro ataque indefensável de Israel? Teria ela arriscado sua vida apenas para ser abandonada? Ela se deu conta de que queria muito mais que aquele descanso temporário. Raabe queria uma segurança duradoura, e queria uma nação para honrar. Ela queria o Senhor.
Em um impulso, Raabe deixou escapar: Quero pedir a Hanani e Ezra para intercederem por nós com Josué. Talvez eles nos deixem viver com eles.
Um silêncio impactante foi ao encontro de seu anúncio. Depois, Joa foi em direção a ela. O seu cérebro assou no sol, mulher? Os hebreus estão assassinando o nosso povo enquanto conversamos. Você quer viver com eles? Como você acha que eles vão nos tratar?
Está fora de cogitação, apoiou o irmão mais velho. Ficaremos aqui por respeito até eles voltarem. Depois, vamos para o ocidente. Canaã tem outras cidades, e viveremos longe daqui.
E o que vocês vão comer?, perguntou ela. Suas terras pertencem aos hebreus agora, caso você tenha esquecido a batalha que aconteceu. Como vocês vão se sustentar?
Do mesmo jeito que faríamos se estivéssemos com esses forasteiros, Raabe. Nós trabalharemos, respondeu Karem.
Como operários? Por quanto tempo antes de vocês morrerem de fome? Sobreviver já era complicado quando vocês eram donos de suas próprias terras.
Você acha que esse povo nos presenteará com uma parte da terra?, perguntou Joa em tom sarcástico. Virando-se, ele golpeou o tronco de árvore mais próximo com os punhos cerrados. Houve um estalo nauseante e Raabe retraiu-se, esperando que ele não tivesse quebrado os dedos. Ele levou as articulações à boca e saiu. Ela viu que eles estavam machucados e com a pele desgastada, mas não pareciam ter feridas mais profundas do que aquelas. Seus ombros relaxaram com alívio.
Eles vivem de maneira diferente da nossa, disse ela depois de alguns instantes. Nenhum deles passa fome. O Senhor lhes provê tudo.
O Senhor! O Senhor! Estou cansado de ouvir esse nome, Joa gritou. Eu quero me afastar dele - ir para o mais longe possível.
Ela se aproximou dele. Joa. Mas não conseguia pensar em nada para dizer que o reconfortasse. Então, em vez disso, ela lhe deu um abraço forte. Ele começou a chorar. Isso é um pesadelo, repetia ele várias vezes.
O pai e a mãe de Raabe sentaram-se perto dele, aparentemente indefesos e quase chorando também. A irmã e as cunhadas estavam ocupadas tentando fazer uma fogueira para preparar algum alimento, perdendo, então, a maior parte da conversa. Atraídas pela tristeza de Joa, elas também se aproximaram.
O que está acontecendo?, perguntou Izzie.
Raabe quer que nós fiquemos com os hebreus, respondeu sua mãe.
Eles nos aceitariam?
Izzie! Não fale como se você quisesse ir, argumentou Gerazim.Bom, para onde mais nós iremos?
Exatamente, vocês não podem ir muito longe em Canaã para fugir dos hebreus. Mais cedo ou mais tarde, eles chegarão - nessa geração ou na dos nossos filhos. Você ainda não entendeu isso? Eles querem a terra inteira, e nossa única salvação é estar com eles. Como um deles, afirmou Raabe.
Eles nos escravizariam?, perguntou Izzie.
É claro que não... eu não acho. Droga! Eles não escravizariam, não é? Se quisessem escravos, eles já os teriam levado como prisioneiros. Acho que, se estivermos dispostos a adorar apenas o Senhor e a abrir mão dos outros deuses, talvez eles nos deixem viver com eles - como pessoas livres.
Izzie levantou a sobrancelha. Abrir mão dos nossos deuses?
Estou disposta a fazer isso a cada minuto do dia.
Seu marido a encarou como se ela tivesse acabado de anunciar que assumiria a profissão que Raabe teve um dia. Izzie, o que você está dizendo?
Ela se virou para ele com uma veemência que silenciou a todos, antes mesmo de falar. Eu entreguei meu filho a Moloque. Meu filho! E o que eu ganhei com isso? Além de dor e arrependimento, o que mais eu ganhei com esse sacrifício? Tantos anos, e eu fiquei estéril. Sem bênçãos, sem riquezas. Eu tenho visto mais poder no deus dos hebreus nos últimos sete dias do que vi em nossas divindades a vida inteira. Desejo boas coisas a eles. Vivas ao Senhor. Raabe, eu estou com você. Ela deu uma mordidinha nos lábios e depois, com uma voz mais baixa, perguntou: Você acha que eles vão aceitar alguém que sacrificou seu filho a Moloque?
Sim, já que aceitaram uma ex-prostituta.
Karem levou a mão aos cabelos. Raabe, você tem certeza de que eles também atacarão outras terras de Canaã?
Sim.
Até agora você não esteve errada. Se não fosse por você, irmã, estaríamos mortos e não restaria nenhum de nós. Ninguém aqui teve o bom senso de te agradecer; nós lhe devemos nossas vidas, e eu, pelo menos, não estou disposto a viver outra batalha daquelas. Estou disposto a me juntar aos hebreus se eles nos tiverem como iguais, e não como escravos. Minha família e eu te apoiaremos.
Izzie olhou para Gerazim. Ele mexeu a cabeça em um gesto fraco de aprovação, com uma aparência doentia. Raabe não poderia culpá-lo. Era como decidir mudar o rumo de suas espécies. O que eles sabiam sobre a vida dos hebreus? Ela surgiu diante deles como uma noite sombria e interminável.
Os pais de Raabe estavam quietos, olhando para todos, começando por Joa, apesar de ele não ter falado mais nada naquele dia. Ele apenas olhava na direção de onde era Jericó, por vezes com os lábios trêmulos. Sua esposa sentou-se com ele, e seus filhos, ainda sonolentos, se aproximaram. Entretanto, nem mesmo a aproximação deles o distraiu. Durante a noite inteira, ele ficou sentado sob aquela árvore. Se ele dormiu, Raabe não viu. Quando ela acordou, ele estava no mesmo lugar com um temperamento mais sombrio do que antes.
Joa, sussurrou ela e se abaixou na frente dele. O que foi? O que tanto te consome?
Eles são o inimigo. Sinto como se você tivesse passado para o lado inimigo.
Você quer levar sua família para onde em Canaã? Você pode ir se quiser, meu irmão. Eles nos deram nossas vidas e não nos impuseram condições.
Se eu for, perderei o restante de vocês. Já não perdemos o bastante?
Ela concordou com a cabeça. Mais do que o bastante. Aquele acampamento hebreu é a única chance de viver que teremos no final das contas. Você pode aprender a viver com o inimigo e fazê-lo ser seu amigo, ou pode ir para onde você quer e acabar com o futuro de seus filhos. Essas são as suas únicas escolhas.
Raabe, por que você quer servir ao deus deles?
Como poderia expressar com palavras algo que ela mesma mal entendia? Porque Ele é verdadeiro. Houve uma resposta, mas totalmente deficiente. Porém, Joa pareceu entender. Ele engoliu em seco, depois concordou.
Eu irei para onde você for, disse ele, mas com um tom derrotado, e não esperançoso.
Depois daquilo, os pais de Raabe se juntaram a eles, como ela já sabia que fariam. A família inteira foi unânime, mesmo que por razões muito diferentes. Para Raabe, os hebreus representavam a esperança. Eles eram a resposta para um desejo que ela mal compreendia. Sua irmã aceitou porque não tinha nada a perder, e seu marido a apoiou, como sempre fazia. Karem, o irmão mais velho de Raabe, aceitou porque viu a situação de forma prática, e fez o compromisso, moral e pragmático, necessário a fim de garantir que sua família sobreviveria. Joa aceitou por desespero. Sejam quais fossem seus motivos, Raabe convenceu a família a se juntar aos hebreus. Mas como ela convenceria os hebreus a aceitá-los?
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Quando Hanani e Ezra voltaram, ela teve uma conversa particular com os dois e não perdeu tempo. Nós podemos nos unir a Israel? Ouvi dizer que há alguns estrangeiros com vocês. Então vocês também podem nos aceitar, não é? Vocês nos deixariam viver com seu povo? Suas palavras pegaram os dois de surpresa.
Sob suas sobrancelhas escuras e curvilíneas, Hanani olhou para ela e logo afastou o olhar. Isso não cabe a nós, mas conversaremos com Josué quando discutirmos os assuntos sobre Jericó e quando ele tiver mais tempo para lidar com outros assuntos.
Lembre a Josué... lembre a ele que eu parei de viver como uma zonah pela causa do Senhor. Nunca mais voltarei a ter aquela vida.
Hanani pensou naquilo por um momento. Você realmente parou por causa do Senhor?
Raabe respondeu que sim. Há meses.
Nosso povo apedrejou uma mulher por causa de tal pecado. Ela se tornou impura aos olhos de Deus, mas é bom que você tenha parado. Diremos isso a Josué, Raabe, mas não podemos prometer nada.
Eu entendo. Obrigada.
Josué acredita que o próprio Senhor enviou você a Ezra e a mim. Talvez isso o comova.
Ela sorriu. Bem, o Senhor não salvaria a mim e a minha família apenas para nos perder em outra cidade de Canaã. Qual seria o objetivo? Ele deve ter nos poupado por algum propósito.
Hanani concordou com a cabeça. Você nunca duvida de nossas vitórias?
É claro que não. Como o Senhor perderia?
Acho que Israel sempre se lembrará de você pela sua fé, Raabe. Afirmou Ezra.
Seu coração se encheu de alegria. Seria possível ela ser lembrada por algo que não fosse sua antiga profissão?
Capítulo Oito
Salmom se ajoelhou em um monte carbonizado de alvenaria, e a pequena espada que ele empunhara por longas horas bateu com força em seu lado. Ele engoliu, e sua garganta ardia muito. O cheiro da morte o cercava, e ele lutou bravamente contra um ímpeto de vomitar a pouca comida que havia em seu estômago. Muitas moscas voavam em volta dele, atraídas pelo cheiro do sangue que secava em suas roupas. Ele as deixou, pois estava muito cansado para espantá-las. De longe, ele percebeu que um homem se aproximava por trás. Josué. Salmom queria que ele fosse embora e o deixasse sozinho para que pudesse ter alguma paz com seus conflitos interiores. Mas Josué continuou seguindo, e seus passos não mudaram de direção. Ele subiu no monte em que Salmom estava e ficou diante dele por um momento. Um braço forte, queimado pelo sol, envolveu os ombros tensos de Salmom como umcobertor.
Por um momento Salmom evitou aquele conforto, aprofundando-se mais e mais dentro de si mesmo. Depois, abaixando a cabeça, ele liberou a tensão. Nunca me acostumei com essas matanças, sussurrou ele com voz fraca. Salmom passou a mão trêmula pelo rosto, deixando listras de cinzas na bochecha.
Deus também não Se agrada com isso, meu filho, disse Josué. Você sabe que Ele odeia a injustiça da mesma forma que as mães odeiam as doenças que acometem seus filhos. Como nos dias de Noé, os filhos de Adão podem acumular tanta corrupção que seu ser torna-se perigoso para tudo que vive. Então, a sacralidade de Deus se levanta. Mas eu acredito que, assim como o dilúvio de Noé, essa parte de nossa história restringe-se a uma fase. Essa é apenas uma pequena parte da história que precisa terminar. Deus tem outros planos para o nosso povo, e prometeu a Abraão que todas as nações do mundo seriam abençoadas por meio dele. Por meio de nós. Esse é o nosso maior destino.
Salmom murmurou. Eu gostaria que essa fase de bênçãos não demorasse a chegar. Essa é uma tarefa da qual mal posso esperar para me ver livre. Dias assim são angustiantes. Suponho que eu possa parecer ingrato diante de tudo que o Senhor já fez por nós.
Você parece exausto. Josué se levantou e avaliou a devastação à sua volta. Logo voltaremos ao acampamento. O solo desta cidade é amaldiçoado, e não passaremos nem sequer uma noite aqui.
Salmom percebeu que alguém estava correndo em direção a eles. Hanani.
Meu senhor, procurei por você em todo lugar. Ele ofegou quando chegou até eles, falando primeiramente com Josué, como deveria ser. Sem saber da onda de emoções que Salmom acabara de enfrentar, ele sorriu. Que bom que você está a salvo, disse ele ao amigo antes de se voltar para Josué. Agora que você já acabou de tratar sobre a cidade, pode me dar alguns minutos?
Sim, grande espião. Como foram as coisas com Raabe e a família dela? Vocês os salvaram?
Sim, nós salvamos. Na verdade, era sobre isso que eu gostaria de conversar, meu senhor. Ela pediu permissão para viver em Israel. Ela e sua família.
Salmom bufou, mas Josué o ignorou. Ela quer isso agora?
Mulher singular essa sua zonah.
Hanani ruborizou. Ela definitivamente não é minha, e acho que não é mais uma zonah. Ela pediu para lhe dizer que desistiu daquela vida. Pela causa do Senhor.
Josué passou a mão calejada pela barba. Suas narinas se encheram com uma respiração profunda. Estou convencido de que ela nos foi enviada por Deus. Apesar de conhecer muito pouco sobre o Senhor, ela O busca. Desde que nossa peregrinação começou, nunca vi estrangeiros tão dignos de valor. Se ela e sua família abrirem mão de seus deuses e aceitarem viver sob nossas leis, acredito que devo permitir que se juntem a nós.
Salmom, que havia guardado seus comentários para si, explodiu. Você não pode estar dizendo isso!
Não posso? E por que eu não poderia?
Alterado demais para considerar a luz perigosa nos olhos de Josué, Salmom disse: caso você tenha esquecido, acabamos de matar todo o povo. Você acha que, depois disso, eles irão conviver pacificamente conosco? Teremos que dormir com um dos olhos abertos por causa do medo de ser apunhalados durante a noite pela vingança dos fugitivos de Jericó.
Josué fez que sim com a cabeça. Seria uma preocupação plausível, se essa mulher não tivesse ajudado a destruir o próprio povo quando abrigou nossos espiões. E sua família também ajudou quando consentiu em não falar nada. Se eles estivessem tão preocupados com Jericó, teriam tentado salvá-la enquanto ainda tinham poder. Eles serão bastante inofensivos conosco. Sentirão pesar, eu ouso dizer, mas não vingança.
E Raabe?
Josué fez um gesto com a cabeça parecendo não entender a pergunta.
O que tem ela?
Ela é uma zonah, independentemente do que diga sobre ter desistido disso. Ela é impura.
Josué levantou uma das mãos, com a palma para cima. Acho que seria melhor se déssemos algumas voltas juntos. Aquela era a voz de líder de Josué, o que não gerou discordâncias. Salmom obedeceu com passos pesados.
Josué não disse nada até eles entrarem em um pequeno bosque, onde um dia foram os muros de Jericó. Salmom parecia incomodado com aquele silêncio e pensava no quanto teria desagradado o homem mais velho. Josué fez uma parada abrupta e se virou para encará-lo. Que coração orgulhoso você anda abrigando, meu jovem.
Pasmos, os olhos de Salmom se arregalaram. Meu senhor? Aquelas palavras respeitosas quase o sufocaram quando saíram.
Tudo isso é desagradável, eu sei, mas preciso falar com você sem rodeios. Salmom, o juízo que você faz desta mulher é errado. Entenda, eu não te culpo. Entendo a origem de suas opiniões e sei como você as formou. Isso é uma parcela da criação dos seus, mas sua geração tem uma grande lição para aprender. A falta de fé e a desobediência dos seus pais e avós mudaram suas vidas. Em vez de nascer e crescer em sua própria casa, você enfrentou as dificuldades de uma existência instável, sem nunca ter conhecido a rotina de uma vida normal. Até então, a única segurança que lhe resta é o Senhor, e isso fez você se apegar a Deus diferentemente dos seus pais. Talvez a geração dos seus filhos também não herde sua decisão, e talvez seja por isso que Deus permitiu que, antes de tudo, vocês peregrinassem.
Mas em toda força há certa fragilidade, e a sua está sendo exposta agora, Salmom. Você está julgando na tentativa de aplicar a justiça.
Eu estou apenas mostrando os fatos.
Ah, sim. Ela é impura. Cheia de pecado. Tal conceito é mesmo incomum para a nação de Israel. Pois nosso maior líder, Moisés, nunca matou um homem dominado pela ira. E nosso sumo sacerdote, Arão, nunca adorou a um ídolo de ouro. Nosso ancestral imaculado, Judá, certamente não ignorou os direitos das viúvas de seus filhos. E Deus não impediu que ele encontrasse uma mulher que pensou ser prostituta e se deitasse com ela em sua tenda. Que tormento terrível Raabe seria para a nossa pura e imaculada Israel.
Salmom rangeu os dentes. Você está comparando uma mulher adúltera a Moisés?
De certa forma, sim. Acho que você também se esqueceu, meu jovem amigo, que o sangue de cordeiros sem mácula também é derramado para redimir nossos pecados. Salmom ficou vermelho, mas Josué continuou. Você se lembra de quando falei sobre o meu encontro com o comandante dos exércitos do Senhor? Naquele dia, ele me disse que não estava do nosso lado nem do lado inimigo. Isso me deu um vislumbre do coração do Senhor. Ele está do lado de todos que estiverem do Seu lado, e Raabe está do lado dele. Mas seu orgulho não te deixa ver isso.
O orgulho é o veneno da justiça. Por fora, você pode até parecer mais justo que uma mulher com tal passado, mas Deus nos vê por dentro. Você tem se ocupado tanto tentando cumprir os Mandamentos e tentando fazer tudo certo por fora que acabou esquecendo do seu interior que o Senhor sempre está sondando. E, assim, você perdeu o senso de justiça. Você está confundindo condenação com bom juízo.
Agora, darei a você uma nova missão para te ajudar com seu problema. Colocarei Raabe e sua família sob o estandarte da tribo de Judá. Ou seja, estou colocando-a sob seu comando.
Mas...
Pare. Não diga outras palavras que não Sim, meu senhor. Espero que você trate essas pessoas com respeito. Ajude-as a se assentar e ensine-as a viver do nosso modo. Eu me fiz entender?
Sim, meu senhor. Os lábios de Salmom mal se moveram enquanto falava. Ele se sentiu gélido por dentro, e Josué nunca o reprimira tanto. O homem que mais admirava achava que ele era hipócrita, orgulhoso e que não tinha senso de justiça. Por causa de uma zonah cananeia. Ele lutou para ganhar o respeito de Josué, e a opinião de seu líder significava muito para ele. Mas aquela crítica o destruiu, e suas palavras serpenteavam em seu coração como um veneno de amargura.
O ressentimento em relação a Raabe e sua família o invadiu. Suas objeções para com ela eram uma questão de princípios; ele não tinha problemas pessoais com ela. Mas, depois dessa conversa com Josué, uma aversão estranha a ela surgiu em seu coração. Ele deu meia volta e foi novamente até o monte onde estava, em Jericó. Com determinação nos olhos, ele foi procurar Hanani. Josué lhe dera uma missão e ele estava disposto a desempenhá-
-la com obediência. Além disso, Salmom também intentava fazer aquela cananeia revelar sua verdadeira natureza.
Ele encontrou Hanani fazendo uma refeição com bolos de tâmara e grãos tostados. Para Salmom, Hanani já estava maculado pela companhia. Afinal de contas ele estava andando com Raabe. Sem cumprimentos e sem o entusiasmo rotineiro, Salmom falou: Para onde você levou aquela mulher? Josué a colocou juntamente com a família sob minha liderança.
Hanani engoliu a grande quantidade de bolo que estava em sua boca. Você quer dizer, Raabe? Eles estão a mais ou menos uma hora do acampamento. Podemos parar lá na volta, se você quiser.
Não. Já será noite quando chegarmos lá. Deixe-os passarem a noite onde estão. Trataremos disso amanhã.
Hum, você não me parece muito feliz com isso.
Eu? Infeliz? Estou regozijando de tanta alegria. Era tudo o que eu queria para a minha tribo - uma adúltera cananeia e sua família moralmente destituída. Isso deve trazer paz e tranquilidade para o meu povo.
Salmom, eu não acho que...
Está certo. Você não acha, disse ele e foi embora.
Salmom passou as duas horas depois daquele momento avaliando as pessoas sob seu controle, vendo quem estava ferido, ouvindo as histórias da batalha e certificando-se de que a devida assistência estava sendo dada a quem precisava de ajuda. Jogando seus sentimentos arrebatadores em algum lugar escondido de sua mente, ele deixou seu entusiasmo natural recair sobre aqueles homens, elogiando-os por seus atos valorosos e parabenizando por suas experiências. Ele teve uma pequena reunião com os líderes que foram falar com ele antes de permitir-se voltar para o acampamento.
Quando ele voltou, a lua já estava no céu há horas. Ainda fora do acampamento de Israel, ele tirou as roupas e lavou o sangue e o suor da batalha, até estar devidamente limpo. Depois disso, ele se arrastou até o acampamento exausto e acabado. O que deveria ter sido um dia de alegrias tinha gosto de amargura em sua boca. Sabendo que os mensageiros já haviam cumprido a tarefa de levar notícias às mães e esposas do acampamento, ele entrou na tenda.
Sua irmã mais nova, Miriã, cujo nome lhe foi dado por causa da irmã mais afamada de Moisés, quase o levou ao chão com a força de seu corpo quando foi de encontro a ele com um abraço forte.
Opa!, resmungou ele, tentando segurar o fôlego. Se os soldados de Jericó lutassem com a força desse abraço, talvez não tivéssemos vencido.
Ela beijou seu braço. Estou tão feliz por você estar bem.
Salmom deu batidinhas na cabeça dela, esquecendo-se de que agora ela era uma mulher feita, e não mais uma criança. São, salvo e morto de cansaço.
Vá logo se deitar, então. Amanhã você me conta sobre a batalha e sobre a ruína dos muros. Ezra descreveu a cena, mas ele teve que ser breve. Aposto que sua versão será mais empolgante.
Garota sanguinária. Vá antes que você me faça ter pesadelos.
Salmom andou cansado até suas almofadas, alongando seus músculos doloridos e tentando esticar-se. Ele não orou nem mesmo louvou a Deus pela intervenção milagrosa ou por seu retorno seguro. Salmom falou para si mesmo que estava muito cansado; entretanto, no fundo ele sabia que o cansaço não era o motivo que o afastara de Deus, mas sim a raiva. Ele ficou com raiva pela decisão injusta de Josué e pelo fardo que Raabe seria. Mas, acima de tudo, ele ficou com mais raiva da possibilidade de Josué ter razão.
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O dia amanheceu iluminado, mas não muito prazeroso para Salmom. Miriã entrou com um café da manhã e um sorriso alegre. Todos em Israel sorriam, e aquela felicidade o irritava. Eles não tiveram de fazer nada desagradável que afetasse o gosto da vitória em seus lábios. Eles não precisavam lidar com uma zonah cananeia.
De qualquer maneira, o que ele faria com aqueles estrangeiros? Salmom não podia simplesmente aparecer no acampamento com eles nas costas. Havia centenas de regras e leis que eles, inconscientemente, quebrariam naquele primeiro momento. Ele decidiu deixá-los onde estavam até que recebessem algumas instruções básicas.
O que há de errado com você, meu irmão? Por que estava magoado ontem?, perguntou Miriã franzindo a testa para Salmom.
Ele se sentou na esteira e arrumou os travesseiros em suas costas, amaciando-os. Não, eu não estava magoado.
Então, por que você está agindo como um camelo com dor de dente?
Ele passou as mãos pelos cabelos escuros, fazendo-os ficarem arrepiados. Aquilo não ajudou muito, já que ele estava lutando contra o sono. É complicado.
Miriã deu um suspiro. Bem, ande logo e vista-se. Vou com você para ajudar.
Ajudar em quê? Do que você está falando?
Da sua complicação. Acredito que o nome dela seja Raabe, e ela ainda vem com alguns parentes.
Salmom quase se engasgou com a surpresa. Como você sabe sobre Raabe?
Acalme-se, senão você vai pegar a febre do deserto por esquentar-se tanto. Josué falou comigo hoje, ainda cedo, e me pediu para te ajudar.
Você? Para quê? Ele mandou um pedaço de gente me espionar - minha própria irmã, só me faltava essa! Ele lançou um olhar para ela que praticamente gritava traidor.
Franzindo a testa, Miriã fez um gesto de desprezo com sua mão. Mas é claro que não. Ele me pediu para te ajudar com as mulheres. Não vai ser fácil ensinar nossas leis a elas, e irei ajudá-las a se adequar e a se adaptar.
Ah!
Desculpas aceitas. Meu único irmão está grosseiro logo no dia da grande vitória de Israel. Por quê?, surge a pergunta.
Salmom encolheu os ombros. Não concordo com Josué em relação a isso. Acho que é um grande erro trazer essas pessoas para o nosso acampamento. Se Deus nos mandou poupá-los, que seja. Eu gostaria de derramar menos sangue do que tenho derramado. Mas eles precisam mesmo se juntar a nós?
Ela me parece uma mulher de fé e muito corajosa. O que você tem contra ela?
Ela é uma zonah, Miriã. Pare e pense nisso, não sei se é sensato desperdiçarmos tanto tempo com ela. Fale para Josué mandar a irmã e veja se ele vai querer ajudá-los.
Hanani e Ezra passaram uma noite inteira com ela. Sozinhos. E nenhum deles se corrompeu. Eu ouso dizer que resistirei a quaisquer influências execráveis que ela tenha. Além do mais, Josué me pediu isso pessoalmente e eu não irei decepcioná-lo.
Bem, Josué deveria ter antes pedido minha permissão. Acerte-se com ele se você quiser. Agora, quando nós iremos visitá-los?
Salmom lamentou. Ele não podia lutar contra Josué e sua irmã, pois os dois eram duas pessoas pelas quais tinha muito carinho. E, na verdade, ele não estava preocupado com Miriã. Ela saberia lidar com até dez prostitutas cananeias sem se deixar corromper. Ele apenas estava tentando encontrar desculpas para frustrar o plano de Josué. Com ressentimento, pôs um manto sobre a cabeça ao mesmo tempo em que esticava os pés em suas sandálias já gastas com uma energia proveniente da irritação.
Agora, nós iremos até eles. Vamos procurar Hanani para que ele nos mostre o caminho. Ezra também sabe onde é, procure por ele também. Vamos perguntar ao primeiro que aparecer pela frente.
Eles encontraram Ezra não muito longe de sua tenda, cantarolando uma melodia alegre enquanto carregava água.
Ezra!, chamou Salmom.
Bom dia, Salmom. Seu sorriso se abriu ainda mais, quase a ponto de dividir seu rosto ao meio quando ele viu quem o acompanhava. Bom dia, Miriã.
Olá, Ezra. Meu irmão e eu precisamos de sua ajuda. Qualquer coisa. Qualquer coisa que você...
Sim, sim, interrompeu Salmom. Precisamos ir até onde Raabe está. Você nos leva?
Claro que sim. Nós os deixamos em um oásis não muito longe daqui. Ele olhou em volta à procura de um lugar para deixar seu jarro de água, mas depois mudou de ideia e o apoiou novamente nos ombros. Eu levarei. Eles precisam de água fresca.
Salmom fez um som demonstrando desconforto.
Ezra e Miriã conversaram na maior parte do caminho, ou pelo menos Miriã falava e Ezra a ouvia com entusiasmo. Salmom ignorou os dois e passou a se perguntar por quanto tempo ele precisaria ficar com aqueles sobreviventes de Jericó antes de eles serem forçados a mostrar o verdadeiro caráter.
Um pequeno acampamento apareceu às vistas. Sob a sombra de grandes palmeiras, algumas crianças brincavam e uma mulher as olhava. Três mulheres preparavam algum tipo de refeição na fogueira enquanto um homem recolhia lenha, o outro dormia e outros dois estavam envolvidos em uma conversa. O cenário parecia familiar. Inocente. Nitidamente inofensivo. Salmom se deu conta de que aquela família havia perdido tudo e a todos que conheciam. Eles deveriam estar arrasados, e Salmom engoliu a culpa em seco. Em sua concepção, eles haviam se tornado seres abstratos, indiferentes, sem coração, mas a cena que ele vira ao chegar tirou aquela venda de seus olhos.
Quando eles se aproximaram, a família de Raabe notou sua presença e todos interromperam as atividades. Até mesmo o homem que dormia acordou, e as crianças se aquietaram. Quando eles chegaram mais perto, uma mulher se aproximou. Ela estava usando uma toga modesta de alta qualidade, e seus cabelos estavam cobertos pelas dobras de um tecido preto de linho. Com os olhos grandes e arregalados, ela o observou discretamente. Suas pupilas se dilataram ao reconhecê-lo antes mesmo de ela piscar. Ele também não tinha esquecido do rosto dela, nem mesmo depois do rápido encontro entre os dois em meio à cidade em chamas. A pele de Raabe era tão clara que os raios do sol pareciam atravessá-la, e suas cores incomuns - olhos cor de ouro e os cabelos castanhos escapando de seu véu - realçavam a feminilidade exótica que estampava cada traço dela. Salmom deu um chute em si mesmo mentalmente. Ele estava mesmo admirado uma cananeia? Ao contrário de Miriã, era ele quem estava precisando de proteção.
Ela se virou para Ezra e inclinou-se mostrando respeito, como era de costume entre os cananeus. Bem-vindo, Ezra.
Bom dia, Raabe. Eu trouxe um pouco de água.
Raabe! Aquela era Raabe? Como alguém poderia dizer que uma mulher como aquela era prostituta? Onde estavam seus véus transparentes, vestidos justos e as pinturas no rosto? Onde estava sua expressão bronzeada e sensualidade?
Ezra interrompeu os pensamentos deslumbrados de Salmom com uma apresentação. Raabe, este é Salmom, filho de Naassom, um dos líderes da tribo de Judá, e esta é Miriã, sua irmã. Salmom, esta é Raabe, que salvou a mim e a Hanani da morte certa.
Raabe fez mais uma reverência, mais longa desta vez por respeito à posição de Salmom. Sua presença muito nos honra, meu senhor. Depois de apresentar os membros de sua família, ela perguntou: Vocês gostariam de comer conosco? Temos pão fresco e bolo de uvas.
Salmom, irritado por ter de passar metade do dia com pessoas em quem ele mal confiava, e ainda mais irritado pelo fato de ter se impressionado com a aparência e com as maneiras de Raabe, fez um gesto com o lábio. Não. Viemos até aqui para dizer que Josué decidiu deixar sua família ir morar no acampamento de Israel. Com algumas condições.
Antes mesmo de ele abrir a boca para falar as condições, Raabe o espantou ao prostrar-se até o chão. Obrigada, meu senhor. Muito obrigada. Que Deus os abençoe. Seus olhos grandes continham muitas lágrimas.
Levante-se, mulher, ordenou ele. Não posso falar com você de rosto no chão. Miriã pigarreou, mas Salmom a ignorou. Na verdade, ele não queria ser tão ríspido, mas as lágrimas e a humildade incômoda de Raabe o comoveram muito. Perturbado por sua reação espontânea de compaixão, ele ficou pensando. Aquela mulher causaria estragos se entrasse em Judá. Conscientemente ou não, ela despertaria confusões e corrupção. Salmom endureceu o coração compassivo e firmou o olhar.
O rosto de Raabe empalideceu e ela levantou apressadamente. Perdão.
Salmom mexeu no nariz desejando que alguém apagasse aquele olhar magoado do rosto da mulher. Olha, eu disse que há condições, e elas existem mesmo. Você deve desistir de todos os seus ídolos e falsos deuses. Entendeu? Todos. O Senhor é um Deus ciumento, e Ele não tolerará idolatria. Qualquer um de vocês que quiser viver em Israel deve dedicar a vida ao Senhor e viver sob nossas leis. Josué os colocou sob meus cuidados na tribo de Judá, e agora eu sou responsável por ensinar tudo o que vocês precisam saber. Então, quando estiverem preparados, podem ir para o acampamento. Antes disso, ficarão aqui.
O irmão mais velho de Raabe deu um passo à frente, curvando-se com timidez. Meu senhor, como aprenderemos essas leis? E como aprenderemos sobre o Senhor?
Minha irmã, Miriã, ajudará as mulheres, e mandarei algum homem que possa vir ensinar-lhes algo todos os dias.
Agora vocês têm que me dizer, cada um: estão todos dispostos a abandonar seus ídolos e a adorar apenas ao Senhor? Entendam isso de uma vez: o castigo para a idolatria pode ser até mesmo a morte.
O mesmo irmão respondeu: Raabe já havia nos explicado que devemos nos afastar dos deuses com os quais nos acostuma-mos. Todos nós escolhemos fazer isso, pois o Senhor é poderoso e está muito acima de todos os outros. Mas temo que sejamos muito ignorantes.
Pelo menos eles sabiam e reconheciam sua ignorância, e Salmom admitiu que a humildade poderia abrir caminho para um aprendizado bem-sucedido. Antes que ele pudesse responder, o irmão mais novo deu um passo à frente; havia algo indistinto e taciturno em sua atitude. Aquele estava lutando contra sua decisão, adivinhou Salmom. Ele se concentrou no irmão mais novo, avaliando sua atitude e tentando ler sua expressão. Seria ódio? Vingança? Violência? Ele ficou tenso e inconscientemente assumiu uma posição de batalha.
Nós seremos escravos dos hebreus se formos viver com vocês? Sua voz era instável, apesar da tentativa óbvia de parecer calmo. Salmom acabou detectando medo e desconfiança, mas não violência. Ele relaxou os músculos tensos, pois viu que o assunto era razoável.
Não, vocês não serão nossos escravos. Sua irmã comprou suas vidas e sua liberdade ao salvar nossos espiões antes de a guerra ser travada. Vocês podem se juntar a nós como pessoas livres. No entanto, vocês não precisam ficar conosco, se não quiserem. Vocês não nos devem nada, pois o preço pelas suas vidas foi justo.
E como nós vamos viver? Nós tínhamos um pequeno lote de terras antes... em Jericó, quero dizer. Nos sustentávamos como lavradores, mas como alimentaremos nossas famílias depois de nos unirmos a vocês?
Salmom encolheu os ombros. Vocês, homens mais novos, irão para o campo de batalha com o restante dos homens. Assim, terão direito à parte da terra, como os outros. As mulheres e crianças ficam no nosso acampamento e ajudam na manutenção diária.
Muitos deles imediatamente se espantaram. Batalha?, perguntou um deles assustado.
Ora, o que eles esperavam - que sua origem cananeia os isentasse das tarefas desagradáveis? O que eles achavam de se unir a uma outra nação significava?
Se vocês vão se unir a nós, esperamos que vivam como nós. Raabe, que tinha se movimentado para ficar atrás de seus irmãos, deu um passo à frente mais uma vez. Sua voz era tão suave
que Salmom ficava tenso ao ouvi-la, e ele notou que ela evitava seu olhar. Meu senhor, meus irmãos e meu pai nunca foram treinados para guerrear. Eles são lavradores muito hábeis, e eu ouvi dizer que alguns de vocês logo viverão nas terras que um dia foram de Ogue e Siom. Vocês não precisarão de alguém que as cultive? Por terem peregrinado por tantos anos, talvez cuidar da terra seja uma tarefa muito desafiadora para vocês. Se o senhor precisa dos seus homens na maior parte do tempo, o trabalho pesado de cuidar das terras recairá sobre as mulheres, que não têm experiência. Vocês teriam muitos prejuízos nesse processo de aprendizagem. Meus irmãos e meu pai poderiam ser muito úteis ensinando ao seu povo a cuidar da terra. Eles já conhecem o solo dessa área - as colheitas que crescem bem e aquelas que perecem, além de saberem o que aduba a terra e o que a drena. Não seria mais vantajoso para Israel usar esse tipo de conhecimento que eles têm do que desperdiçar a vida em batalhas para as quais eles não foram treinados?
Salmom lançou um olhar penetrante para Raabe. Em poucos instantes, ela havia oferecido sua família como instrumento para uma produtividade indispensável para Israel, além de ter apresentado uma razão notável para que eles não lutassem. E mais uma vez, ela recorreu a nenhum tipo de truque feminino para fazê-lo, o que Salmom teria renunciado com certo prazer. Ele ficou impressionado ao ver que ela ruborizava quando ele a olhava. Ela abaixava os olhos, o que o fazia parecer ainda mais rude. Nunca uma mulher o deixara tão perplexo ou atraído. Aquele pensamento quase o fez suspirar. Ele queria correr o mais rápido possível na direção contrária, até onde suas pernas o levassem.
Capítulo Nove
Raabe analisou Salmom sorrateiramente. Ele parecia tenso, com as mãos fechadas ao lado do corpo, rangendo os dentes e inspecionando Raabe e sua família como um pastor vigia um bando de lobos. Ele fez questão de não esconder a insatisfação em meio a eles, e as únicas coisas mais frias do que seus modos eram suas palavras. Por um lado, ele dera a melhor notícia que Raabe ouviu na vida; por outro lado, ele a censurava como se apenas seu olhar ofendesse seus sentidos.
Quando Salmom anunciou que seria o líder deles, o coração de Raabe quase saiu pela boca. Havia uma força em Salmom que ela achava intimidadora. Com os anos de peregrinação no deserto, sua grande estrutura era composta de músculos, e as batalhas recentes o fizeram ficar ainda mais forte. Mas, para Raabe, a imponência não estava na força física ou mesmo na beleza poderosa. Havia algo penetrante em seu olhar, como se ele pegasse uma adaga e cortasse o seu ser sem piedade. A julgar pelos traços de sua boca, nada que ele encontrava em Raabe o agradava. Embora ela tentasse esconder isso dentro de suas roupas discretas, Salmom a fazia se sentir como uma criança maleducada.
Depois de ter sido repreendida com tanta hostilidade, Raabe manteve a boca fechada e falou o mínimo possível, até que ele jogou a última bomba: seus irmãos teriam de ir para a guerra juntamente com os outros homens de Israel.
Ela ficou horas pensando naquela possibilidade. O que Israel poderia esperar deles? De que outra maneira eles poderiam provar suas boas intenções e fidelidade? Ela nunca compartilhou essas suspeitas com sua família; em vez disso, Raabe pensou muito para buscar uma solução. Então, enquanto todos foram pegos de surpresa pelas palavras de Salmom, ela se prontificou a dar uma sugestão. Por dentro, ela estava tomada pelo medo. Se as vidas de seus irmãos não estivessem em jogo, ela nunca mais abriria a boca na frente daquele homem.
Raabe não teve a ousadia de olhar para os olhos dele, mas não resistiu e o fez disfarçadamente por sob seus cílios para tentar ter uma ideia de sua reação. Seu rosto era indecifrável como a esfinge; seus olhos se fixaram nela enquanto ela terminava de falar, e Raabe sentiu que havia ruborizado. Raabe mordeu os lábios querendo brigar consigo mesma por ter voltado a ser uma adolescente envergonhada.
Salmom cruzou os braços e deu um passo para trás. E você pensou nisso agora, suponho.
Raabe havia prometido a si mesma que manteria um bom relacionamento desde o começo com aquele povo, se eles a aceitassem. Ela sabia que o Senhor gostaria que ela dissesse a verdade, mas fazê-lo naquele momento era como esculpir sua própria língua e entregá-la de presente. Ela temia que aquele líder hebreu soberbo achasse que ela era uma estrategista por ter preparado aquele discurso inteligente. Raabe estava certa de que, se dissesse a verdade sobre o que já imaginara e pensara, ele pensaria o pior dela, que queria tão desesperadamente deixar uma boa impressão para ser aceita e bem recebida. Ó Senhor, ajuda-me a honrar-Te.
Raabe respirou fundo. Não. Eu pensei sobre isso durante a noite.
Ela notou seu suspiro penetrante. Ele levantou uma de suas sobrancelhas escuras depois de um momento. Quem te disse que os homens teriam que ir para a guerra?
Ninguém me disse. Eu suspeitava. O senhor não poderia esperar menos de nós como seu povo. Até mais, se houver algo. Os recém-chegados devem provar sua lealdade.
Salmom descruzou os braços. Sua sugestão tem... mérito. Pareceu que ele havia inventado a própria admissão. Pensarei no assunto, disse ele depois de um momento de silêncio.
Enquanto isso, nenhum de vocês pode entrar no acampamento sem antes ter aprendido os princípios básicos da Lei. Ezra, já que está aqui, você poderia começar com os princípios. Miriã, depois que Ezra acabar os Dez Mandamentos, você pode instruir as mulheres enquanto Ezra continua ensinando aos homens alguns preceitos mais particulares do Senhor. Vocês podem voltar juntos ao acampamento à noite.
Certifiquem-se de conversar com eles no nosso dialeto. Apesar de nossas línguas terem a mesma origem, as diferenças entre os dialetos podem dificultar a comunicação deles quando todos chegarem ao acampamento de Israel. Não podemos continuar falando com eles em seu dialeto, pois poucos vão fazer o mesmo quando eles se unirem ao nosso povo.
Ele se virou para Raabe por um momento e ela achou que ele fosse falar mais. No entanto, ele mudou de ideia e se voltou para Karem, o irmão mais velho. Suas provisões vão durar até quando?
Temos comida para uma semana - ou até mais, se pouparmos. Precisamos de mais água.
Mandarei água todos os dias e comida quando vocês precisarem. Vi que vocês não têm tendas.
Não conseguimos carregar nada muito grande durante a fuga. De qualquer forma, estamos bem. As noites estão brandas e temos cobertores.
As noites estão brandas agora. Mas quando chegar o inverno, precisarão de um refúgio apropriado. Vocês têm ouro ou prata suficientes para comprar uma tenda ou duas? Depois que vocês forem para o nosso acampamento, verão que vão precisar.
Karem franziu a testa pensando. Verei que teremos de juntar nossos recursos.
Salmom se virou para ir embora, pensou e, em seguida, se voltou mais uma vez. Por favor, entendam. Essa decisão que estão tomando é muito importante. Vocês escolheram mudar completamente seu estilo de vida. Completamente. Pensem bem antes de se comprometerem com isso. Depois, ele partiu sem dar a chance de eles se curvarem ou reverenciarem em respeito.
Raabe se sentou na areia, se dando conta de que, pela primeira vez, suas pernas estavam vacilantes. Ela apoiou a cabeça nos joelhos e tentou não chorar. O que era aquele desejo de fazer parte de Israel? Que desejo era aquele que a consumia com uma paixão incomum, diferente de qualquer outra que ela conhecia? Sua família ainda desejava Jericó e ainda lamentava pela vida que tinha, mas tudo era diferente para Raabe. Exceto pelos pensamentos tristes por seu amigo Debir, Raabe nunca achou que tivesse perdido nada. Ela estava completamente voltada para Israel.
Todavia, o aviso de Salmom foi justo. O que ela sabia sobre a vida em Israel? Ainda assim, mesmo com todas as consequências medonhas, ela se viu mais determinada do que nunca a se tornar uma verdadeira adoradora do Senhor Deus.
O toque macio da mão de alguém a assustou.
Desculpe, disse Miriã com um sorriso. Não quis te assustar. Meus pensamentos me atormentavam, e a interrupção foi
bem-vinda.
Não se preocupe com Salmom. Às vezes meu irmão não conhece a própria força, mas ele tem um bom coração. Ele se acertará com a sua família. Além do mais, o próprio Josué já decretou que vocês podem se unir a nós.
Você acha mesmo que eu posso aprender e me adaptar ao seu povo? Raabe perguntou sem conseguir disfarçar o tremor na voz. Ela não falou exatamente o que estava pensando - ela não disse uma zonah como eu, mas não era impossível deduzir isso.
Claro que você pode. Qualquer um pode ver que você já ama o Senhor. Você é corajosa, cumpre com a palavra e se importa com a família, e meu povo admira essas qualidades. Talvez não seja tão fácil à primeira vista, pois nem todos são bondosos com estrangeiros. Mas o pior vai passar com o tempo se você persistir.
Raabe quase quebrou o decoro e abraçou Miriã por sua gentileza, mas um pensamento de última hora a fez achar que talvez aquele comportamento fosse inaceitável em Israel, o que a fez conter o impulso. Em vez disso, ela apenas sorriu estranhamente.
Durante o dia, Ezra e Miriã falaram sobre o Senhor e sobre as leis que regiam Israel para todos. Raabe ouvia com atenção e guardava cada informação nova em sua memória, a fim de refletir depois.
Então, quem é o rei de vocês? perguntou Joa no meio da explicação sobre as lideranças.
O Senhor é nosso Rei, respondeu Ezra. Sim, sim. Mas quem é o seu rei na Terra? Nós não temos nenhum rei na Terra.
Então, quem é o príncipe de vocês? Seria Josué? Ou Salmom?
Ezra mexeu a cabeça. Não temos reis nem príncipes. O Senhor ungiu Josué para liderar Israel. Há doze tribos, e cada uma tem o próprio líder. O líder da tribo de Judá é Calebe, que tem a mesma idade que Josué e é um homem de coração decidido. Dentro de cada tribo, temos líderes e governantes do povo. Temos os chefes dos mil, e um deles é Salmom, e, abaixo deles, os chefes dos cem. Depois, temos os chefes das famílias. Levamos nossos conflitos a juízo. Não precisamos de reis, que podem virar tiranos, nem príncipes, que podem se tornar cruéis e vaidosos.
Inri mexeu a cabeça. Nunca ouvi falar de nada parecido.
Costuma dar certo. Nosso respeito uns pelos outros se origina da nossa confiança no Senhor. Josué mostrou-se um homem poderoso muitas vezes até agora, mas o verdadeiro motivo pelo qual nós o seguimos é o fato de sabermos que o Senhor o escolheu e o capacitou.
Izzie chegou mais perto. Então, se vocês viajam por quase quarenta anos pelo deserto, vocês não têm casas, nem comércios, nem templos, nem estradas, nem muros. Como vocês lidam com isso?
Miriã não chegou a dar um sorriso, mas Raabe notou que uma pequena covinha se formara ao lado de sua boca. Nós temos um santuário para o Senhor - um tabernáculo. De qualquer forma, você está certa; não é um templo como aqueles com os quais vocês estão acostumados, embora seja muito maior do que parece. Nele, há cortinas costuradas em linho azul, púrpura e escarlate com desenhos de querubins e muitos adornos de ouro e prata maravilhosamente moldados. Ainda assim, é o próprio Deus que faz do tabernáculo um lugar agradável de se estar, pois a manifestação da presença do Senhor é mais maravilhosa do que o maior dos templos feitos pelas mãos do homem. O coração de Raabe estremeceu com aquelas palavras. Pensar em um dia entrar no tabernáculo do Senhor, vivenciando Sua glória e sendo tocada pela Sua presença a fez ficar atemorizada e cheia de encanto.
Moramos em tendas em vez de casas, continuou Miriã. Algumas são muito grandes e confortáveis. Tudo tem que ser móvel, e por isso temos poucos utensílios grandes, além das coisas que foram consagradas para uso do Senhor. Não temos comércio; os homens e as mulheres fazem trocas entre si.
Os olhos de Izzie brilharam. Eu sei tecer muito bem.
Miriã curvou-se um pouco mais perto e tocou o manto de Izzie. Este é lindo. Foi você quem fez?
Ela fez que sim com a cabeça. Levou metade de um ano. Eu fiz esses detalhes da bainha diretamente no tecido. Não foi pintado.
Quanta delicadeza e suavidade você teve para fazê-lo! Com qual material você o teceu?
Raabe percebeu que as bochechas de sua irmã ficaram rosadas de prazer. Teci com lã e linho.
Um olhar estranho tomou o rosto de Miriã. Ela mordeu a ponta do polegar e olhou para Ezra, que estava ocupado conversando com Inri. Raabe sabia que algo incomodava Miriã, embora ela não entendesse o que era. Sua irmã parecia ter acabado com aquela tensão inicial enquanto falava com alegria de suas virtudes e de como sabia usar vários tipos de tecidos juntos. A cada minuto, Miriã parecia ficar cada vez mais consternada.
Finalmente, durante uma pausa silenciosa, Raabe perguntou: Miriã, posso falar com você em particular por um momento?
Ela respondeu que sim com a cabeça e seguiu Raabe até um canto do acampamento, onde as duas ficaram sob a sombra escassa de uma palmeira. Miriã, você pode me dizer o que há de errado? Tenho certeza de que algo está incomodando você.
Ela lamentou. Pobre da sua irmã. Não tive coragem de contar a ela.
Contar o que a ela?
O manto. Ela não poderá usá-lo depois que se juntar a nós. Não podemos usar nada que tenha sido tecido com lã e linho juntos, e ela terá que abrir mão de tudo que foi feito com tecidos diferentes. Um trabalho tão lindo... oh, Raabe, coitada da sua irmã.
Raabe abriu e fechou a boca. Izzie precisava fazer aquilo. Ela trabalhou por muitas horas naquele manto; ele era diferente das outras peças, e ela havia resgatado o melhor das ruínas de Jericó.
Eu sinto muito, disse Miriã.
Raabe mordeu os lábios e pensou por um momento. É o jeito.
Voltando para onde todos estavam, Raabe decidiu abordar logo o problema. Izzie, querida, acho que tenho más notícias, ela começou a falar preparando seu interior para uma possível explosão emocional. Na verdade, isso serve para todos nós. Não poderemos usar roupas tecidas com lã e linho juntos. Podemos apenas usar as peças que sejam feitas de um ou de outro.
O quê? O som da voz de sua irmã atraiu todos os olhares para ela. Do que você está falando?
Miriã deu um passo à frente. Eu sinto muito. Seu manto é lindo, e tenho certeza de que todas as mulheres de Israel o admirariam tanto quanto eu. No entanto, como vocês viram, não podemos usar roupas tecidas com linho e lã.
Em nome de todos deuses, por que não? Isso é absurdo!
Ezra empalideceu com aquela exclamação, e Raabe viu que sua expressão estava confusa e aflita. Ela supôs que ele estivesse tentando imaginar por que uma mulher que perdera quase tudo e se mantivera com uma certa serenidade perderia a compostura por causa de uma simples roupa.
Em meio a um silêncio estarrecedor, Ezra disse: Perdoe-me, eu peço. Entendo que seja muito difícil para você, mas, por favor, é preciso compreender que, se quiserem viver conosco, vocês não vão usar o nome de outros deuses em suas expressões, mesmo com raiva ou desconforto. Se você tivesse usado o nome do Senhor em vão, poderia ser muito pior, como eu expliquei pela manhã.
Izzie olhou para Ezra como se tivesse crescido nele uma cauda de jumento. Nós só estávamos falando sobre o meu manto, afirmou ela com uma voz mais fria do que o gelo.
Sim, mas... Miriã colocou a mão no ombro de Ezra e, com isso, o silenciou. Raabe começou a respirar fundo para tentar se acalmar. Será que eles contariam aquilo para Salmom? Será que eles chegariam à conclusão de que sua família não tinha jeito e os proibiriam de se unir a Israel? A experiência provara ser mais complicada do que ela esperava.
Miriã foi até Izzie e segurou sua mão. Sei que isso parece irracional para você, Izzie, e eu sentiria o mesmo se estivesse no seu lugar. Todavia, há um princípio por trás disso. Deixe-me explicá-lo para você, porque ele se aplicará a quase tudo na vida conosco. O Senhor chamou Seu povo para viver separado dele. Devemos pertencer a Ele e seguir apenas Seus caminhos e planos, e não devemos ser como as outras pessoas. Ele sabe como a mente humana é facilmente influenciável, e seria muito fácil para nós começar a acreditar em crenças cananeias. Por isso, o Senhor determinou algumas dessas regras aparentes para nos ajudar a lembrar de que pertencemos a Ele, e a nenhum outro, e de que devemos ser diferentes do mundo à nossa volta ao pensar e em nossa forma de agir.
Algumas pessoas dizem também que essa proibição da mistura de tecidos é uma lembrança simbólica de que não podemos nos misturar com pessoas de outra fé. Eu não entendo esses mistérios; o que sei é que prefiro obedecer ao Senhor sem entender, pois meus conhecimentos são limitados.
Talvez chegue um dia em que o povo de Deus não precisará mais dessas lembranças. Talvez algum dia Ele escreva Sua Lei em nossos corações para que possamos deixar de viver com essas regras severas. Porém, até esse dia chegar, devemos permanecer em Sua vontade.
É um sacrifício que decidimos fazer por Ele. Sabemos que Deus não está sendo cruel ao nos guiar nesses pequenos detalhes da vida. Ele tem sido um pai protetor que deseja manter fora de problemas Seus filhos que se desviam do caminho facilmente. São nesses pequenos atos diários de obediência que aprendemos os maiores princípios de uma vida justa.
O Senhor sabe o quanto lhe custará se desvencilhar deste manto, Izzie. Mas você O alegrará se fizer isso.
Raabe foi até a irmã e lhe deu um abraço envolvente. Faça pelo Senhor, e não por causa das regras nem por causa de Israel. Se fizer isso por Ele, você se alegrará. Mas se fizer pelas regras, você se ressentirá.
Miriã olhou para Raabe com admiração. É isso mesmo. Raabe sentiu a raiva e a atitude defensiva saírem de sua irmã.
Izzie pensou por alguns minutos enquanto os outros esperavam.
Se os homens fossem cavalos, ela teria certeza de que eles já estariam batendo com força no chão com a ferradura - nenhum deles tinha paciência para aguentar a tensão.
O cobertor que eles haviam pendurado na corda escarlate na noite anterior ainda estava pendurado entre duas árvores, como se fosse uma repartição na qual eles poderiam ter um pouco de privacidade. Izzie foi para trás do cobertor. Quando saiu de lá alguns minutos depois, ela estava vestida com uma roupa simples de linho, carregando no braço o manto que gerou aquela conversa. Izzie foi até a fogueira, que ainda estava acesa após a refeição, e, depois de um pequeno momento de hesitação, jogou a peça adornada nas chamas. Todos olharam impressionados. Raabe viu sua mãe se levantar e procurar por entre as roupas. Ela separou algumas e também as jogou na fogueira. Um por um, todos eles foram até seus pertences escassos e queimaram todas as peças de roupas feitas com tecidos diferentes.
Raabe achou que seria mais prático guardar tudo aquilo e vender em alguma cidade de Canaã. No entanto, aqueles sacrifícios os fizeram sentir uma alegria que eles não sentiam desde a derrota para Israel. Foi quase como se eles sentissem o prazer que o Senhor sentiu com suas escolhas.
Quando estava na hora de Ezra e Miriã partirem, Raabe os acompanhou até uma pequena parte do caminho, como mandava a educação. Miriã diminuiu o ritmo dos passos até que eles ficassem para trás, e no retiro daquela caminhada, ela se voltou para Raabe. Como você sabia que sua irmã deveria abrir mão do manto pelo Senhor, e não pelas pessoas? Eu conheço o Senhor desde que nasci e comecei agora a entender essa lição.
Eu devo muito a você, Miriã. Não mereço crédito algum. Raabe parou de repente e estendeu a mão, segurando os dedos da jovem diante de si. Ela hesitou, engolindo em seco algumas vezes antes que conseguisse fazer qualquer outro movimento. Quando vivíamos em Jericó - minha família e eu - nós fizemos coisas horríveis. Você sabe que eu era uma zonah. Meu pai me pediu para fazer isso quando eu tinha quinze anos, e eu decidi não parar quando eu poderia ter parado. Eu tive alguns poucos amantes, o que não é muito para a profissão, mas é o bastante para Israel e para o Senhor, Izzie entregou o filho como sacrifício a Moloque, e nossos pecados não acabam por aí. Você precisa ficar ciente dessas coisas, Miriã. Diga isso ao seu irmão e a Josué. Eles devem saber disso tudo. Não se pode esconder nada de Deus, então, seria inútil se nos juntássemos a vocês sob falsos pretextos. Eu ficaria desolada se vocês nos rejeitassem, mas também não ficaria feliz se nos aceitassem sem saber realmente quem somos.
Raabe respirou fundo e ficou imóvel. Pronto, ela havia contado. Ela confessou. Raabe manteve os olhos abaixados, tentando desesperadamente não ver a irritação que com certeza se refletiria no rosto de Miriã. Naquele momento, ela já poderia desistir de Raabe e retirar todos os elogios generosos que havia feito. O silêncio tomou o lugar e depois, para sua surpresa, Raabe se viu envolvida por um abraço que quase a fez cair no chão.
Eu sinto muito. Sinto muito por tudo que você passou. O quê?
A sua vida parece ter sido tão difícil; você carregou tantos fardos. Você acha que eu te rejeitaria enquanto Deus te aceita? Se Ele enterrou seu passado, eu também o farei.
E seu irmão? E Josué?, perguntou Raabe com voz enfraquecida.
Josué fará o que o Senhor o mandar fazer, e Salmom fará o que Josué lhe mandar fazer, mesmo que ele reclame. Amadureça sua decisão, Raabe. Descanse na aceitação de Deus. Salmom se acostumará.
Raabe pensou enquanto voltava para o acampamento que o problema era não ter certeza se Deus a aceitara. Iludir-se acreditando que Deus a aceitara era uma coisa muito diferente de conquistar verdadeiramente Sua aprovação. Enquanto isso, ainda havia Salmom, que definitivamente não gostava dela.
Capítulo Dez
Airmã de Salmom preparou sopa de lentilha para a janta. As lentilhas eram esmagadas nos dentes de Salmom, pois não estavam muito cozidas. O pão, cru por dentro, grudou no céu de sua boca. Miriã colocou outra porção de sopa na tigela ainda cheia, mas ela estava tão pensativa que nem notou que parte da sopa escorreu pelos lados e caiu em uma das mãos de Salmom.
Ele suspirou. Sua irmã daquele jeito era sinal de problema, e provavelmente com ele. Miriã, o que houve com você?, perguntou ele.
Hum? Miriã piscou os olhos e se levantou do assento no chão para lavar os utensílios da janta, mas esquecera distraidamente que tinha acabado de encher a tigela dele minutos antes. Salmom estava aliviado. Com isso, pelo menos ele não precisaria mais fingir que estava comendo.
Fale o que se passa na sua cabeça, menina. Diga-me o que te perturba. E você poderia trazer um pano para mim? Se continuar insistindo em me sujar de sopa, o mínimo que você poderá fazer é me limpar.
Ah, sim claro!, ela respondeu entregando um grande pedaço de pano a ele. Era o melhor cinturão de Salmom. Ele pegou o cinturão com a mão que estava limpa, pegou um pouco de água e saiu para lavar a mão, a roupa, e também para pensar. Ele passou a mão molhada pelos cabelos e depois entrou novamente.
Agora, minha irmã, me diga o que te incomoda. Você notou? Como é observador.
Miriã!
Já que você insiste.
Ela se deixou cair em uma almofada perto de onde ele estava. Andei conversando com Raabe.
Eu já devia saber, vociferou Salmom. Salmom bateu em um tapete que estava perto dele e se levantou. Já com problemas no primeiro dia.
Eu gosto dela, Salmom. Gosto muito dela, e se deixar de ser tão cabeça dura, você também vai gostar.
Tudo bem. Então, qual é o problema?
Ela conversou comigo sobre seu passado e confessou a mim alguns de seus pecados e de sua família, porque não quer esconder nada de você nem de Josué. Raabe quer muito se juntar a nós, mas não quer fazer isso sob falsos pretextos. Ela quer que vocês aceitem sua presença absolutamente cientes de quem eles são e do que fizeram. Achei sua atitude admirável, e nem todo mundo seria tão franco quanto ela diante de dadas circunstâncias. Ela está determinada a fazer tudo certo, e prefere abrir mão do sonho pelo bem de sua integridade, se for necessário.
Salmom deu um suspiro resignado e se recostou nas almofadas. Então, me fale sobre o passado dela.
Em frases sucintas, Miriã explicou ao irmão tudo o que Raabe havia revelado. Salmom mexia a cabeça em um conflito entre a irritação e a admiração. Como vou fazer essas pessoas se adaptarem a nós, Miriã? Sacrificar crianças? Obrigar a filha a virar prostituta? Adultério? Josué determinou que eu faça algo impossível, então deixe-o resolver. Converse com ele.
Eu já conversei.
É claro, murmurou Salmom, inclinando-se. Que tolice a minha!, esqueci que ultimamente você virou a melhor amiga do líder de Israel. E o que ele falou, me diga, por favor.
Ele disse o seguinte: Você pensou que, quando aceitei a ideia de ter cananeus aqui, eu achava que eles seriam puros como os filhos de Levi?
Pelo menos ele não se surpreendeu, embora eu não consiga entender como ele consegue aceitar esse monte de pecados.
Ele acredita que o passado já passou e é um domínio de Deus. Ele também disse assim: Nosso trabalho é resgatar o presente a partir dessa carcaça apodrecida. Ele disse que admira Raabe por ela ser comprometida com a verdade.
Como ele é um líder virtuoso, debochou Salmom. Eis o seu trabalho, minha irmã. E o meu é cavar a sepultura, eu suponho, para nos livrar dessa carcaça apodrecida.
,.
Na manhã seguinte, um Salmom rancoroso voltou ao acampamento de Raabe, e Miriã o acompanhava lado a lado com passos alegres. Ele chegou quando a família estava reunida fazendo um levantamento das finanças. Ajoelhando-se perto de Karem, ele perguntou: Vocês têm o suficiente para as tendas?
Depende de quanto cada uma custa. Ele passou o valor total da quantia para Salmom.
Vocês têm o bastante para uma tenda grande. Ficará apertada para catorze pessoas, mas acho que conseguirão se adaptar. Depois, lhes restará um bom valor para investir em algumas cabras e talvez em um bezerro. Ele lançou um olhar para Izzie. E algumas ovelhas. Assim, vocês terão leite, manteiga, queijo e iogurte, e também terão lã. Se trabalharem bastante na terra, lá pelo ano que vem, terão condições de comprar outra tenda.
Raabe girou de onde estava a fim de olhar para ele. Trabalhar na terra, meu senhor? Isso quer dizer que o senhor decidiu que meus irmãos e meu pai podem cultivar a terra em vez de ir para a guerra?
Eu sabia que isso não passaria por você, disse ele lentamente. Sim, eu decidi que nós nos beneficiaremos da experiência deles. Mas, é claro, desde que vocês obedeçam à Lei. Raabe olhou para baixo para que ele não pudesse ler sua expressão. Salmom percebeu que aquela era uma tendência habitual nela, o que ele achava frustrante. Ele mexeu a boca e se voltou para Izzie. Miriã me contou o que aconteceu ontem. O que você fez foi corajoso. Muito bem. Izzie ruborizou com alegria.
Miriã se levantou e foi até Izzie levando uma peça de roupa. É para você, disse ela enquanto entregava a roupa para Izzie. Eu mesma teci no ano passado. Não é nada se comparado ao seu trabalho refinado. Eu gostaria que você me ensinasse a tecer como você. Em Israel não temos nada tão requintado quanto o que você faz.
Para mim?, Izzie mostrou-se surpresa.
Miriã riu. Bem, não ficaria tão bom nos seus irmãos. A cintura deles é muito grande. Salmom sorriu secretamente.
,.
Duas semanas depois, Salmom voltou mais uma vez ao acampamento de Jericó. Ele tentou se concentrar no que Joa falava sobre os sacrifícios, mas, em vez disso, viu que seus olhos rondavam na direção de Raabe. Ela estava com uma de suas sobrinhas no colo enquanto tentava ensinar à mais velha a fiar. Ele notou que, perto das crianças, ela abandonava seu olhar resguardado e que sua boca se amaciava com muitos sorrisos. Ela era linda, Salmom teve de admitir. À primeira vista, ele achava aquela amabilidade muito irritante, pois o fazia lembrar-se muito bem de sua antiga profissão. Mas ele percebeu que não havia nada de prostituta naquela mulher. Seu comportamento era reservado, beirando a timidez. Suas atitudes, embora francas, se encaixariam entre qualquer moça israelita pela modéstia. Algumas vezes ele quase esquecia do passado dela e se via obrigado a puxar aquela informação da memória. Não era exatamente aquele detalhe que surpreenderia um homem.
Ele desviou os olhos e direcionou a atenção novamente para o círculo de homens à sua volta. Joa perdera seu jeito assombrado com o passar dos últimos dias e parecia ter assumido um interesse verdadeiro pelos preceitos do Senhor. Aliás, todos pareciam fazê-lo. Salmom, meu senhor?
Hum?
Por que o Senhor pede ofertas pelos pecados não intencionais? Quero dizer, como pode ser pecado se a pessoa nem sabe que está fazendo a coisa errada?
Esteja você fazendo o mal com ou sem intenção, isso terá consequências. Vamos dizer que eu quebre a sua perna de propósito porque não gosto de você. Minha raiva e minha falta de autocontrole te fizeram sentir muita dor. Agora, suponhamos que eu quebre sua perna acidentalmente. Seu osso vai doer menos porque foi um acidente? Você vai ficar melhor porque eu não tinha a intenção de te machucar? O mesmo acontece com o pecado. Reconhecendo ou não que o que você está fazendo é pecado, há algum prejuízo. Há consequências, e a sacralidade do Senhor requer justiça em relação a essas consequências. É necessário cobri-las. Mas, ao mesmo tempo, Ele é misericordioso para com os nossos erros. Então, o próprio Deus nos dá a chance de cobrir nossos pecados pelo sacrifício. Salmom mudou de posição para ficar mais confortável e, enquanto se mexia, ele viu que Raabe havia deixado as sobrinhas para ajudar a cunhada, mas ela estava se aproximando para ouvir a conversa deles. Salmom percebeu com o passar dos dias que qualquer assunto relacionado a Deus atraía a total atenção dela.
Notando que desviara a atenção de Salmom, Raabe pigarreou. Então Deus perdoa aqueles que pecam sem intenção de pecar? Salmom se virou em direção a ela. Com o devido sacrifício, sim.
Ela manteve os olhos baixos, escondendo sua expressão de Salmom, que fechou a mão ao lado do corpo. Ele achava que estava começando a odiar o jeito com o qual os olhos dela se desviavam dele, como se estivessem com medo. Mesmo com todas as suas objeções em relação a ela, ele não a tratara mal durante as últimas semanas. Ele a teria insultado? Ou humilhado? Por que ela sorria para Ezra, Hanani, Miriã e para qualquer outra criatura da Terra, mas para ele apenas reservava o distanciamento? Ele teve vontade de colocar a mão no queixo de Raabe e virar o rosto para ele. Pelo contrário, ele apertou a mão que estava fechada.
E os estrangeiros que vivem entre vocês?, perguntou ela com voz suave e tranquila.
O que tem eles?, resmungou Salmom. Ele não havia prestado atenção naquela pergunta. Em vez disso, seu pensamento ainda estava lutando contra o afastamento. O ressentimento surgiu dentro dele, irracional e cruel, enchendo sua voz com um tom mais grosseiro do que ele gostaria.
Ela percebeu aquele tom de voz e entendeu mal. De branca, sua pele ficou rosa, e Salmom percebeu tarde demais que ela estava apavorada. Perdão, meu senhor. Eu não quis interromper sua fala, disse ela, levantando-se para sair de perto. Antes mesmo de pensar, Salmom estendeu a mão e agarrou o pulso de Raabe, puxando-a para baixo.
Fique. Você não está interrompendo. Por um momento, ela tentou afastar a mão, mas ele foi mais rápido e a segurou com firmeza. Forçando sua voz para parecer gentil, Salmom pediu: Faça sua pergunta novamente.
Ela ficou paralisada. Salmom se deu conta de que ainda estava segurando o pulso dela e logo soltou. Com um movimento natural, ele recuou aumentando a distância entre eles.
Eu... eu só estava perguntando se os estrangeiros que vivem com vocês também podem ser perdoados se apresentarem suas ofertas.
Não se tratava de um ritual. Aquela pergunta não tinha nada a ver com sua adaptação em Israel, nem a ajudaria a evitar erros dispendiosos. Não era uma pergunta relacionada à prática exterior. Ela buscava mesmo agradar ao Senhor e encontrar o perdão e a redenção.
Deus daria esses presentes a uma mulher como ela? Ele saberia a resposta? O eco de um ensinamento distante surgiu nova mente em sua cabeça. O que Moisés falou sobre os estrangeiros?
Moisés uma vez disse enquanto falava sobre o Senhor: Vocês e os estrangeiros são os mesmos diante do Senhor: as mesmas leis e regulamentos se aplicarão tanto a vocês quanto aos estrangeiros que viverem convosco. Ele falou isso sobre oferecer sacrifícios.
Ele disse que os estrangeiros são os mesmos que vocês diante do Senhor? Em sua avidez, Raabe esqueceu-se de desviar-se dos olhos de Salmom. Aquela cortina fora retirada de seu rosto e ela olhou para ele sem aquele cuidado de sempre. Salmom respirou fundo; ele percebeu, talvez mais do que a própria Raabe, que aquela pergunta tinha a ver com o coração dela. Raabe se abriu e se revelou ao perguntar aquilo. Por trás daquela pergunta, havia a oferta frágil de si mesma e sua vontade de pertencer ao Senhor e a Israel, mesmo sabendo que correria o risco de ser rejeitada e expulsa.
Salmom perdeu tanto tempo se preocupando com a lealdade dela, pensando nos perigos da idolatria cananeia e imaginando quais seriam suas intenções. Como um cachorro furioso, ele estava latindo para a pessoa errada! Na verdade, tudo que Raabe queria era pertencer ao Senhor. Ela tinha sede e fome de Deus; seus preceitos lhe eram suficientes, e ela não estava buscando conhecimento. Ela queria aceitação. Ela queria o próprio Senhor.
Poderia alguém como ela pertencer ao Senhor? Deus a aceitaria, a receberia e cobriria seus pecados? Era ela a estrangeira em quem Ele pensava quando falou aquelas palavras por meio de Moisés? Salmom não queria dar garantias falsas ou fazer promessas vazias a ela. Em silêncio, ele pediu para Deus direcionar sua resposta.
Moisés disse essas palavras, sim, começou ele. Ele estava falando sobre sacrifícios e disse que os estrangeiros que viverem conosco devem seguir as mesmas regras. Eles devem oferecer os mesmos sacrifícios. Ele parou e pensou mais um pouco por alguns minutos antes de continuar. Vocês devem se lembrar de que, para Israel, os sacrifícios não são rituais. Eles se valem de coisas reais. Os sacrifícios são tanto o reconhecimento de que estamos errados quanto o preço do nosso perdão. Portanto, se Deus pede para algum estrangeiro oferecer-Lhe um sacrifício, Ele não está pedindo o cumprimento de uma lei ritualística. Deus não pediria um sacrifício se não estivesse disposto a derramar Seu perdão e a conceder Sua aceitação em troca. Salmom parou por mais um momento e fitou a areia que revolvia. É estranho; eu nunca havia pensado nisso antes.
Raabe olhou como se estivesse cheia de perguntas para fazer. Salmom viu que o desejo pelas respostas se confundia com algo mais, algo mais simples. Seria medo? Ela engoliu em seco e não disse nada, recostando-se novamente onde estava. A frustração e o alívio brigavam dentro dele. Com uma força que mal compreendia, ele queria destruir aquela barreira e sentir mais uma vez a entrega e a confiança de Raabe. Mesmo assim, ele sabia que algumas perguntas que ela estava querendo fazer o deixariam confuso. O Senhor me perdoará pela minha vida de adultério? Deus perdoará o meu pai por ele ter me obrigado a virar prostituta? Ele perdoará minha irmã e o marido dela por terem sacrificado seu filho a Moloque? Nós poderemos recomeçar, teremos uma nova vida?
Salmom coçou a nuca com a mão calejada por usar a espada tantas vezes. Qual seria a resposta para aqueles enigmas? Havia imposições para todos que pecaram, e sérias consequências para cada um deles. Deus os perdoaria? Ele daria uma segunda chance àquela família?
Miriã escolheu aquele momento incômodo para se aproximar e se juntar a ele. Ela ficara falando com a mãe de Raabe durante aquela hora, e Salmom notou que havia manchas escuras ao redor dos olhos da irmã. Ela levantara cedo, antes dele, naquela manhã, e já tinha cozinhado e cuidado dos doentes muitas horas antes de ir com ele visitar Raabe e a família. A exaustão estava estampada em seu rosto. Salmom pensou, sentindo-se um tanto culpado, que deveria ter percebido aquilo antes. Erguendo-se com um movimento fluido, ele a fez levantar.
Vamos. É hora de voltar para casa. Ele se virou para os homens antes de partir. Amanhã irei falar com Josué sobre a chegada de vocês no nosso acampamento. Acho que todos já estão prontos. Depois, conduzindo sua irmã à frente, ele a empurrou com delicadeza antes que as expressões de alegria e gratidão da família começassem a irritá-lo.
A caminhada de volta para casa começou silenciosa. Aparentemente Miriã estava cansada demais para falar, e Salmom ainda estava especulando sobre as possíveis perguntas de Raabe.
Ela ama o Senhor, não ama?, perguntou Miriã em meio ao silêncio. Quero dizer, ela tem um desejo verdadeiro que fica cada vez maior e mais intenso. Não se vê esse tipo de fé toda hora.
Hum?
Raabe. Eu ouvi uma parte da sua conversa com ela. Hum.
Meu simpático irmão. Estou falando sério, Salmom. Você se lembra daquele dia em que eles queimaram as roupas? Eu não te contei o que Raabe falou para Izzie naquele dia. Quando eu expliquei para Izzie que ela não poderia ficar com o manto no nosso acampamento, Raabe disse que Izzie deveria abrir mão do manto apenas por causa do Senhor. Não faça pelas regras ou por causa de Israel, disse ela. Se fizer por Ele, você se alegrará. Se fizer pelas regras, você acabará se ressentindo. A sabedoria de Raabe me impressionou. Mesmo sem entender ao certo os mandamentos básicos, ela já sabe a diferença entre atuação e adoração. Raabe entendeu que fazer uma oferta sincera para o Senhor traz alegria, enquanto fazer algo para corresponder às expectativas humanas só pode acabar em sofrimento.
Ela é... uma mulher diferente.
É isso que faz você ir tantas vezes ao acampamento? O quê?
É isso mesmo, Salmom. Você poderia ter mandado qualquer outro para fazer isso. Qualquer um de seus homens poderia ensinar tudo a eles. Mesmo assim, com muita frequência, você escolheu fazer isso por si só. Duas semanas atrás, você estava arrancando os cabelos com tanta irritação porque Josué os colocou sob seu comando. Agora, você mal consegue ficar longe deles.
Eu queria sondar o caráter deles pessoalmente, protestou Salmom.
Miriã torceu o nariz, mas mostrou sabedoria suficiente para ficar calada. Salmom mexeu a boca com irritação. As palavras dela estavam certas até demais, e ele já tinha perdido a conta de quantas vezes brigara consigo mesmo falando coisas como a que Miriã tinha acabado de falar. Todas as manhãs, ele falava para si mesmo que tinha coisas melhores para fazer na vida, e repetia isso enquanto seus pés o levavam involuntariamente para o acampamento de Raabe. Ele se convenceu de que aquelas visitas estavam relacionadas com os vários problemas da união entre uma família inimiga e Israel. As possíveis armadilhas do plano desatinado de Josué deixariam qualquer jovem de cabelos brancos. A possibilidade de haver ressentimento, ódio, idolatria pérfida, imoralidade, discórdia e uma gama de outras mazelas pairava sobre aquela família de Jericó como uma nuvem negra. Salmom estava quase se convencendo de que os visitava somente para assegurar que nenhum daqueles perigos se tornaria real.
O único problema nessa convicção sensata tinha um nome. Raabe. Ele a afastava muitas vezes do pensamento por segurança, mas seus olhos se fixavam nela independentemente de sua vontade. Embora a atração física pela cananeia o atormentasse, isso não era nada se comparado à sua crescente fascinação por ela como pessoa. Salmom havia descoberto que Raabe tinha uma mente brilhante. Inteligente e habilidosa, inúmeras vezes ela parecia estar muito à frente de todos os membros da família. Ela entendia as ramificações de cada decisão com uma exatidão que ele não podia deixar de admirar. Mas, acima de tudo, a fé de Raabe atraía Salmom. Ela despertara um desejo muito antigo da parte dele.
Salmom se casou ainda muito jovem. Ele conhecia sua Anna desde a infância e, embora ela tenha sido escolhida pelos seus pais, ele se dispôs a casar-se com prazer. Nos primeiros anos de casamento, ele descobrira como era a bondade de uma esposa leal, e soube como era ter a companhia de uma mulher paciente e atenciosa. Mas, no fundo de seu coração, ele queria mais. Anna acreditava no Senhor e seguia Seus preceitos, mas não era fervorosa. Ela não conversava sobre Ele com o marido e não parecia feliz com nenhum novo passo na jornada da fé. Quando ele tentava tocar no assunto, ela evitava. Salmom gostaria de poder tratar sobre os mistérios de Deus com sua esposa e de compartilhar com ela aquele desejo precioso e sagrado de sua alma. Seu casamento, mesmo sendo agradável e afetuoso, carecia do fogo daquela grande paixão.
Apesar do fato de Anna ter falecido há muitos anos, Salmom nunca se casou novamente porque ele se lembrava daquela esterilidade e a temia. Ele queria mais do que tinha com Anna, mas se sentia desleal apenas ao pensar nisso, como se estivesse acusando Anna de ter uma fé morna. Que culpa ela teria, afinal?
Em Raabe, Salmom teve um vislumbre de uma mente apaixonada e inteligente, e da fome pelo Senhor que ele tanto desejava. Mas, apesar dos seus muitos dons, ela era totalmente inadequada. Suas origens, isso sem falar no passado maculado, faziam dela uma mulher imprópria para qualquer homem hebreu, ainda mais para um líder de Israel - o filho de Naassom, antigo líder da tribo de Judá. Não mesmo! Eles eram simplesmente incompatíveis.
Mas, mesmo assim, ela o atraía...
Salmom havia pensado em todos os possíveis riscos que Israel correria por causa de Raabe e de sua família. No entanto, aquela possibilidade nunca lhe ocorrera: a ironia de que ele mesmo seria o alvo de uma atração tão inconveniente. Salmom decidiu com firmeza que se afastaria deles no dia seguinte. Se Miriã estava começando a notar o que acontecia em seu coração, era porque já estava mais do que na hora de colocar um ponto final naquela história. Ele chutou uma pedra enquanto caminhava com Miriã, mas sem querer seu gesto fez surgir uma chuva de areia. Os ventos fizeram a areia voar na boca de Miriã, que estava levemente aberta, entrando também no nariz.
Ecaaaa!, exclamou ela cuspindo os grânulos. O que você está fazendo? Travando uma guerra contra a areia?
Perdão. Ele não estava em guerra contra a areia. Ele guerreava consigo mesmo.
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Josué, acho que Raabe e sua família estão prontos para viver conosco no acampamento. Salmom sentou-se sozinho com Josué em um pequeno monte. A grama crescia firme em volta deles no solo rochoso e se ondulavam por causa dos ventos.
Josué deu um leve sorriso e rapidamente o tirou do rosto antes de se virar para seu pupilo. Mas ele não o fez rápido o bastante, e Salmom viu. Estou feliz por saber disso. Então, você não tem mais objeções?
Salmom mexeu os lábios. Eu não diria tanto. Apenas estou satisfeito por ver que a fé deles é verdadeira e por saber que eles querem o bem-estar de Israel.
Josué suspirou. Isso é muito generoso da sua parte. A fé da mulher já é conhecida pela metade do acampamento. Na verdade, eu gostaria de conhecê-la. Por que você não a traz até mim amanhã?
Vou pedir para Hanani fazer isso.
Não, não. Traga você. Eu gostaria que você também estivesse presente.
Salmom quase não pôde evitar e revirou os olhos. Claro, Josué, disse ele com um sorriso sem graça.
Capítulo Onze
Mais uma vez, na manhã seguinte, Salmom caminhava pelo trajeto já conhecido até o acampamento de Jericó. Pelo menos daquela vez era por causa de Josué. Uma vez lá, ele evitou ao máximo encontrar-se com Raabe falando primeiramente com seus irmãos e seu pai.
Vocês podem arrumar suas coisas e ir conosco para o acampamento de Israel essa tarde. Sei onde há uma tenda que pode suprir suas necessidades, e a prepararei para quando vocês chegarem. Depois do almoço, mandarei alguns dos meus homens virem para ajudar a carregar suas coisas.
Ele fez gestos com a cabeça enquanto os homens agradeciam, e a efusão daquele entusiasmo peculiar o fazia sentir-se desconfortável. Um sentimento muito parecido com culpa o dominou, e ocorreu a ele que, devido ao seu comportamento para com o povo de origem daquela gente, ele merecia mais seu ressentimento que sua gratidão. Com o passar do tempo, ele aprendeu a tratá-los com respeito, e a cada dia ele abandonava ainda mais sua posição defensiva. Mesmo assim, Salmom não dava sinais de acolhimento nem de amizade.
Ele afastou aquele pensamento e, sem conseguir mais evitar sua verdadeira tarefa, se virou para procurar por Raabe. Ela estava do outro lado do acampamento, ajoelhada perto da fogueira. Ele foi lentamente em direção a ela, temendo aproximar-se e desejando sua aproximação. Aquele paradoxo de emoções fez seu coração bater mais forte.
Assim que se aproximou dela, ele ficou de pé ao lado dela. Os olhos de Raabe se arregalaram com aquela surpresa, e houve uma sombra de medo, ele imaginava, antes de ela desviar o olhar. Raabe, disse ele fazendo um gesto.
Bom dia, meu senhor.
Sem cumprimentá-la, ele falou: Josué quer conhecê-la. A mim?
Sim, você, Raabe. Ela não se moveu. Agora, se você puder. Agora?
Se você vai ficar repetindo tudo que eu digo, essa conversa vai demorar mais do que eu imaginava.
Mas por que ele quer me conhecer? Eu fiz algo errado?
Salmom se agachou apoiando-se nos calcanhares até que seu rosto ficasse na mesma altura que o dela. Ele a analisou por um momento, prestando muita atenção à reação dela. Seus lábios tremiam e ela os mordeu para fazê-los parar. Raabe apertou os dedos até eles ficarem brancos, e o medo dominou seus olhos cor de mel. Salmom teve vontade de envolvê-la no conforto de seus braços até que todo aquele medo se dissipasse. Para impedir a si mesmo de fazer essa tolice impensada, ele pôs as mãos em direção às costas. Olha, ele quer te conhecer, e é só isso; talvez ele queira te agradecer. Não há nada com o que se preocupar. Na verdade, eu pedi para sua família se mudar para o acampamento hoje à tarde. Permanentemente. Alguns dos meus homens virão até aqui buscá-los.
Hoje à tarde? Ela colocou a mão na boca por um momento. Eu sei, eu sei. Estou repetindo suas palavras. Mas é que parece um sonho. Nós vamos mesmo para Israel?
Hoje mesmo.
Ela riu, fazendo um som agudo cheio de alívio e alegria. Salmom, que há apenas duas semanas lutou com unhas e dentes para mantê-la fora de Israel, estava sorrindo ali, ao lado dela, desejando causar-lhe alegria por mais vezes.
Se vou conhecer Josué, é melhor eu me trocar. Também preciso de uma sacola, já que vamos nos mudar.
Deixe suas coisas com sua família. Com certeza eles podem cuidar disso na sua ausência. Ele olhou para ela com olhos velados. Você pode se trocar, se quiser, afirmou Salmom, mas já está bom desse jeito.
Raabe passou a mão trêmula pelo seu vestido de linho. É melhor vestir algo mais adequado. Não vou demorar, disse ela e se levantou. Raabe estava ajoelhada por algum tempo e, quando levantou, sentiu-se tonta por um momento, cambaleando um pouco. Salmom estendeu a mão e seu reflexo preparado funcionou antes que a razão o contivesse. Por um momento de tensão, enquanto eles se tocavam e estavam quase inclinados um em direção ao outro, Salmom segurou o braço de Raabe. Sua pele parecia macia, atraente. Com espontaneidade, ele sentiu um golpe irresistível do desejo com aquele simples toque. Ele sentiu raiva de suas reações àquela mulher e, irracionalmente, também contra ela, por esta ser a causa de tanta revolta emocional. Ele se afastou dela enquanto a soltava e deu um passo atrás por precaução. Sua pele ficou da cor de uma romã. Eu... eu não vou demorar, repetiu ela e correu.
Você não vai demorar o bastante, resmungou Salmom com voz baixa depois que Raabe já não podia mais escutá-lo. Ele passou a palma da mão pela túnica como se estivesse tentando apagar aquele toque de sua memória. Era culpa de Josué. Ele deixaria Raabe na porta do grande líder de Israel, e faria questão de cumprir o que lhe fora pedido. Josué que lidasse com ela. Ele arrumaria uma grande tenda para a família e procuraria uma que fosse o mais longe possível da sua na tribo de Judá. Se tomasse cuidado, talvez ele a visse apenas uma vez por mês. Aquele era um grande plano.
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Raabe achou que, mesmo com a segurança de Salmom, o manto que ela vestia estava amarrotado e um pouco sujo. A falta de água no minúsculo acampamento mostrava que a preciosa provisão que eles receberam de Israel era usada apenas para beber, fazer comida e para as necessidades mais básicas. Lavar roupa era um luxo que eles não tinham há muitos dias. Mas, mesmo assim, Raabe teve a preocupação de guardar um manto limpo para quando chegasse o dia de eles irem a Israel.
Durante as últimas semanas em Jericó, antes de o exército de Israel se instalar no lado de fora dos muros, Raabe decidiu vender grande parte de seus mantos, véus e sarongues finos de seda. Na noite em que prometeu a Deus que mudaria de vida, tudo aquilo se tornou inútil para ela. No lugar deles, ela comprou alguns tecidos resistentes e neutros, com os quais fez alguns mantos de boa qualidade, mas com formas simples. Baseando-se pelas vestes de Miriã, Raabe estava feliz por ter se precavido. Se Miriã fosse como as outras mulheres de Israel, as novas peças de roupa de Raabe seriam consideradas luxuosas, mas aceitáveis.
Ela se lavou com alegria, usando um pano e uma vasilha de água morna antes de colocar sua roupa limpa de linho. Seus cabelos pendiam em uma trança até as costas, e ela não teve tempo de mexer nele. Vasculhando uma sacola, encontrou um pequeno pote de água de rosas e a passou nos cabelos. Na mesma hora, ela se arrependeu. Josué se lembraria de seu passado ao sentir aquele cheiro? Usar perfume seria considerado um tipo imoral de luxúria entre as mulheres de Israel? Com uma velocidade frenética, passou o pano umedecido em seu couro cabeludo até machucar. Descartando o pano, ela pegou uma faixa longa e a jogou sobre a cabeça. Raabe sabia que um possível atraso deixaria Salmom com um humor péssimo. Um humor pior que de costume, pensou ela.
Ele parecia não ter muita paciência. Quando ela se sentiu tonta, ele a afastou como se ela fosse a personificação do pecado, ou como se ela fosse uma ofensa a ele e aos céus. Raabe suspirou odiando aquele desespero por conquistar a aprovação dele - e odiando a maneira fácil com a qual ele a afetava com suas menores atitudes.
Ele mal olhou em sua direção quando ela saiu por trás da cortina provisória. Sem dar uma palavra, Salmom começou a andar e Raabe precisou dar o seu melhor para segui-lo. As pernas dele eram muito mais compridas do que as dela, e Raabe teve de correr a fim de acompanhá-lo. Se ele percebeu a situação dela, pareceu não se importar.
Daqui até Israel é longe?, ela se aventurou a perguntar. Não.
Mais alguns minutos se passaram. Sob o sol do meio-dia, ela estava bufando como uma chaminé, mas ainda assim a agitação de sua mente era, de longe, seu maior desconforto. Você conhece bem o Josué?, perguntou ela. A cada passo, ela ficava mais apavorada com o fato de que conheceria o líder de Israel. E se ele não gostasse dela? E se, depois de conhecê-la, ele mudasse de ideia e não os deixasse ficar?
Salmom reduziu o ritmo dos passos. Eu o conheço desde que nasci.
Ele é... um homem bom?
Ele é o melhor de todos. Ele olhou para Raabe por um instante, mas depois desviou o olhar. Por que você está com medo?
Ela encolheu os ombros envergonhada demais para falar sobre suas dúvidas interiores. Para Raabe, ela mesma parecia uma criança que precisava de afirmação.
Por quê?, ele perguntou. Diga.
Em momentos como aquele, era fácil entender o motivo pelo qual ele liderava tantos homens. A força da personalidade de Salmom poderia ser tão persuasiva quanto uma carruagem passando por cima do corpo, pensou Raabe. Ela, pelo menos, não conseguia encontrar os recursos necessários para resistir a ele. Talvez Josué mude de ideia depois que me conhecer, disse ela com instabilidade na voz.
E por que ele faria isso?
Ela sentiu que estava quase chorando. Quanto mais perto eles chegavam de Israel, mais certa ela ficava de que Josué não gostaria dela. Seus passos começaram a ficar pesados até que ela parou de andar. Talvez isso seja um erro.
Salmom parou alguns cúbitos à frente dela. Ele hesitou, com um dos pés para a frente e o outro se enterrando na areia, como se ele não conseguisse decidir se a abandonaria ou se voltaria. Ele deu um suspiro abafado e se virou. Vamos! Não é um erro.
Ela se negou com a cabeça. Josué não entende a corrupção das nossas vidas, pois, se realmente entendesse, ele jamais permitiria que nos uníssemos a vocês.
Ele entende melhor do que você imagina, Raabe. Ele ainda quer aceitá-los.
Ela se sentou na areia e enterrou a cabeça entre os braços. Para sua vergonha, ela não conseguiu controlar as lágrimas. Logo diante de Salmom e de tantas outras pessoas. Ela sentiu a respiração dele em sua cabeça antes de ver que ele se ajoelhara ao lado dela.
Calma, está tudo bem, sussurrou ele. Pela primeira vez, ela percebeu nenhum tom de ironia ou irritação em sua voz. De forma estranha, a simpatia dele só a fez chorar ainda mais. Ele levantou a mão dela com gentileza e a envolveu com a sua. Aquele toque foi puro, seguro. Aquele gesto a chocou. Há quanto tempo nenhum homem a tocara com tanta pureza? Na segurança de sua presença, o fardo das últimas semanas saía dela por meio de uma torrente de lágrimas silenciosas. Em todo o povo de Israel, a última pessoa que ela escolheria para confortá-la seria Salmom. Mas ela não podia verter aquelas lágrimas na frente de sua família porque eles encontravam nela a força e o apoio. Eles precisavam do suporte dela; ela tinha de ser uma âncora para eles naquele momento de incertezas.
Perdoe-me, disse ela com esforço depois de verter o que parecia ser a última lágrima de seus olhos. Não sei por que sou tão emotiva.
Ele soltou a mão dela e se sentou. Você tem sido corajosa por muito tempo, mas sua força tem limites; é só isso. Mas você não precisa ter medo de Josué. Venha! Vamos e veja com seus próprios olhos.
Raabe fez que sim com a cabeça e se levantou. A areia cobriu suas novas vestes e as lágrimas mancharam seu rosto.
Você está horrível, afirmou Salmom com um sorriso gentil, sem demonstrar ironia.
Eu sei. Ela limpou o rosto com o lenço que estava na cabeça e tentou ao máximo tirar a areia de suas roupas. Salmom esperou sem reclamar. Ele nem mesmo bateu o pé ou mexeu os dedos expressando impaciência. Depois que os dois voltaram a caminhar, ele andou mais devagar e dava passos mais curtos.
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Josué recebeu Raabe em sua tenda com um sorriso enorme que não a acalmou. O coração dela batia no peito com uma força tão incomum que ela achou que todos pudessem ouvi-lo. Raabe o cortejou com cuidado, fazendo as mesmas reverências que faria a um rei. Discretamente, ela analisou Josué tentando descobrir como ele era. Josué era admirável, embora não fosse nada bonito. Seu nariz pontudo, seus lábios carnudos e seus olhos grandes testemunhavam um caráter decidido que não tolerava muito os opositores. Aquele não era o tipo de homem para se ter como inimigo, como ela já havia descoberto. Mas ela suspeitava que sua amizade era tão amável quanto sua inimizade era cruel.
Esperei ansiosamente para te conhecer, Raabe, disse ele. Mas antes mesmo que ele pudesse falar mais, um jovem entrou de repente na tenda; ele estava coberto de poeira com suas roupas retorcidas e desgrenhadas. Desconcertada, Raabe chegou para o lado. Aquele acontecimento seria normal, aquele acesso rude ao líder de Israel? O invasor parecia estar sem fôlego, como se tivesse corrido uma distância considerável, e suas frases saíam confusas de acordo com sua respiração irregular.
Josué! Ó Josué.
Elão? Quais são as notícias de Ai?
Fomos derrotados, Josué! Fomos derrotados pelos homens de Ai! Eles nos perseguiram da cidade até as pedreiras e nos encurralaram. Trinta e seis dos nossos homens foram assassinados.
Um silêncio pesado invadiu a tenda de Josué. Raabe conhecia Ai; era uma nação insignificante cujo rei dominava mais ou menos doze mil pessoas. Como seria possível os homens que conquistaram Ogue e Jericó serem derrotados por Ai? Aquilo não fazia sentido.
Salmom e Josué ficaram rodeando o homem chamado Elão. O silêncio opressivo havia se transformado em uma torrente de perguntas que apenas guerreiros entenderiam. Josué deveria ter se esquecido da presença de Raabe, porque seus olhos se arregalaram quando ele a viu tensa e desconfortável no canto. Saia daqui, Salmom, ordenou ele. Mas volte imediatamente. Traga os presbíteros a mim. Vamos nos apresentar diante do Senhor e pedir Seu direcionamento.
Salmom estava pálido. Ele agarrou o braço de Raabe e correu para fora da tenda. Preciso encontrar Miriã, disse ele.
Ela tropeçou ao lado dele, atingida pela urgência que o dominara. Aquela notícia era horrenda. Salmom parou de repente enquanto Raabe, tomada por aquela pressa, continuou andando. Ela quase machucou o braço com isso. Fazendo uma cara estranha, passou a mão pela pele avermelhada do braço. Mesmo com aquela preocupação perturbadora em sua cabeça, ele notou o gesto dela e perguntou. Eu machuquei você?
Não foi nada.
Desculpe. Ele passou as duas mãos pelos cabelos escuros, fazendo-os ficarem ondulados, como se estivessem ao vento. Raabe, preciso te pedir uma coisa. Você tem que me prometer que não vai falar sobre o que ouviu com ninguém, nem mesmo com Miriã.
Mas é claro que não. Eu faria o povo perder a confiança ou se desviar do caminho certo se eles soubessem dessa notícia.
Exatamente, isso mesmo, ele parecia aliviado. Então, posso confiar que você guardará para si as notícias que ouviu de Ai, não posso?
Sim, Salmom.
Isso é bom. Ele olhou nos olhos dela por um momento. Apesar da tensão e da preocupação estampadas em seus traços, algo parecido com aprovação se refletia no rosto dele. Agora, eu vou encontrar Miriã e deixar você com ela. Não sei se vou demorar, mas não terei tempo para pensar na compra da tenda de sua família hoje.
Não se preocupe conosco. Dormir algumas noites a mais sob as estrelas não nos fará mal algum. Miriã pode nos mostrar onde devemos ficar acampados essa noite?
Sim, ela pode. Peça para ela chamar Ezra para ajudar. Ele tem uma boa visão sobre esses assuntos mais práticos e, além do mais, gosta da sua família.
Ele começou a andar com passos desenfreados novamente, e Raabe teve de correr mais uma vez para acompanhá-lo. Andar pelo meio das tendas de Israel com aqueles passos arriscados não era uma tarefa das mais fáceis. O horizonte estava salpicado de tendas, as pessoas andando de um lado para o outro, as crianças brincando, as fogueiras em chamas e o gado preso em pastagens improvisadas. Nascida na cidade e acostumada com as ruas e becos, ela estava praticamente perdida em meio àquela organização, mas Salmom passava pelos obstáculos com uma familiaridade muito grande. Ele vivera em acampamentos como esses desde que nasceu, lembrou-se ela.
Eles andaram naquele ritmo por mais ou menos dez minutos, quando, de repente, ele parou diante de uma tenda espaçosa cor de açafrão. A forma decisiva com a qual ele entrou na tenda sugeriu que era ali que Salmom morava.
Miriã?
Dentro da tenda, vários tecidos de linho estrategicamente pendurados dividiam a área em quartos privados. Miriã saiu de um daqueles. O que vocês dois estão fazendo aqui?
Miriã, Josué precisa tratar de assuntos urgentes comigo. Raabe explicará o que ela precisa. Eu tenho que ir. Ele saiu antes mesmo que Miriã pudesse fazer sua primeira pergunta.
O que o fez ficar agitado assim? Ah, você sabe. Assuntos de Josué.
Miriã riu. Você não está aqui nem há duas horas e já está falando como ele. Você já bebeu ou comeu alguma coisa? Claro que não. Como se esse meu irmão pensaria em algo tão simples como um copo de água enquanto as tribos precisam de sua atenção. Venha até aqui e sente-se. Você parece cansada.
Raabe se sentou perto de uma pilha de travesseiros de plumas, agradecendo por sentir aquela suavidade. Um suspiro cheio de felicidade escapou de seus lábios. Depois de duas semanas vivendo em isolamento, aquela tenda simples parecia ser uma casa para ela. Quantas almofadas, disse ela em voz baixa.
Você deve estar dolorida por ter dormido no chão apenas com um cobertor.
Eu agradeço por estar viva. Não tenho do que reclamar. Nada nos faz ser mais gratos do que perder tudo. Conheço
um pouco essa sensação também. Miriã deu um sorriso triste.
Nós nascemos em meio à perda, toda a minha geração. Isso nos fez ser gratos por qualquer coisa simples.
Raabe pensou, não pela primeira vez, que Miriã era uma mulher extraordinária. Todas as mulheres de Israel são tão sábias quanto você?, perguntou ela em um impulso.
Ó céus, não. Sou uma joia inestimável.
As duas riram juntas. Então, que assuntos urgentes de Josué meu irmão está correndo tanto para tratar? Pelo seu rosto, ele parecia estar um pouco aflito.
Raabe sentiu-se um tanto culpada quando se deu conta de que tinha esquecido a grande tribulação de Israel com seus trinta e seis homens mortos enquanto ela se divertia entre travesseiros de plumas e com a inteligência de uma jovem. Acho que é uma espécie de reunião. De qualquer maneira, acredito que Salmom ficará ocupado pelo restante do dia. Ele pediu para você e Ezra ajudarem minha família a encontrar um lugar para acampar aqui por pelo menos hoje à noite. Ele não terá tempo para pensar na compra de nossa tenda.
Isso não é do feitio de Salmom. O que será que está acontecendo?
Raabe encolheu os ombros. Ele nos dirá quando for a hora de sabermos. Mas, enquanto isso, eu gostaria de beber a água que você me prometeu. Se devo correr atrás de outro companheiro de pernas compridas novamente, preciso de algo para molhar minha garganta.
Miriã sorriu enquanto levantava, tirava a tampa de um grande cântaro de argila e colocava, com uma concha, a água em um copo para Raabe. Ezra tem pernas longas. Mais uma vez, você sabe disso muito bem, pois teve que aguentar o peso dele enquanto ele descia o muro inteiro de Jericó. Quando Ezra nos falou sobre isso pela primeira vez, algumas pessoas fizeram piadas sobre o suposto tamanho da mulher cananeia. Espere até eles te verem pessoalmente. A propósito, como você conseguiu fazer isso? Ele deve ter quase o dobro do seu tamanho.
Eu acho que Deus me deu forças. De qualquer forma, eu não tinha outra escolha. Se o tivesse deixado cair, ele quebraria o pescoço.
O que teria sido uma pena. Ele tem um pescoço tão bonito. Raabe percebeu que ela ruborizou, mas achou melhor não comentar. Miriã mudou de assunto rapidamente. Quando a sua família vai chegar?
Salmom falou algo sobre hoje à tarde. Ele pediu que dois de seus homens fossem até lá buscá-los. Acho que não vai demorar muito. Quando eu os deixei, já estavam arrumando tudo.
Isso nos dá mais tempo para prepararmos algumas coisas.
Vamos encontrar Ezra e colocá-lo para trabalhar.
Miriã e Raabe encontraram Ezra e eles passaram algumas horas escolhendo um local adequado na tribo de Judá para que a família de Raabe se acomodasse. Ezra disse que, quando comprassem as tendas, eles poderiam montá-la no mesmo lugar. Enquanto não havia uma, ele as ajudou a fazer uma fogueira, levou água e amarrou cordas entre algumas palmeiras, que, se cobertas com lençóis, originariam espaços mais reservados. Eles estavam perto de algumas outras tendas, e Miriã apresentou Raabe às mulheres que cuidavam de cada uma. Raabe percebeu que as mulheres com as quais se encontrou lhe pareceram muito reservadas. Ela não recebeu sorriso algum e ninguém parecia estar disposto a fazer amizade. Mesmo que nenhuma delas tenha sido grosseira, elas também não abraçaram a nova companheira. Por dentro, Raabe estava muito apreensiva.
Não se preocupe, Raabe, sussurrou Miriã depois de elas saírem da última tenda. Elas ouviram falar muito bem a seu respeito. Josué disse que você é uma mulher de fé quando conversou com o povo sobre a derrota de Jericó. Com o tempo, todos se acostumarão e te aceitarão, assim como Josué o fez.
Raabe deu o que parecia ser um sorriso e engoliu uma sensação nauseante. Se ela fizera nenhuma amizade com mulheres quando vivia entre o próprio povo durante os últimos dez anos, como faria isso entre as mulheres de Israel? Como poderia conquistar a aceitação de alguém?
Capítulo Doze
A família de Raabe chegou antes de o sol se pôr. Ela explicou que Salmom estava envolvido em um assunto muito importante. Eu estava lá quando Josué determinou uma missão a ele. Salmom não terá tempo para comprar nossa tenda por alguns dias. Ele se preocupou por não ter cumprido a promessa que nos fez, mas eu lhe assegurei que nós vamos nos adaptar enquanto isso.
Se uma situação urgente impediu que Salmom comprasse nossa tenda, não temos que nos preocupar. Ele merece a nossa confiança, afirmou Joa com um gesto. Raabe analisou seu irmão mais novo e percebeu que houve uma inversão. Durante as duas últimas semanas, Joa precisou muitas vezes de segurança; mas sua reação diante daquele assunto provou que uma mudança profunda acontecera em seu coração.
Logo depois, Hanani apareceu mostrando sua jovialidade tranquila de sempre. Cercada pelos cuidados de Ezra, Hanani e Miriã, Raabe quase acreditou que os outros israelitas a aceitariam com o passar do tempo. Juntos, eles passaram algumas horas arrumando seus pertences e se acostumando com o novo lar. O som das risadas encheu aquele acampamento modesto à medida que eles esvaziavam as bolsas, pensavam em como arrumariam a tenda e onde os animais ficariam.
Ezra mostrou a configuração estrutural de Israel para eles, e Raabe percebeu que não se tratava de um labirinto confuso. Tudo era feito de acordo com códigos muito precisos.
No meio do acampamento, ficam o tabernáculo e o pátio, explicou ele. As doze tribos de Israel ficarão ao redor dessa estrutura central, cada uma seguindo uma determinada ordem.
Eu estava pensando nisso hoje enquanto andava, observou Raabe. Como essa divisão acontece?
Você notaria se estivesse mais atenta, interrompeu Miriã. Uma cerca branca feita de cortinas de linho penduradas em alguns pilares por cerca de toda a estrutura. A cerca existe para assegurar que ninguém toque acidentalmente no tabernáculo ou nos objetos sagrados do pátio.
É muito longe daqui?
Fica a mais ou menos uns quinze minutos de caminhada a oeste, respondeu Ezra. Judá é a maior tribo de Israel, com mais de setenta mil homens. Por isso, nosso terreno de acampamento é enorme. Issacar é nosso vizinho a norte, e Zebulom acampa ao sul.
A família de Raabe começou a fazer perguntas sobre as outras tribos, e todos ficaram fascinados com suas histórias. Raabe ouviu parcialmente, pois voltou a pensar no que acontecera em Ai, e sua cabeça lutava contra as possíveis consequências dessa derrota. Por que o Senhor permitiria que Seu povo fosse destruído? Com o acontecido, eles ficariam vulneráveis a outros ataques de Canaã. Ao mostrar aquele primeiro sinal de fraqueza, eles se revelaram destrutíveis.
Mais tarde, durante aquela noite, à medida que o som do acampamento enorme que os cercava silenciava-se, a noite foi interrompida repentinamente pelo som de uma trombeta. Raabe quase caiu com aquele barulho inesperado. Hanani olhou para Ezra com um rosto confuso.
Esse é o sinal para nos reunirmos. Devemos logo ir até Josué. Joa deu um passo à frente. Nós também?
Sim, todos. Toda Israel deve estar presente, e agora vocês são parte de nós.
Os lábios de Joa se abriram em um sorriso. Isso costuma acontecer?, perguntou ele. Essas reuniões tão tarde durante a noite?
Ezra franziu a testa. Não, nem sempre. É melhor irmos até lá para ver o que aconteceu.
Quando eles chegaram, milhares de pessoas já estavam reunidas. Josué ficou em um monte para que todos pudessem ouvi-lo. Mas isso não bastava para que todos ouvissem, Deus havia abençoado Israel com uma população numerosa. Para assegurar que todos o escutariam, havia homens posicionados em lugares estratégicos para repetir as palavras proferidas por Josué. Ninguém ficaria sem ouvir o que ele tinha a dizer.
O povo já estava acostumando com reuniões públicas, embora raramente acontecessem à noite. Ninguém se empurrava nem se acotovelava. Todos apresentavam um autocontrole admirável, e pareciam atentos aqueles que estavam à sua volta.
Raabe e sua família ficaram perto o suficiente para ouvir a voz de Josué e, depois de esperarem por alguns minutos para que todos se sentassem, ele começou a falar. Tenho notícias muito sérias. Vocês sabem que nós enviamos apenas uma parte de nossos homens para derrotar Ai porque aquela nação é insignificante. Porém, hoje, pela manhã, as notícias sobre a batalha chegaram ao nosso acampamento; fomos derrotados. A reação foi imediata. O medo tomou conta das pessoas e um grande lamento irrompeu. Aquele povo havia lutado batalhas demais para entender as consequências de tal perda. Antes que o terror se instalasse em seus corações, Josué levantou as mãos.
Ouçam o que vou dizer, pois tenho mais notícias. Assim que soube desse acontecimento, os presbíteros e eu nos curvamos diante do Senhor e, desde então, buscamos conhecer a Sua vontade; e Ele a revelou a nós. O acampamento inteiro prendeu a respiração enquanto Josué fez uma pausa e olhou para além de todos. O Senhor me disse: Levante-se! Por que estás prostrado assim sobre o seu rosto? Israel pecou. A razão pela qual não pudemos conquistar a vitória é que um de nós roubou o que pertence ao Senhor e mentiu sobre o assunto. Quando entramos em Jericó, nos foi dito que tudo deveria ser destruído, exceto os itens que deveriam ser oferecidos ao Senhor, mas alguém infringiu esta ordem. Alguém roubou o que pertence a Deus por direito. Amanhã, o Senhor nos mostrará quem foi. Estou muito triste pelas mortes, pois as consequências dessa desobediência foram grandes. Perdemos trinta e seis dos nossos melhores guerreiros, vidas que poderiam ter sido preservadas se não tivéssemos traído a vontade de Deus. Certamente, amanhã mais vidas serão perdidas, pois nós não temos sacrifícios sagrados o bastante para cobrir esse pecado tão grave. Mais sangue será derramado, e fui invadido pela dor devido a essas perdas desnecessárias.
Voltem para suas tendas hoje à noite e santifiquem-se em preparação para amanhã. Pela manhã, vocês apresentarão suas tribos, uma a uma, até que Deus aponte o culpado. Só então o Senhor nos dará mais forças para conquistarmos nossos inimigos outra vez.
Em um primeiro momento, o silêncio dominou as pessoas enquanto elas seguiam para as tendas. Mas, com o tempo, o silêncio foi se transformando em sussurros de milhares de línguas. As pessoas se perguntavam quem teria feito aquilo. De qual tribo seria? De qual clã? Todos asseguravam uns aos outros que certamente não tinham culpa.
Joa disse: Não é de se admirar que Salmom não tivesse tempo para comprar nossa tenda. Ele deve ter se envolvido com isso pela maior parte do dia.
Enquanto Raabe e sua família voltavam para o acampamento, eles perceberam que os olhares de seus vizinhos eram menos amigáveis do que antes. Ela supôs que seria natural o fato de os israelitas chegarem a conclusões rápidas e desconfiar do povo de Jericó. Eles tiveram a oportunidade e motivo para isso. Mas, mesmo assim, aquela era uma situação difícil de engolir. Aquelas acusações subentendidas a magoavam. Era a primeira noite de Raabe e ela já fora rotulada como ladra.
Senhor, Tu sabes que somos inocentes. Fizemos o melhor possível para honrar-Te, mas ainda não é o bastante. Algum dia agradaremos a esse povo? Poderemos nos justificar diante de seus olhos?
Como um vento sussurrante, um pensamento chegou à sua mente perturbada. Vocês precisam apenas agradar a Mim e estarei satisfeito. Deixem sua justificação em Minhas mãos. Eu chamei vocês e serei fiel. Uma paz inexplicável e maravilhosa caiu sobre ela. Deus os defenderia, ela não precisava se preocupar. Ela não precisava apontar a hipocrisia e a maldade de seus vizinhos para sentir-se melhor. Ela não precisaria humilhá-los a fim de parecer maior do que eles. Deus cuidaria de tudo e Ele era fiel. Raabe sorriu enquanto se acomodava na proteção da paz que Ele havia derramado sobre ela. Levantando a cabeça, ela olhou para cima, com os olhos brilhando, em uma alegria que nem mesmo a precariedade da situação pôde roubar, e viu que estava olhando direto para os olhos de Salmom. Os traços do rosto dele suavizaram quando seu olhar se encontrou com o dela, e ele se agachou diante de Raabe.
Eu estava preocupado com você. Sua voz estava rouca e baixa.
Comigo?
Com todos vocês, quero dizer. Eu presumo que seus vizinhos não estão sendo tão acolhedores, não é?
Ela sorriu. Não posso negar isso. Se olhares matassem, você estaria cavando sepulturas agora.
Isso vai se resolver amanhã. Eu sei que vocês não fariam nada desse tipo. Eles se envergonharão de si mesmos amanhã, no cair da noite.
Salmom acreditava que eles eram inocentes. Não era preciso explicações nem argumentos; ele acreditava. Uma sensação de acolhimento encheu o coração de Raabe. Ela sabia que algo congelado estava começando a derreter. Sua boca parecia seca e ela engoliu convulsivamente. Tudo bem, disse ela, embora sua frase tenha saído em um sussurro. Deus me concedeu Sua paz.
Vi isso quando você me olhou. É mais do que paz; Ele te concedeu a alegria.
Raabe respondeu com a cabeça. Foi uma sensação mais do que maravilhosa. Ele me protegeu de tal forma que o peso dos meus medos, a raiva e a necessidade de vingança pareceram evaporar. Eu preciso apenas agradá-Lo. Não é maravilhoso?
Ele falou com você?
De certa forma, sim. Não foi em voz alta, nem sequer audível. Foi como um sussurro em meu interior.
Os olhos de Salmom se arregalaram. Talvez Seu Espírito tenha sido derramado por um instante.
Isso é comum?
Salmom mexeu a cabeça. Você foi mais abençoada do que imagina.
Raabe não conseguiu evitar e riu como uma boba. Nesse exato momento, eu me sinto mais abençoada do que imagino. É maravilhoso.
Ele se levantou com um movimento elegante. É melhor eu voltar. Você não parece precisar da minha ajuda.
O que vai acontecer amanhã?
Salmom perdeu a expressão do rosto. O que for necessário. Raabe não dormiu aquela noite. Envolta na proteção das palavras confortantes de Deus, ela internalizou ainda mais a sensação de Sua presença. A satisfação a envolvia. De vez em quando, o rosto de Salmom aparecia em sua mente enquanto ele sussurrava: Eu estava preocupado com você.
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Na manhã seguinte, o sol logo apareceu, como se estivesse impaciente para acabar com a angústia daquele julgamento. Pouco tempo depois, Raabe viu que Hanani se aproximava do acampamento improvisado.
Salmom mandou que eu viesse buscá-los. Ele imaginou que talvez, por serem novos aqui, vocês se sentiriam um pouco confusos com o dia de hoje, disse ele com uma expressão gentil.
Seu comportamento carecia da animação usual. O peso da notícia da noite passada certamente recaíra sobre ele como uma grande pedra, e o coração de Raabe se entristeceu com isso.
Eu estava mesmo pensativo, afirmou Inri. Eu estava preocupado pensando no que deveríamos fazer.
Devemos nos reunir em famílias, e cada família fica com o seu clã. Os clãs se reúnem nas tribos. Então, vocês devem ficar na tribo de Judá, cujo líder é Calebe. Josué chamará primeiramente os líderes de todas as tribos para ver em qual tribo está o culpado.
Nós seguiremos Salmom?
Sim, fiquem perto de mim e da minha família. Nós somos do mesmo clã.
Mais uma vez, Raabe se impressionou com a ordem extraordinária com a qual Israel se reunia em torno de Josué. Depois de fazer algumas orações e de proferir algumas palavras de consagração, Josué chamou os doze líderes das tribos. Eles se enfileiraram solenemente diante de Josué, um após o outro. Cada um deles dava um passo à frente até que fosse liberado por um aceno de Josué. Em seguida, Calebe se aproximou com uma postura extremamente reta e com um rosto horrível. Josué olhou para aquele velho amigo e companheiro por alguns momentos. Judá, disse ele com uma voz que parecia envelhecida. Deus me mostrou que o culpado está na tribo de Judá.
Vozes altas se levantaram em meio à multidão. Raabe percebeu que as famílias mais próximas a ela e à sua família lançaram-lhes olhares mortais. Cachorros imundos, gritou uma voz em meio a eles. Saindo não se sabe de onde, uma pequena pedra surgiu pelo ar. Antes que Raabe pudesse reagir, a pedra acertou seu rosto e caiu no chão. Instintivamente, ela levou a mão à ferida e se espantou ao ver que havia sangue em seus dedos. Pelo canto dos olhos, ela viu que Hanani correu em direção a ela. Ele a protegeu colocando-se na frente e gritou algo que ela não conseguiu entender, mas a fúria vingativa das pessoas não foi apaziguada. Raabe se deu conta, em um rompante de descrença, que muitas pessoas ao seu redor se curvavam para pegar mais perdas.
Parem!, o grito de Salmom invadiu a confusão de pessoas em volta deles. O que vocês acham que estão fazendo? Ele parou perto de Raabe e seu rosto estava coberto por uma expressão descrente. Aquele era o povo de Salmom, pensou ela. Ele provavelmente conhecia a todos pelo nome. Vocês ficaram loucos?, gritou ele novamente.
Salmom, foram eles, afirmou um homem ainda com uma pedra na mão. Josué disse que o culpado é da tribo de Judá, você ouviu, e esses cananeus foram os que chegaram por último em nossa tribo. Você sabe que foram eles!
Eu sei apenas uma coisa, Jaquim. Cabe a Deus determinar quem foi o culpado. Agora, a menos que Ele tenha revelado algo para você que ainda não foi revelado a Josué, é melhor você largar esta pedra. Todos vocês!
Salmom encarou a todos com uma ferocidade não muito comum. Por alguns segundos, nada aconteceu. Salmom deu um passo à frente. Um simples passo, Raabe pensou, mas que, mesmo assim, carregava uma intimidação tão poderosa que fez Jaquim largar a pedra, deixando-a cair no chão. Os outros que os cercavam fizeram o mesmo.
Salmom se voltou para a família de Raabe. Venham comigo. Vocês devem ficar perto de mim até que o verdadeiro culpado seja revelado. Até isso acontecer, vocês não ficarão seguros. Mesmo com o momento de choque e de dor que tragara Raabe, ela observou que o rosto de Salmom estava alterado enquanto ele controlava a própria raiva. Conforme andava, ele a conduzia de forma que ela estivesse protegida entre ele e seu irmão Joa.
Você se machucou?, perguntou ele sem olhar para ela. Não foi nada. Com algum esforço, ela tentou manter a voz firme.
Salmom bufou com força, mas não disse nada. Quando eles chegaram onde sua família estava, Salmom se virou para Raabe. Deixe-me ver, disse ele.
Não foi nada. Foi apenas um corte pequeno, disse ela, tentando desesperadamente desviar a atenção de si mesma. A vergonha por aquele julgamento em público a fez sentir-se muito enjoada.
Deixe-me ver, Salmom falou cada palavra por entre os dentes. Raabe achou que ele estava com muita raiva pelos problemas que ela o causou. Salmom fora contra a entrada deles em Israel desde o primeiro instante, dizendo que eles despertariam sentimentos ruins por causa do mau comportamento. Raabe supunha que aquilo estava mesmo acontecendo, apesar de não ter sido culpa dela nem de seus familiares.
Sentindo-se tensa por causa da vergonha, pelo orgulho ferido e pela injustiça do ressentimento de Salmom, ela pensou em ir embora. Ficar seria uma infantilidade, além de também ser perigoso. Conformada, ela virou o rosto para ele, que examinou a ferida com cuidado. Seu toque foi gentil e suave como uma pluma. Mesmo assim, ela recuava por causa da dor.
Eu sinto muito, disse Salmom com uma voz contida enquanto tirava a mão do rosto dela. Já parou de sangrar, mas o machucado está sujo. Quando chegarmos na tenda, Miriã vai passar um pouco de unguento para que não infeccione.
Você me chamou?, perguntou Miriã enquanto se juntava a eles. Só então, ela viu a cena diante de si - o rosto inchado de Raabe, as feições tensas da família dela e a ira parcialmente contida de Salmom. O que aconteceu?, perguntou ela.
Alguém acertou uma pedra em Raabe quando Josué anunciou que o ladrão é da tribo de Judá, explicou Salmom. Todos pegaram pedras para atirar na família inteira, imagine só.
Não foi nossa culpa, exclamou Raabe sem conseguir se conter. Ela se sentia mal só de pensar que Salmom estava ressentido, achando-a culpada.
O que você quer dizer com isso?, Salmom se virou para ela com os olhos arregalados em espanto. Quem disse que foi culpa de vocês?
Você! Você estava com raiva!
É claro que estou com raiva! Meu povo cometeu um erro terrível, e eles poderiam ter te machucado seriamente se eu não tivesse impedido. Minha vontade é chutar alguns deles agora mesmo! Ele parou de falar e, em seguida, perguntou com uma voz mais baixa: Por que você pensou que eu estava com raiva de você?
Raabe afastou o rosto. Porque você não teria esse problema se eu não estivesse aqui.
Salmom passou a mão no rosto dela. Não sou irracional a ponto de ficar contra você em um momento como esse. Você foi a maior prejudicada, e acha que eu seria louco de te culpar por isso?, perguntou ele apontando para bochecha dela inchada.
O alívio tomou conta de Raabe. Sua irmã Izzie foi até ela e a abraçou. Raabe se agarrou a ela por um momento, tentando evitar o olhar firme de Salmom, que a observava com uma atenção focada. Ao pensar em outras coisas menores, Raabe sabia que os diferentes clãs de Israel ainda estavam se apresentando a Josué e sendo liberados, um após o outro. Logo, chegou a vez dos zeraítas. Com um braço levantado, Josué os deteve. Raabe sabia que aquele gesto, mesmo que ainda não identificasse o ladrão, isentaria a si mesma e toda sua família de qualquer transgressão. Eles não tinham ligação alguma com os zeraítas. Depois daquilo, as coisas aconteceram mais rapidamente. As famílias pertencentes ao clã dos zeraítas se aproximaram e a família de Zabdi foi detida. Por fim, o filho de Zabdi, Acã, foi acusado.
Acã confessou sua culpa logo que começaram a fazer-lhe as perguntas, pois sabia que negar seria inútil. Vertendo muitas lágrimas, Acã revelou: É verdade. Eu pequei contra o Senhor. Enterrados na tenda, encontraram seus tesouros proibidos: ouro, prata e um lindo manto da Babilônia.
Josué colocou a mão no ombro de Acã. Filho, valeu a pena sujar seu coração por esses tesouros inúteis? Veja quantos problemas desnecessários você ocasionou para si mesmo e para todos que te amam, disse ele, sentando-se em seguida com a cabeça apoiada nas mãos. Após alguns minutos de silêncio, ele levantou a cabeça dizendo: Toda sua vida também será desperdiçada porque você mentiu e desobedeceu ao Senhor; e continuaria mentindo se isso não fosse descoberto. Você vendeu sua vida por um valor muito baixo.
Raabe, confusa pelas palavras de Josué, olhou para Salmom, sabendo que ele compreenderia o julgamento implícito de Josué. Salmom levantou a cabeça e olhou para o céu distraidamente. Miriã?
Sim?
Miriã, você sabe o que vai acontecer?
Miriã afirmou com um gesto e com uma expressão terrível. Os filhos e filhas dele deveriam saber, pois os itens roubados estavam justamente enterrados em sua tenda, mas, mesmo assim, ninguém disse nada. Sem dúvida, eles também vão pagar.
Oh, Salmom!
Você não precisa ficar. Por que não vai para a tenda? Raabe, você pode ir com Miriã. Deixe-a cuidar do seu ferimento. Está inchando e vai ficar dolorido. Talvez sua família queira se juntar a vocês duas.
Raabe mordeu os lábios. O que vai acontecer agora? A sentença de morte. Por apedrejamento.
Oh! Ela colocou a mão na bochecha inchada, e já podia dizer que sabia o que era aquilo por experiência própria. Em Canaã, os ladrões também são condenados à morte.
Geralmente os ladrões que vivem entre nós não são punidos com a morte, mas Acã teve a maldade de roubar o que era de Deus. Isso não mostra apenas uma ganância exorbitante, mas também o total desprezo pelo Senhor. Ou ele achou que poderia escapar disso impunemente? De qualquer forma, é por isso que o castigo será tão severo. Este não foi um roubo qualquer. Ele se virou para olhar para os cidadãos de Jericó por um momento. Que primeiro dia agitado para vocês. Por favor, sintam-se livres para ir. Vocês podem esperar na minha tenda. Ficarei mais satisfeito assim do que os vendo aqui fora nesse sol.
O alívio mais uma vez invadiu Raabe com a ideia de ir embora. Ela estava começando a tremer como consequência do ataque horrível contra sua vida. Seu rosto doía sem parar, e se não fosse pelo abraço reconfortante de Izzie, ela já teria desmaiado de fraqueza. O ar mais fresco da tenda de Salmom, com todas aquelas almofadas e com seu ambiente sereno, parecia um oásis. Com a maior parte de Israel fora do acampamento, haveria uma paz e uma tranquilidade inigualáveis. Obrigada. Eu gostaria de ir. Ela olhou para os membros de sua família para ver o que queriam. Unânimes, as mulheres se reuniram e decidiram voltar, enquanto os homens preferiram ver o destino de Acã juntamente com Salmom.
Miriã, que parecia aliviada por não ter de presenciar o destino de Acã, guiou as mulheres pelos caminhos do confuso labirinto que era o acampamento de Israel. Elas andaram em silêncio, cada uma refletindo. Chegando na tenda, Miriã cuidou do corte de Raabe, limpando-o de forma delicada antes de passar o unguento que ela mesma fizera. Por muito pouco não precisou dar ponto. Do jeito que está, a marca vai desaparecer com o tempo, disse ela. Eu te darei um pouco deste unguento para você passar todos os dias durante a próxima semana. Você viu qual daqueles infelizes fez isso com você?
Não. Tudo aconteceu muito rápido.
Naquela hora, todas as mulheres estavam completamente exaustas, e Miriã sugeriu que elas ficassem para fazer uma refeição. As cunhadas e a mãe de Raabe não aceitaram, dizendo que precisavam voltar para o acampamento para ficar com a sobrinha mais velha de Raabe, que estava cuidando das crianças mais novas durante a manhã. Mas Raabe e Izzie ficaram com Miriã e, depois de comerem bolos de cevada e uma sopa de legumes, ajudaram a arrumar tudo.
Raabe, você ainda está sentindo dor? Você parece aflita, perguntou Miriã enquanto elas colocavam a louça em um cesto coberto.
Não. Não sinto mais dor. Obrigada pelo seu remédio milagroso. Acho que estou ansiosa. Você acha que, agora que fomos declarados inocentes, nossos vizinhos irão se acalmar e parar de desconfiar de nós?
Eu espero que sim. Certamente eles sentirão remorso pelo comportamento desta manhã. Gostaria que nós orássemos juntas pela sua preocupação?
Raabe nunca tinha orado em voz alta com ninguém, e a ideia de começar com alguém experiente como Miriã era um tanto desafiadora. Ela tinha medo de parecer boba ou ignorante. Por outro lado, poder orar com uma amiga era uma alegria que ela não estava disposta a desperdiçar. Eu não sei como devo orar. Talvez eu pareça estranha, admitiu ela.
Eu não sei se Deus se atenta às estranhezas, mas duvido que Ele tenha os mesmos padrões que nós. Salmom uma vez me disse que o Senhor falava com Moisés cara a cara, assim como um homem conversa com o amigo. Então, eu oro como me foi ensinado: eu falo as palavras abençoadoras que meus pais me ensinaram, mas eu também oro com o coração, como se estivesse falando com um amigo. Eu memorizei algumas orações dos grandes líderes do nosso povo - as palavras que Moisés falou para o Senhor ou a canção de Miriã. Posso até te ensinar isso. Porém, acho que o mais importante é saber que Deus nos ouve. Seu coração se alegra quando nos voltamos para Ele com sinceridade, sem artificialidades.
Raabe desejou sentir aquele tipo de intimidade que as palavras de Miriã evocavam, e Izzie também queria aprender as orações. Então, as três se posicionaram respeitosamente e Miriã começou a dar as bênçãos tradicionais: Bendito és Tu, Ó Senhor, nosso Deus, Rei da eternidade. Ela colocou também algumas palavras de Moisés em suas orações: Mostra-me o Teu caminho para que eu possa conhecer-Te e permanecer em Teu favor. Raabe notou que Miriã começou a fazer as próprias orações; suas palavras nasciam humildes e sinceras, frases verdadeiras que surgiam sem timidez. Ela se sentiu encorajada a orar da mesma forma, relembrando algumas frases da Lei e algumas bênçãos que aprendeu no tempo em que estava fora do acampamento de Israel. Izzie logo se juntou a elas. As três deixaram de notar a passagem do tempo à medida que entravam em uma atmosfera agradável que parecia mais real do que qualquer outra em que elas normalmente viviam.
Quando terminaram, Miriã pegou uma harpa já desgastada e ensinou-lhes algumas canções de Moisés e Miriã. Raabe nunca tinha se sentido tão perto de Deus, ou nunca tinha vivido uma amizade tão verdadeira.
Capítulo Treze
Salmom entrou em sua tenda seguido por Josué, que estava pálido e aparentemente exausto. Eles ouviram as mulheres cantando antes de seus olhos as virem. Os dois deixaram os sapatos fora da tenda e entraram sem fazer som algum. Elas continuaram cantando, sem perceber que tinham plateia. No mesmo instante, o olhar de Salmom logo procurou por Raabe. Ele observou seu rosto abaixado querendo certificar-se de que ela estava bem. Junto ao seu nariz fino, um corte feio e parcialmente fechado rasgava sua pele branca. Ele se lembrou do momento em que viu a pedra voar, sabendo que ela iria ao encontro do alvo sem que ele pudesse fazer nada. Ele correu, afastou as pessoas do caminho, ciente de que seria tarde demais para protegê-la daquele míssil. Ele ainda se agitava quando pensava nisso, e o que mais o incomodava era o fato de ter sido tão afetado por tal acontecimento.
No ambiente silencioso da tenda, a tensão começou a abandoná-lo e Salmom reconheceu a canção familiar entoada pelas mulheres, esquecendo-se por um momento do ataque à Raabe, e até mesmo da própria Raabe. Como se tivessem feito um acordo implícito, nenhum dos dois homens falou. Ambos permaneceram em silêncio, envolvidos pela sacralidade simples do que testemunhavam.
Mas, pouco tempo depois, os dois não conseguiram mais resistir e uniram suas vozes graves à voz das mulheres.
Em Teu amor inabalável Tu guiarás
O povo que redimiste.
A canção alegre foi interrompida. As mulheres passaram a reclamar; os homens começaram a pedir perdão.
Perdoem-nos, minhas filhas, por termos interrompido, disse Josué acabando com a confusão. Entrar aqui foi como sair de uma tempestade de areia e chegar a um jardim tranquilo. Salmom e eu agradecemos pela sua linda canção. Ela revigorou meu coração, e eu precisava mesmo disso. Afirmou Salmom fazendo um gesto com a cabeça.
Meu senhor, a irmã dele o cumprimentou, prostrando-se diante de Josué. O senhor honra a mim e ao meu irmão visitando nossa tenda. Permita-me trazer algo para que o senhor possa comer. Josué esticou o braço graciosamente para levantar Miriã.
Para irritação de Salmom, Raabe se levantou. Izzie e eu voltaremos para o nosso acampamento. Perdoem nossa intromissão.
Josué fez um gesto com a mão. De maneira nenhuma. Foi por causa de você que eu vim até aqui.
De mim?
Tome cuidado, Josué, interrompeu Salmom. Ela tem mania de repetir tudo o que a outra pessoa fala quando está nervosa.
E por que ela está nervosa? Venha, filha, sente-se perto de mim.
Salmom mexeu a boca quando viu Raabe engolir em seco. Com passos hesitantes, ela foi até o patriarca antes de se ajoelhar ao lado dele. Ele percebeu que as mãos dela estavam escondidas em uma dobra do vestido, para que ninguém visse que elas estavam tremendo. Salmom franziu as sobrancelhas, sem entender apreensão extrema dela diante de Josué. Ou talvez dele mesmo. Era como se ela sempre esperasse que eles a humilhassem ou expulsassem. Por que aquela mulher não entendia de uma vez por todas que ela já estava salva?
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Raabe tentou aquietar as batidas aceleradas de seu coração. Não fazia sentido um homem da estatura de Josué perturbar-se por causa dela.
Salmom me contou o que aconteceu na manhã de hoje. Josué começou a falar. Então, eu quis ver com meus próprios olhos se você está melhor.
O senhor não deveria ter se preocupado, meu senhor. Como vê, estou bem.
O que eu vejo é a marca da insolência do meu povo em seu lindo rosto, afirmou Josué como se o ar de sua respiração estivesse pesado. Este foi o dia mais abominável de todos. Acã está morto e enterrado no vale, e o povo já chama o lugar de Vale de Acor devido aos problemas que enfrentamos com tudo isso. Fico furioso ao pensar que meu povo ainda nos gerou mais problemas ao tentar apedrejar você. Por favor, Raabe, perdoe-nos por esta atitude preconceituosa e arrogante.
Raabe mexeu a cabeça. A desconfiança deles é compreensível. Horrível, mas compreensível. Espero que, com o passar do tempo, eles passem a acreditar em nós.
Farei o que estiver ao meu alcance por vocês. Posso prometer que mais ninguém levantará a mão contra você e sua família novamente. Talvez eles permaneçam frios e distantes por algum tempo, mas você deve abster-se disso até que passem a te conhecer melhor. Não dê espaço para o desânimo.
Obrigada, meu senhor, pela sua ajuda.
Não precisa me agradecer. Ele deu um sorriso enorme. Esse é apenas um direito seu. Você é uma das nossas agora, independentemente de como os filhos de Israel te tratarem.
Raabe olhou para baixo. Aquelas eram palavras muito gentis, e estavam dentre as mais gentis que ela ouvira em toda sua vida. Palavras de aceitação. Palavras de justificação. Josué estava a tratando como se realmente tivesse aceitado sua presença. Ele até se importava com seu bem-estar. Parecia impossível que um homem como ele - que ocupava uma posição tão elevada e com uma santidade também elevada - se disporia a prover suas necessidades. E lá estava ele, exausto pela noite sem dormir e assolado por um pesadelo na manhã seguinte, claramente para tranquilizá-la.
Talvez tenha sido por isso que ela não aceitou muito bem aquelas palavras. Raabe as ouviu e as entendeu. Mas no íntimo de seu ser, ela sabia que a decepção de Josué para com ela seria uma questão de tempo. Assim como todo mundo, ele viraria as costas quando realmente a conhecesse. Ela mordeu os lábios e franziu as sobrancelhas. Raabe sabia que sentiria mais amargura pela rejeição de Josué do que alegria por sua aceitação naquele momento. A rejeição seria mais real, verdadeira. Seus elogios pareciam vazios - irreais.
Josué, interpretando erradamente sua expressão, chamou Salmom e disse: Ela está exausta. Salmom, vá com Raabe e a irmã dela até o acampamento deles e verifique o comportamento dos vizinhos. Depois que jantar, vá até minha tenda e eu direi aos líderes o que devemos fazer em relação a Ai.
Eles se levantaram respeitosamente enquanto Josué se preparava para partir, mas ele não quis que ninguém o levasse até o lado de fora. A tenda pareceu encolher em sua ausência, e Salmom se voltou para Raabe perguntando: Você gostaria de descansar um pouco antes de partirmos?
Não, estou bem. E não é necessário que você nos acompanhe.
Izzie e eu podemos nos cuidar sozinhas.
Podem mesmo? Sem pensar, Salmom passou o dedo pelo rosto dela, evitando passar em cima da ferida pálida que marcou sua pele suave. Raabe estremeceu com aquele toque, e Salmom tirou o dedo, fechando-o na mão. Vou com vocês, disse ele, cerrando os dentes e fazendo Raabe perceber que o tinha irritado novamente. O que ela teria feito dessa vez?
Izzie, feliz e sem notar aquela mistura densa e lamentável de emoções, deu um sorriso alegre. Vocês foram bons conosco, e nos alegraremos com sua companhia.
O meio sorriso de Salmom estava cheio de ironia, como se fosse dado para Raabe. Tenho certeza de que é um sentimento mútuo.
Miriã empacotou alguns alimentos, bem como uma grande bola de queijo fresco e alguns pães, que ela insistiu para que Izzie e Raabe levassem. Vocês tiveram um dia difícil. Alguns mimos alegrarão vocês. Raabe estava cansada demais para negar, e Izzie estava alegre demais para pensar em fazê-lo.
Logo quando elas estavam indo embora, Miriã correu para dentro da tenda e saiu com uma almofada de plumas. Leve isso, Raabe. Você precisará de algo mais macio do que um cobertor na areia para apoiar o rosto essa noite.
Oh, não, isso eu não posso aceitar. Já comi sua comida no almoço e bebi de sua água. Estou levando o seu queijo e aceitei seu pão e suas provisões. Não posso aceitar mais nada.
Ah, por favor, leve essa almofada! Você não vai dormir na areia essa noite e ponto final, Salmom interferiu expressando seu aborrecimento em cada sílaba.
Mas...
Nem mais uma palavra. Nem um suspiro. Nem um ai. Chega de objeções. Entendido?
Salmom!, Miriã parecia chocada.
Isso também vale para você, minha irmã. Faremos uma caminhada tranquila e pacífica. Mais tarde, chamarei a atenção daqueles vizinhos, para, enfim, eu fazer minha caminhada tranquila e pacífica de volta.
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No dia seguinte, Raabe acordou agarrada à almofada de Miriã, cambaleante por causa de sonhos perturbadores. Seus sobrinhos, já muito bem acordados, gritavam pelo acampamento brincando de esconde-esconde. Ela se sentou e percebeu que seu rosto doía, sua cabeça palpitava e seu corpo sentia as consequências de dormir por tanto tempo em um local tão inadequado. Ela queria ficar sozinha e quieta. Em vez disso, um menino de quatro anos, uma menina de cinco e o primo deles, de oito, se jogaram em cima dela, insistindo para que a tia Raabe os escondesse embaixo do cobertor. Ela os puxou para perto dela e os colocou sob o cobertor. Eles riam com uma alegria contagiante, mexendo-se sem parar até se transformarem em um emaranhado de braços e pernas.
Não se mexa tanto, senão os outros encontrarão vocês, avisou ela aos sobrinhos. Na tentativa de se esconder melhor, um deles levantou um dos cotovelos e acertou o rosto de Raabe, muito perto da bochecha machucada.
Aaai! Sua cabeça latejava de tanta dor, e ela tirou o cobertor para se levantar. Raabe piscou algumas vezes para melhorar a visão e notou que Salmom estava diante dela, e seu rosto estava ofuscado pelo sol. Ela se deu conta de que o sol já estava bem alto, e já era tarde.
Pensei que você já teria levantado a essa hora, comentou ele. Hum.
Você não é de falar muito de manhã?
Não. Seus sobrinhos e sobrinhas começaram a se remexer impacientes. Primeiro um, depois o outro e em seguida o último saiu debaixo do cobertor e correu.
Os olhos de Salmom os seguiram com ternura. Mudando o foco para Raabe, ele disse: Você sempre leva tantas pessoas para dormir com você?
Chocada, ela olhou para ele com os olhos arregalados. De repente, ele ficou parado com o rosto congelado e a pele com uma cor avermelhada. Raabe percebeu que ele havia cometido uma gafe. Salmom falou sem pensar. Aquelas mesmas palavras, se faladas com sarcasmo ou com um propósito determinado, a teriam reduzido a quase nada. No entanto, naquela circunstância, elas deveriam soar engraçadas. Raabe colocou as mãos na boca, mas o riso escapou pelos cantos. Obrigada, disse ela.
Pelo quê? Salmom olhou como se ela tivesse entendido errado.
Por um instante você esqueceu o meu passado. Você nunca teria dito isso se lembrasse.
Ele franziu as sobrancelhas e recuou. Já providenciei sua tenda e vim avisar isso. Ela já está lá, alguns de meus homens me ajudaram a levá-la. Eles vão ficar para te mostrar onde vocês se alojarão. Seu pai e seus irmãos não estão aqui, por isso eu vim te avisar.
Para Salmom, ela estava gaguejando, e não abafando o riso. Uma onda de desolação a dominou enquanto ela se sentou, vendo que era o objeto para o qual Salmom evitava olhar. Ele pode até ter tido um lapso de memória em relação ao passado dela, mas claramente foi um erro que ele preferia não repetir. Ela ainda era Raabe, a prostituta cananeia que Josué colocou sob sua responsabilidade, e ele ainda era um dos maiores líderes de Israel, guerreiro de honra e influência. A lacuna entre eles nunca seria preenchida. Mas Raabe não conseguia entender o porquê de acontecimentos tão banais a magoarem tanto. Ela percebeu mais uma vez que sua cabeça estava doendo e colocou a mão nas têmporas.
Ela ficara deitada por muito tempo. Com um movimento estranho, Raabe se levantou, e foi dormir com as mesmas roupas do dia anterior, pois estava cansada demais para trocá-las. Naquele momento, ela estava de pé, decentemente vestida do pescoço aos pés, embora tivesse acabado de acordar e suas roupas estivessem amarrotadas. Com a mão suada, ela tentou esticar o tecido - o que não ajudou muito. Por estar olhando para os dedos dos pés, Salmom não poderia se sentir ofendido pela aparência de Raabe.
Ele teve problemas consideráveis para colocá-los em sua tenda em meio a um momento agitado e angustiante. E, em vez de Raabe se concentrar no que Salmom não podia dar a ela - respeito, admiração, aceitação verdadeira -, ela se concentrava no que ele oferecia. Ele era um homem generoso, prestativo, justo e protetor daquele grupo, mesmo que aquele não fosse seu grupo favorito. Obrigada pelos problemas que você enfrentou por nós, disse ela.
Salmom acenou com a cabeça, deu meia volta e foi embora.
Ela nunca tinha visto ninguém andar tão rápido.
Suspirando, ela se virou e viu os dois homens que o ajudaram de pé no meio do acampamento. Eles estavam distraídos conver-sando e perceberam sua presença. Ela olhou para a tenda com curiosidade. Gigantesca, a tenda espalhada pelo chão não permitia que ninguém avistasse onde era seu começo ou seu fim. Ela era feita de algum tipo de couro cru, forte o bastante para aguentar as chuvas e o calor do sol. Enorme e densa, provavelmente foi preciso que todos os três homens a carregassem. Nem com muita imaginação, ela poderia ser considerada elegante. Mas seria mais confortável do que dormir ao relento.
Raabe foi até os dois homens e se apresentou.
Nós já te conhecemos, disse o mais magro. Os dois eram muito mais jovens do que ela imaginava; tinham aproximadamente dezessete ou dezoito anos.
O segundo, com o corpo mais definido e com a barba começando a crescer, perguntou: é verdade que você aguentou sozinha o peso de Ezra para ele descer pelos muros de Jericó? Isso eu queria ver. Diga-me como você fez essa façanha. Vamos. Há uma pedra grande perto daqui e você pode fazer o mesmo que fez com ele.
Raabe levantou as mãos. Tem coisas que só acontecem uma vez.
Você não vai me mostrar sua força?
Não, a menos que o Senhor me conceda novamente. Aaah, disse o mais magro como se fosse o grande sábio de
Jerusalém.
Vocês provaram que têm muito mais força para suprir minha fraqueza ao carregarem essa tenda, afirmou ela.
Bom, Salmom nos ajudou um pouquinho, um deles respondeu com um murmúrio.
Então, qual é o nome de vocês? Os dois já sabem o meu. Sou Abel, respondeu o mais magro. E esse é o meu primo,
Adão.
Como você fez?
Como você fez aquilo?, perguntou Adão, confuso. Abel lhe deu uma cotovelada.
Ela está cumprimentando você, gênio.
Embora suas línguas tivessem a mesma origem e Raabe estivesse se acostumando bem a cada dia com os dialetos de Israel, ainda havia diferenças nos sotaques e expressões, o que tornava a comunicação mais interessante. Os hábitos também, embora houvesse pontos comuns em alguns momentos, geravam situações desafiadoras. Na maioria das vezes, os cidadãos de Jericó levavam a vida com maior formalidade do que os Israelitas. Outras vezes, no entanto, eles percebiam que os cananeus tinham modos mais permissivos do que os de Israel. Certa vez, quando Hanani e Miriã estavam no acampamento, o irmão de Raabe, Joa, liberou gases intestinais que causaram um barulho considerável. Para o povo de Jericó, aquele era um jeito aceitável de aliviar as tensões do corpo. Mas Raabe percebeu que os hebreus cobriram suas bocas com as mãos e ficaram vermelhos.
Fiz algo engraçado?, repreendeu Joa, como sempre sensível. Em resposta, Hanani mexeu a cabeça ficando ainda mais vermelho do que antes.
Foi esse barulhinho?, adivinhou Raabe. Os hebreus não fazem isso em público?
Isso o quê?, Hanani perguntou surpreso. Você chama isso de barulhinho? Ele olhou para Miriã e os dois se agacharam rindo.
O pobre Joa se ergueu com indignação e vergonha. Isso é perfeitamente aceitável de onde eu vim.
Ah, disso eu não tenho dúvidas, disse Miriã. É que nós... nunca ouvimos...
O quê? Vocês estão me dizendo que nunca ouviram esse barulho antes? É sério? As crianças de Israel devem fazer isso às vezes, irritou-se Joa.
Miriã enterrou o rosto nas mãos, e seu corpo inteiro se mexia. Hanani se pronunciou: Sim, sim, é claro que nós fazemos, embora façamos em circunstâncias mais reservadas. Acontece que nunca ouvimos isso perto de ninguém antes.
Alguém pigarreou, interrompendo os pensamentos de Raabe. Ela olhou para os jovens ajudantes que haviam levado a nova casa nas costas e deu um sorriso enorme para eles. Sim, eu quis cumprimentar você. Então, Salmom disse que vocês nos ajudariam a montar nossa tenda. Vocês sabem fazer isso? Ela teve sabedoria suficiente para não deixar escapar que eles pareciam muito novos até mesmo para amarrar as sandálias.
Sim. Nós as montamos e desmontamos milhares de vezes. Adão olhou em volta. É melhor vocês colocarem a entrada de sua tenda na direção norte nessa época do ano. Ficará mais fresco.
Abel mudava de posição a toda hora. Onde estão os homens daqui? Montar uma tenda requer músculos.
Eu não sei. Deixe-me descobrir. Raabe viu que Izzie estava fazendo um mingau atrás dela e foi até a irmã. Izzie, onde estão os homens?
Izzie mexeu mais uma vez o pote antes de se levantar e se firmar. Eles saíram logo cedo com Ezra. Ele queria mostrar algumas terras e pedir o conselho deles. Josué mal pode esperar para trabalhar na terra.
Bem, nossa tenda já chegou e precisamos deles para montá-la. Salmom mandou dois de seus companheiros para ajudar.
Izzie mordeu a boca pensativa. Acho que eles não vão voltar agora.
As duas irmãs foram até os rapazes e Raabe apresentou Izzie. Como vão vocês?, perguntou Izzie.
Adão sorriu para Abel. Estamos bem, é um prazer conhecê-la.
Meus irmãos foram com Ezra avaliar algumas terras. Não sei se eles voltarão agora, explicou Raabe.
Abel passou a mão pelo queixo liso. Ainda temos que pegar as varas, os ganchos e as argolas, e já que está perto do meio-dia, nós vamos almoçar antes de voltarmos. Talvez até lá eles já tenham voltado.
Ah, por favor, almocem conosco. Nós ficaríamos honrados se vocês ficassem, ofereceu Raabe.
Adão coçou a cabeça. Hum, almoçar? É, acho que tudo bem. Abel fez um aceno em sinal de desaprovação com a cabeça. Raabe estava tão feliz por retribuir um pouco de todos os favores que eles estavam recebendo que nem percebeu aquelas reações controversas.
Ela os fez sentar em um cobertor que havia colocado sob a sombra de uma das tendas vizinhas. Enquanto eles descansavam, as duas irmãs agiram depressa para fazer um almoço generoso. Raabe colocou algumas especiarias que havia trazido de Jericó para usar no mingau e Izzie derreteu parte do queijo de Miriã em cima do pão antes de servi-lo. Um dia antes, Raabe tinha usado os ingredientes da família para fazer bolo de uvas, e ela sabia que aquele bolo não quebrava nenhuma das regras rigorosas de Israel, que Miriã havia ensinado passo a passo na semana anterior. Elas colocaram a comida diante de seus convidados e se juntaram a eles para fazer a refeição. Depois de algumas mordidas hesitantes, Adão e Abel começaram a atacar a comida.
Isso é delicioso! Abel falou com a boca cheia de mingau e pão com queijo. Para um homem magro, ele até que comia muitíssimo bem. Eu comeria um barril inteiro disso. O que você colocou aqui?
Izzie e Raabe sorriram uma para a outra. Apenas especiarias. Um pouco de canela e mel nos bolos, com os pedaços cortados bem pequenos. Esse é o segredo, respondeu Raabe.
Vocês de Jericó cozinham muito bem mesmo, disse Adão também com a boca cheia. Raabe se lembrou de que a geração dele havia crescido alimentando-se de uma comida misteriosa chamada maná. Por mais que se parecessem bastante, eles não tinham se acostumado com o uso de especiarias ou com a arte de misturar ingredientes diferentes. Com alegria, ela percebeu que havia algumas coisas que conseguia fazer melhor do que as mulheres de Israel.
Capítulo Catorze
Os irmãos e o pai de Raabe ainda não haviam chegado quando Abel e Adão voltaram ao trabalho, lidando com o esforço de carregar vários pedaços grandes de madeira, usados como vigas. Eles decidiram que daria para começar o trabalho sozinhos e mandaram Raabe e Izzie se afastarem. Suspeitando que o trabalho fosse durar até a noite, Raabe chamou sua cunhada para que ela fizesse um jantar para aqueles dois novos companheiros.
Joa, Karem e Inri apareceram no acampamento na hora, e, se estavam cansados, se esqueceram disso assim que viram a tenda. Lá pelo fim da tarde, a tenda deles estava perfeitamente erguida, assemelhando-se a muitas outras ao redor. A família inteira insistiu para que Abel e Adão ficassem para jantar, e eles aceitaram mais rápido do que para a primeira refeição.
Todos comeram do lado de fora, aproveitando a brisa refrescante enquanto admiravam o novo lar. Em alguns momentos durante o jantar, Raabe notou que algumas mulheres rondavam seu acampamento, e um cordeiro de cor branca e pelos enrolados cambaleava entre elas. Raabe entendeu que talvez elas estivessem aborrecidas com o som da conversa e se levantou pedindo desculpas pelo excesso de barulho que estavam fazendo.
Uma delas se aproximou. Você deve ser a Raabe. Ezra falou muito de você. Sou a irmã dele, Abigail, e esta é Lia, cunhada de Hanani.
Sejam bem-vindas. Estou feliz por conhecê-las. Raabe fez uma pequena reverência diante delas. Por favor, entrem e se juntem a nós. Estamos fazendo uma refeição.
Não, não, obrigada. Nós viemos apenas para trazer isto. Abigail colocou uma pequena correia esfarrapada no pescoço do cordeiro. É um presente de nossas famílias por você ter salvado a vida dos nossos irmãos. Nós deveríamos ter vindo antes. Perdoe-nos pela negligência do nosso atraso. Depois de falar, ela olhou para baixo.
Um presente? Para mim? Mas não precisava. Eles salvaram nossas vidas assim como eu salvei a deles, e é uma alegria imensa para nós ter seus irmãos como amigos. Na verdade, eles nos ajudaram sem cessar. Se tivessem mesmo uma dívida, que não é o caso, eles já teriam pagado há muito tempo. E em dobro.
Abigail negou com a cabeça e entregou o cordeiro. Esses homens são tudo para nós, e lamentaríamos até o fim dos nossos dias se algo tivesse acontecido com eles. Somos nós quem estamos em dívida com você. Raabe salvou nossas vidas mais de uma vez, disseram eles. Ela tem mais fé que nossos pais e mães, declaram eles para qualquer um que quisesse ouvir. Eles te elogiam em todo lugar. Você foi boa com eles, Raabe, e você tem que nos deixar retribuir.
Raabe hesitou, odiando a ideia de aceitar um presente por algo que ela achava que não merecia. Mas, mesmo assim, ela não queria ofender a ninguém da família de Ezra e Hanani. Raabe decidiu que seria melhor ser humilde e aceitar do que correr o risco de fazer uma desfeita àquelas mulheres. Muito obrigada, vocês duas. Apreciamos o nosso primeiro cordeiro em nosso lar dentre o povo de Israel.
Tanto Abigail quanto Lia sorriram na mesma hora. Instintivamente, Raabe segurou a mão de Lia e a aproximou de si. Juntem-se a nós para jantar!
Venha, Abi. É a melhor comida que já provamos, afirmou Adão, perto da fogueira. Abigail franziu as sobrancelhas por um instante. Adão Ben Hosea, é você que está aí com essa boca cheia?
Estou aqui como você também deveria estar se fosse esperta, menina. Venha e sente-se. Você nunca provou nada igual.
Abigail cobriu a boca com a palma da mão e olhou para Raabe com olhos arregalados.
Raabe levantou as mãos fazendo um gesto de apaziguamento. A comida foi preparada de acordo com as leis de Israel. A irmã de Salmom, Miriã, nos ensinou.
Ah!
Junte-se a nós, por favor. Comam um pouco.
Lia foi primeiro, evitando o olhar acusador de Abigail. Ela se sentou perto de Abel, que prontamente mergulhou o pão em um dos potes e deu a ela. Abigail, que parecia um pouco mais velha do que os outros, encolheu os ombros e se juntou às pessoas. Raabe amarrou o cordeiro a uma das vigas da tenda, afagou a cabeça dele e foi se juntar aos seus convidados. Ela sentiu que Abigail havia se reunido aos outros apenas para dar-lhes atenção. No entanto, com o passar do tempo, ela percebeu que Abigail abandonou sua posição defensiva até ficar conversando e rindo livremente, como as outras pessoas, mergulhando o pão dentro dos potes sem parar.
Raabe observou a cena diante de seus olhos e ficou impressionada pelo caráter milagroso dela. Em apenas um dia, Deus concedera a eles um novo lar e novos amigos. A esperança encheu seu peito, como uma folha da primavera, esbanjando vida. Ela riu por causa de algo que Karem falou, mesmo sem ouvir as palavras. Raabe se deu conta de que estava feliz. Desde quando ela não sentia uma alegria despreocupada, livre dos sentimentos de culpa ou medo?
Você parece bem melhor do que estava hoje de manhã, disse uma voz em seu ouvido.
Ela deu um pulo e virou a cabeça, ficando a uma curta distância do rosto de Salmom. Por um instante, olhou para os olhos dele sem conseguir se mexer. Ela falou rapidamente. Você me assustou.
Assustei?
Estamos todos jantando. Temos convidados e tudo mais.
Quer comer conosco? Temos bastante comida.
Salmom desviou o olhar e observou a reunião. Não. Obrigado. Tenho pouco tempo. Só vim me despedir. As meninas também devem voltar para suas tendas. Hanani e Ezra vão conosco amanhã.
Despedir? Para onde vocês vão? Mas Raabe já sabia a resposta.
Para Ai. Temos que terminar o que começamos. Alguns homens irão hoje à noite, e o restante irá antes de o sol nascer.
Por um instante, o sentimento frágil de felicidade desaparecera. Pensar em Salmom indo para a batalha, enfrentando flechas, espadas, adagas e homens violentos a fez sentir-se infeliz. A imagem do corpo de Hamish sem cabeça na frente de sua antiga estalagem surgiu diante de seus olhos. Raabe tinha pesadelos com aquela cena, e ainda conseguia sentir o cheiro forte de sangue, vendo aquela mosca saindo daquela boca pavorosamente aberta. Poderia aquilo acontecer com Salmom? O pensamento de nunca mais ver Salmom fez nascer uma sensação de ferida em seu estômago, uma ferida que se recusava a sarar. Ela não se sentiu tão chocada porque ele estava indo para a guerra, porém, aquele fato lhe parecia muito ruim.
Ela se virou e levantou, com muito medo de Salmom ver em sua expressão algo que revelasse o seu temor crescente. Mas, enquanto Raabe se levantava, ele pegou a mão dela e a puxou novamente para baixo.
Seus olhos escuros se refletiram nos dela. O quê? Não vai se despedir? E eu andei tudo isso.
Raabe engoliu em seco. Ela temia falar alguma coisa e acabar irrompendo em lágrimas, ou temia falar palavras que revelassem o estado de seu coração. Ela olhou para ele tão calada quanto seu ovo cordeiro, sem conseguir desviar o olhar. Até logo, disse ela. Foi a única coisa que conseguiu dizer antes de livrar sua mão da dele e de entrar correndo na nova tenda de sua família.
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Enquanto Salmom se despedia, ressentido por sua própria necessidade de procurar pela mulher cananeia antes de ir para a batalha, ele estava ciente de que trinta mil dos melhores guerreiros de Israel estavam dando início a uma grande emboscada em Ai. Sob a escuridão da noite, eles abriram sulcos em uma montanha alta, longe do alcance dos vigias de Ai e de Betel, mas perto o bastante para observar as duas cidades. Ali, eles se esconderiam em silêncio e sem serem vistos, esperando por longas horas até que a batalha começasse.
Com o raiar da primeira luz, Josué mandou um segundo exército, muito menor do que o primeiro, para Ai. Era deste que Salmom fazia parte, e havia nada de diferente em relação à sua marcha. Os homens se aproximaram da cidade e se instalaram a norte de Ai, sob a luz do sol. Diferentemente dos homens da missão de emboscada, que cobriram os pés em lonas apertadas para abafar o som da marcha, Salmom e seus guerreiros usavam sandálias com sola de madeira. Em meio à sujeira da região rural, os pés marchando pareciam batidas bem ritmadas em um tambor. O coração de Salmom batia naquele ritmo enquanto ele se sentia parte de tudo aquilo - uma pequena engrenagem de um grande aríete. Ele estava pronto. Ele estava preparado para mostrar o que o Senhor podia fazer aos homens de Ai. Como um muro móvel, o pequeno exército marchava atrás de Josué, até que chegaram em um vale estreito ao norte da cidade. Eles acamparam no topo da montanha, em um vale entre Israel e Ai.
Quando o sol começou a surgir, Josué foi até o vale para ver plenamente os vigias nos muros da cidade. Ele estava bem diante de seus narizes e fez uma saudação amigável para os guardas. Eles o ouviram rir enquanto suas flechas caíam a poucos cúbitos de seu corpo. Salmom deu um sorriso enquanto Josué corria para o topo do vale para se juntar aos seus guerreiros. Eles teriam que correr mais rápido que Josué na manhã em que a verdadeira batalha começasse.
Algumas árvores de folhas verde-claras salpicavam o topo da montanha, e Salmom procurou uma delas para se apoiar. Em algum lugar fora do alcance tanto de Israel quanto de Ai, ele sabia que muitos dos seus amigos se escondiam pela segunda noite, aguardando apenas o sinal de Josué. Salmom estava nervoso demais para conseguir dormir, assim como ficava nas noites que antecipavam a maioria das batalhas que ele enfrentava.
Ele pensou em Miriã e em seu grande abraço de despedida, e seu coração se acalmou ao relembrá-la. Ele queria dar uma vida segura para sua irmã, e às vezes sentia uma frustração irritante por ter de se adequar ao tempo de Deus. Às vezes, ele queria que Deus acelerasse e os estabelecesse logo em um lugar seguro. Pensar naquilo o fez ficar vermelho, e ele agradeceu pela escuridão cobrir seu rosto. Por debaixo da fé e da obediência, ainda havia um abismo inexplorado de obstinação. Ele queria ser seu próprio mestre, e queria curvar-se a Deus conforme sua própria vontade. A acusação de Josué, quando este o chamou de hipócrita, seria tão surpreendente assim?
Aquele pensamento trouxe Raabe à sua cabeça. Ou melhor, a levou novamente a ser o centro de suas atenções. Ele mal tinha pensado em coisas, desde sua despedida, que não tivessem a ver com a consciência de que ela ocupava seus pensamentos. Depois que Josué o convocou para a batalha, Salmom sentiu uma necessidade gritante de procurá-la para gravar o rosto dela na memória e para se despedir, quem sabe, pela última vez. Ele sabia que a guerra poderia significar morte, e essa era uma realidade que ele encarava antes de todas as batalhas. Até mesmo os maiores vencedores algumas vezes fracassam na luta; era possível vencer, mas isso não significava sair ileso. Havia a possibilidade da morte, mas não era isso que o atormentava, e sim o pensamento de partir sem antes ver Raabe.
Ele falou para si mesmo que não havia motivos para procurar Raabe. Ela era nada para ele, e nunca poderia ser mais do que isso. Mesmo assim, Salmom sentiu que, se não fosse vê-la ou se não ouvisse sua voz, ele morreria. Portanto, ele deu um passo depois do outro, contra sua vontade, até o acampamento dela e a encontrou rindo com amigos, como se ela pertencesse a Israel desde o dia em que nasceu.
Ele engoliu em seco ao se lembrar dos olhos dela quando ouviu que ele iria para a guerra. Os lindos olhos cor de ouro se encheram de terror, e uma proteção possessiva o dominou. Estava longe de ser indiferente em relação a ele, e aquele pensamento era como uma fonte de satisfação para ele. No entanto, aquela satisfação apenas o incomodou ainda mais, e ele se repreendeu em voz baixa. Ai era um inimigo mais fácil de se lidar do que seu próprio coração.
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Antes de o sol aparecer, o pequeno exército com Josué já estava preparando sua formação. Com uma altivez quase lânguida, eles foram até uma faixa de terra com vista para Arabá. A localização mostrou que havia um ponto negativo para Israel. Eles estavam expostos por todos os lados, e os guerreiros de Ai teriam vantagem. Salmom sabia que eles pareceriam fracassados para um povo que já os tinha derrotado; seria presa fácil, e era justamente isso que Josué queria que eles pensassem.
O rei de Ai agiu como esperado. Com o nascer dos primeiros raios solares, ainda fracos, ele e seus homens saíram da cidade cheios de confiança e proferindo ameaças enquanto gritavam insultos para o pequeno exército que estava diante deles.
Vocês voltaram porque querem mais? Vocês querem mais cadáveres em sua coleção?
Nossos pombos lutam mais do que seus melhores guerreiros. Vocês querem que nossas garotinhas ensinem algumas lições?
Não faltaram insultos naquela manhã. Salmom não se permitiu mudar de expressão e permaneceu inflexível a cada palavra. Não havia lugar para o orgulho naquele plano, e, dentro de poucos instantes, ele e seus companheiros mostrariam quem realmente eram os fracassados. Os guerreiros de Ai continuaram se aproximando. Porém, antes de a primeira fileira do exército de Ai alcançar a linha defensiva de Israel, Josué deu um grito para recuar. Os guerreiros de Israel se viraram e correram em direção ao deserto, afastando-se da cidade. Para o inimigo, eles pareciam fugitivos muito covardes.
Um grande som surgiu do exército de Ai. Alguns riam e outros faziam algazarras, girando as espadas e clavas para o alto. Salmom estava ciente de que o recuo imediato de Israel encheu o inimigo de orgulho. Tudo nele desejava parar, dar meia-volta e tratar aquele adversário insignificante com a coragem que irrompia nele. Mas, em vez disso, ele forçou seus pés a continuarem correndo ainda mais rápido, poupando seu tempo. A poeira se levantou das milhares de sandálias que pisavam naquele terreno arenoso. Salmom sentia a areia todas as vezes que inspirava, com um gosto que ressecava a garganta e ameaçava sufocá-lo. Ele engolia, forçando-se a respirar pelo nariz com determinado ritmo, mantendo a boca fechada. Olhando rapidamente por cima do ombro, ele viu com satisfação que todos os vigias dos muros deixaram seus postos e foram atrás deles. Não havia dúvidas de que nenhum soldado permanecera em Ai ou em Betel. Todos haviam se juntado àquela perseguição, confiantes na vitória.
De repente, Josué parou e deu meia-volta. Ele segurava uma espada em uma das mãos e um dardo na outra. Salmom viu Josué levantar a mão com o dardo em direção a Ai, e, assim que ele fez isso, os homens que esperavam para a emboscada saíram de seus esconderijos e invadiram a cidade.
Sem perceber o desastre que invadia a cidade, os homens de Ai alcançaram o exército menor de Josué e se engajaram na luta com eles. Manejando as espadas com entusiasmo, eles foram de encontro ao que acreditavam ser um inimigo fracassado e covarde. Salmom, que sempre ficava na linha de frente, se viu enfrentando dois homens de uma só vez. O primeiro tinha ombros largos e muitos músculos. Ele levantou um sabre, cortando o ar com um faro que Salmom não pôde deixar de admirar. O outro estava armado com uma faca que manejava com facilidade, jogando-a de mão em mão com movimentos precisos. Salmom levantou uma sobrancelha, pois viu que aqueles dois não eram apenas fazendeiros se aventurando na guerra diante de uma emergência. Eles eram treinados e experientes, além de parecerem querer as vísceras de Salmom no café da manhã.
Cavalheiros, um de cada vez, certo?
O homem com a faca a jogou para o alto e a viu girar. E quem será?, gritou ele, pegando a faca com habilidade e apontando-a diretamente para o peito de Salmom. Desviando com um movimento rápido, Salmom evitou a mira da faca e deu uma cotovelada nas costas largas do outro oponente. O impacto dos ossos abalou o homem maior, e ele cambaleou com dois passos estranhos - dando tempo suficiente para Salmom passar a espada em seu braço forte. A lâmina fez um corte profundo, passando pelos músculos e pelos tendões, chegando ao osso. O sangue espirrou em seu peito e o homem gritava com angústia e raiva, mas sem soltar seu sabre. Demonstrando um autocontrole considerável, ele pegou o sabre com a outra mão e o apontou para o diafragma de Salmom com uma precisão perigosa. Salmom mal conseguiu ver o arco de metal quando este fora apontado em sua direção. Ele recuou, pegando sua espada para interceptar aquele golpe poderoso. Por mais que aquele movimento minimizasse a força mortal do golpe, Salmom não conseguiu escapar totalmente e o sabre cortou seu abdome, fazendo surgir uma fina linha de sangue.
Salmom ignorou aquela dor sabendo que o corte era superficial. Com sua visão periférica, ele percebeu que o homem da faca estava pegando um outro tipo de arma no cinturão. Estou tão ansioso quanto você para acabar logo com essa luta, gritou Salmom em meio ao barulho, mas eu acho justo te avisar que sua cidade está sendo incendiada.
O homem com a faca olhou por cima dos ombros e, emseguida, virou-se completamente para ver a densa coluna de fumaça negra. Mas o outro oponente de Salmom recusou-se a fazer o mesmo. Cale essa boca, hebreu idiota! Tente usar suas artimanhas para enganar a morte, pois eu vou acabar com cada um dos seus ossos de galinha, rosnou ele. Levantando o sabre, ele foi até Salmom em um bote. Suas habilidades eram impressionantes, pois, mesmo ferido, a força por trás de cada investida era irredutível. E ele também era melhor do que Salmom, embora fosse mais lento, ao manejar a espada. Enquanto explorava o lado ferido do homem, Salmom se esquivava pela direita tentando evitar uma investida mortal e, imediatamente, foi para a esquerda. O sabre o seguiu, como ele esperava, e Salmom voltou a desviar-se pelo lado direito, atingindo diretamente o corpo do inimigo. Levou apenas um milésimo de segundo para que o homem apontasse novamente a espada para Salmom, mas seu movimento revelou uma região indefensável do lado esquerdo de seu corpo, e Salmom cravou a espada exatamente lá.
Os olhos do homem se arregalaram com o choque. Um som curioso surgiu de sua garganta, e o sangue saiu de sua boca escorrendo pela barba escura.
Enquanto o homem se encolhia, Salmom retirou uma adaga do cinturão. Já que você não vai precisar disso, acho que vou pegar. Salmom limpou a espada suja de sangue na túnica do homem e procurou ao redor pela faca. Ele viu que o homem tinha corrido em direção a Ai quando a fumaça começou a subir, mas naquele momento ele o viu ao longe, parado olhando em direção à cidade. Ele ainda está com muita raiva, pensou Salmom. Ele sabia que poderia pegar a adaga e matar o homem com um movimento rápido, mas a ideia de cravar uma adaga pelas costas de alguém não lhe pareceu muito agradável. Em combate, ninguém desconsideraria aquela possibilidade. Mas, mesmo assim, ele não conseguia aceitar muito bem a ideia e, de alguma forma, Salmom achava que aquilo era inferior a ele.
Com certa distância, ele viu a maior parte do exército de Israel sair de Ai e correr em direção à batalha. Ele sabia que o homem da faca seria morto com o restante de seus companheiros pelas duas forças de Israel, sem chances de escapar. Encolhendo os ombros, ele voltou para o conflito que fora travado mais perto dele.
Com o passar das horas, a batalha ficou mais intensa enquanto as duas partes do exército de Israel se aproximavam, rendendo os homens de Betel e Ai. Seus inimigos agora lutavam contra o desespero do medo, e não mais pelo orgulho da vitória. Eles lutaram com uma ferocidade temerária que exigia toda repulsão de Israel.
Salmom se viu lutando com um homem selvagem que segurava um machado, usando-o também como clava. Salmom fez de tudo para manter o equilíbrio, e saltava em volta dele com destreza. Próximo a ele, Hanani estava enfrentando um homem resistente que manejava duas espadas com uma grande agilidade. Salmom notou que Hanani permanecia na defensiva durante a luta com seu oponente, tentando desviar-se das investidas implacáveis do inimigo.
Ele viu que precisava ajudar Hanani rapidamente, mas o monstro que enfrentava exigia sua total atenção. Ele se abaixou para escapar de um golpe e passou a espada pelas pernas do homem, tentando acabar com ele por baixo. O homem pulou a uma altura de um cúbito, desviando-se com facilidade da espada de Salmom, que olhou para ele boquiaberto antes de sair do movimento que ele fez com o machado, que acabaria por acertar sua cabeça.
Salmom deu alguns passos atrás, aproximando-se de Hanani. Aguenta aí. Logo eu vou te ajudar, gritou ele. Salmom percebeu que Hanani não tinha mais forças nem para acenar.
O oponente de Salmom fez uma investida com o machado, e ele desviou para evitar ser estripado. Ao fazer isso, ele viu que o homem da faca, que o atacara anteriormente, estava a cinco cúbitos de distância com uma faca dentre seus dedos habilidosos. Seu olhar estava focado em Hanani.
Capítulo Quinze
Não!, gritou Salmom. Ele olhou ao redor com o desespero estampado em seus movimentos e viu que não havia mais ninguém que pudesse ajudar, a não ser ele mesmo. A culpa era dele. O orgulho o levou a ignorar um inimigo perigoso, e agora seu amigo pagaria o preço. Não, disse ele novamente, mas na segunda vez em um sussurro. Salmom levantou a espada, deixando-se completamente exposto ao ataque do machado de seu inimigo. O homem foi até ele sem hesitar. Antes do impacto, Salmom conseguiu girar, e o machado não o acertou por um fio. Ele conseguiu pegar a espada e a cravou por trás, em um ângulo impossível que seu adversário pudesse se desvencilhar. A arma caiu fazendo um barulho nauseante, e com um gemido ele foi derrotado.
Salmom não perdeu tempo recuperando a espada. Pelo contrário, ele pegou a faca que havia colocado anteriormente no cinturão. Quase em câmera lenta, ele viu o homem com a faca em punho, apontando e lançando-a. Naquele mesmo instante,
Salmom viu que o oponente de Hanani havia bloqueado sua espada com a dele e estava prestes a empunhar aquela segunda arma contra o estômago de Hanani. Seria um golpe fatal.
Salmom prendeu a respiração. Dois oponentes - dois ataques mortais apontados para Hanani. O homem que estava com duas espadas nas mãos se aproximou com um corte muito profundo na garganta. Salmom mirou devidamente e lançou. A adaga foi parar no pescoço do soldado resistente, que caiu espalhando sangue pelo chão. No mesmo movimento, Salmom jogou o peso de seu corpo por sobre o de Hanani, fazendo-o cair, mas aquele movimento fez Salmom ficar no mesmo lugar em que Hanani estava, exatamente na mira da faca que fora lançada. Não havia tempo para escapar. Com uma força que fez Salmom cair de joelhos, a faca perfurou o cinturão, as vestes e ficou cravada em seu estômago. O impacto foi profundo e veio seguido pelo adormecimento.
Hanani foi até o lado do companheiro mais pálido do que as sandálias nas quais estava ajoelhado. Não, não, não! Ó Senhor. Ó Senhor, nos ajude!, clamou ele.
O corpo inteiro de Salmom começou a tremer com tanta violência que ele quase caiu para trás. Hanani o segurou justo na hora da queda, para evitar que ele batesse com a cabeça no chão e ficasse com mais uma ferida além das que já tinha. Ele deitou o amigo com cuidado, e Salmom se levantou agarrando as vestes de Hanani. Tire essa coisa de mim, disse ele com esforço.
Hanani olhou para ele com os olhos arregalados e cheios de lágrimas, e mexeu a cabeça.
Tire. Rápido.
Hanani olhou para o céu por um momento, depois envolveu o cabo da adaga com suas mãos e a puxou rapidamente com força. A dor foi maior do que qualquer outra coisa que Salmom já sentira, e ele gritou em agonia, sem conseguir silenciar o som animalesco que saía de sua garganta. Ele ainda estava consciente, respirava com muita dificuldade e, mesmo acometido pelo tormento, estava lúcido. Agora, vá pegá-lo, sussurrou ele com a voz trêmula. Antes que ele machuque mais alguém. Use a adaga.
Hanani afirmou com a cabeça, segurando a adaga que gotejava o sangue do amigo. Apesar do acometimento da dor, Salmom levantou a cabeça e viu que Hanani precisava enxugar as lágrimas para enxergar. O homem que lançara a faca estava tentando se afastar deles, mas o lugar estava cheio de homens lutando e sendo derrubados, o que diminuía seu ritmo. Hanani mirou com cuidado e lançou a adaga, que o acertou enquanto ele corria.
Por um instante, Salmom perdeu a consciência e deixou a cabeça dar um baque no chão. Ele voltou a si nos braços de Hanani, sentindo-se enjoado e fraco. Ah, Salmom, lamentou Hanani.
Vai ficar tudo bem.
Foi por minha culpa. Perdoe-me. Era para ser eu.
Salmom queria sacudir a cabeça, mas não tinha forças. Ele olhou para baixo e viu a abundância de sangue que escorria das roupas e molhava o chão. Aquilo lhe pareceu mortal. Ele engoliu em seco e fechou os olhos. Senhor, tem misericórdia de mim. Ele se esforçou para abrir os olhos novamente e tentou se focar em Hanani. A culpa não é sua. Eu tive a oportunidade de matá-lo antes e não matei. Salmom levantou a cabeça a fim de olhar para a barriga, que sangrava. O esforço fez com que gotas de suor saíssem da testa. Não pareço nada bem, Hanani. Se eu não aguentar, cuide da minha irmã e certifique-se de que ela estará sempre bem.
Você vai cuidar da sua irmã. Não ouse se distrair com pensamentos de morte. Fique vivo, Salmom Ben Nahshon, ou então eu vou acabar com você.
Salmom deu um sorriso trêmulo. Vá terminar esta batalha, Hanani. Eu ficarei bem aqui. Ele viu Hanani hesitando, agoniado por ter de deixá-lo ali.
Hanani fez um movimento com a cabeça. Desamarrando sua faixa, ele a colocou debaixo da cabeça de Salmom antes de sair. Salmom olhou para o céu e viu que era um dia lindo. Nuvens brancas salpicavam o horizonte e uma brisa roçava nas árvores, agitando-as de um lado a outro como se fossem realezas.
Há muito tempo ele não admirava a beleza daqueles arredores. Senhor, é hoje o dia da minha morte? Eu entrego a minha vida em Tuas mãos. Ele prendeu a respiração por causa de um golpe pungente de dor e, por alguns minutos, ficou quase inconsciente. Quando a dor diminuiu, ele orou mais uma vez. Por favor, cuide de minha irmã. Não deixe que nenhum mal aconteça a ela na minha ausência.
Um outro rosto, bem diferente do de Miriã, veio à cabeça. Com olhos grandes e lábios grossos, era um rosto majestoso, cheio de ternura em um momento e medo no outro. Um rosto delicado. Ele respirou com dificuldade. Senhor, cuide da Raabe. Uma sensação de arrependimento o acometeu com uma força mais intensa do que a da adaga que havia atingido seu estômago. Arrependimento pelo que nunca aconteceu. Ele gemeu. Era a ferida que estava fazendo-o ter pensamentos loucos. Que ironia o fato de seus últimos pensamentos serem sobre a mulher cananeia... não. Ele não podia dizer isso. Ele nem podia pensar nela. Independentemente do que ela tenha sido, Raabe era diferente agora. Seu passado não deveria ser parâmetro para ela. Se ele tivesse mesmo que pensar nela durante as últimas horas de vida, ele não a diminuiria ou desonraria. Senhor, ela é uma mulher de fé. Cuide dela.
Por onde você andou e o que houve? Uma voz familiar interrompeu seus pensamentos.
Josué?
Por quem mais você esperava - pelo rei de Ai? Deixa eu dar uma olhada em você, Salmom.
Eu não estou bem. Por favor, prometa que você vai cuidar da minha irmã.
Deixe-me dar uma olhada antes de você ficar me pedindo coisas. Josué tentou ser cuidadoso com as mãos enquanto examinava a ferida, mas mesmo assim Salmom achou que morreria de dor. Um gemido escapou de sua boca e Josué parou de mexer. Não vou mentir para você, filho. Essa ferida é grave, e talvez seja mortal.
Eu te falei, afirmou Salmom com um suspiro fraco, desfrutando a sensação de Josué ter concordado com ele por uma vez. A escuridão o dominou e ele parou de resistir. Valia tudo para não sentir mais dor. A última imagem que ele viu foi a de Josué orando com a cabeça abaixada.
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Raabe se sentou no chão da tenda com Miriã para fazer ataduras. Desde que o exército de Israel partira para Ai, ela cultivou o hábito de visitar Miriã por longas horas do dia. A jovem, que já estava acostumada com a difícil tarefa de aguardar a volta da guerra, ensinou como Raabe poderia usar o tempo preparando-se para receber os feridos. Logo do lado de fora do acampamento de Israel, uma nova tenda havia sido montada para acomodar os jovens que voltassem feridos da guerra. Raabe nunca duvidou da vitória de Israel, e uma convicção do triunfo deles embasava todos os seus pensamentos. Mas ela se arrepiava ao pensar que todas as batalhas triunfantes também se mostravam fatais aos vitoriosos. Aquele pensamento a paralisou com um medo que ela tentou esconder de sua amiga. Raabe estava feliz por elas orarem juntas frequentemente, e elas pediam pela proteção dos guerreiros de Israel, pediam para Deus sustentá-los e também para que Salmom voltasse seguro. As orações preservavam a sanidade dela.
Naquele momento, enquanto enrolava os curativos já lavados, Raabe pensava em quantos homens ficariam feridos na batalha de Ai, e em que tipo de cuidados eles receberiam depois que voltassem. Há médicos em Israel ou são as mulheres que cuidam dos doentes?, perguntou ela a Miriã.
Temos vários médicos habilidosos. Zufe Ben Yudah é o mais conhecido. Na verdade, ele partiu juntamente com os exércitos de Josué há três dias, mas não como soldado, e sim como médico, para tratar dos homens feridos o mais rápido possível. A rapidez salva vidas. Ele ensinou a algumas mulheres, como eu, a se preparar para cuidar dos feridos.
Como ele aprendeu o que sabe? Vocês peregrinaram por quase quarenta anos no deserto. Como ele foi treinado?
Miriã pegou um vaso de alabastro e começou a enchê-lo com mel. Nossos pais foram escravos no Egito, onde reside o grande conhecimento da medicina. O pai de Zufe trabalhava desde pequeno com um grande médico, que gostava dele e ensinou-lhe algumas coisas. Os médicos egípcios guardam seus segredos a sete chaves, mas, mesmo assim, aquele confiava em seu escravo. Quando saímos do Egito, Judá levou seus conhecimentos consigo e ensinou tudo o que sabia ao filho, Zufe.
Antes que Raabe pudesse responder, a aba da tenda se abriu bruscamente e Hanani entrou, esquecendo-se até mesmo de antes anunciar sua presença às mulheres que lá estavam.
Raabe e Miriã se agitaram. Miriã falou com esforço: Salmom?
Ele foi ferido e chama por você.
É grave?
Os olhos de Hanani se encheram de lágrimas e ele olhou para baixo. Miriã deixou um lamento escapar e caiu nos braços de Raabe, que sentiu como se o lugar estivesse girando, mas forçou-se a segurar Miriã, acalmando-a naquele primeiro momento de pânico. Ela tentou esconder a própria reação esmagadora por trás de uma máscara de condolência. Salmom, não!
Miriã se afastou dela e passou a mão trêmula pela testa. Desculpe-me, eu não quis ser tão covarde. Raabe você pode vir comigo? Você pode me ajudar a cuidar dele.
Raabe suspirou aliviada. Ela não teria suportado ficar longe dele em um momento como aquele. Pelo menos, ela ficaria ao seu lado. Mas é claro, respondeu ela .
Miriã apertou a mão dela. Obrigada. Que ironia, pensou Raabe. O favor foi totalmente estendido a mim! Se ao menos Miriã soubesse. Elas pegaram dois cestos e os encheram com os alimentos que haviam preparado durante os últimos três dias. Enquanto elas saíam da tenda, uma mulher gorda entrou apressadamente.
Miriã, eu acabei de ouvir as notícias! Graças a Deus nós vencemos a batalha e esse sacrifício não foi em vão. Irei com você e te ajudarei a cuidar dele. Fiquei sabendo que as feridas de guerra são as que mais doem.
Diná!, exclamou Miriã com os olhos arregalados.
Venha, venha! O que você está esperando? O tempo é curto. Provavelmente ele está morrendo enquanto falamos, dizia a mulher chamada Diná, gesticulando com os braços para cima e para baixo, como um ganso agitado. Raabe cerrava os dentes à medida que as palavras da mulher penetravam na confusão que se instalara em sua mente. Aquelas palavras não eram tão reconfortantes.
Hum, Diná, obrigada pela ajuda, mas, na verdade, eu pedi para Raabe ir comigo, Miriã falou já saindo da tenda.
Quem?
Raabe. Desculpe-me se eu ainda não apresentei vocês. Como você disse, o tempo é curto.
Você não pode estar falando sério! Você não pode levar esta mulher para cuidar de Salmom em um momento como esse. Isso é... vergonhoso! Além disso, eu sou prima dele e deveria estar ao lado de Salmom.
Mas eu sou a irmã, sou eu quem decide quem vai estar ao lado dele. E eu escolhi Raabe. Tenha um bom dia, Diná. Segurando com firmeza a mão de Raabe, Miriã a puxou para frente e seguiu Hanani correndo.
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Zufe se esticou depois de examinar Salmom. É uma ferida hepática. A faca perfurou o fígado, quase o cortando em duas partes, disse ele olhando para Miriã por cima do ombro. A perda excessiva de sangue o fez ficar muito fraco, e ele está inconsciente há horas.
Mas ele está vivo?, perguntou Miriã com os lábios brancos. Eu não sei se é porque ele é teimoso ou por causa das orações de Josué. Mas sim, ele está vivo.
Raabe não conseguia tirar os olhos de Salmom. A pele dele estava muito amarelada e fria por causa da hemorragia. Ele permaneceu imóvel na esteira, laranja como uma abóbora e com uma respiração tão fraca que Raabe mal conseguia ver seu peito nu movimentando-se. Ataduras cobriam seu abdome; elas deviam estar limpas, pois, dos lados, pareciam brancas e claras. Porém, em volta da ferida, elas estavam cobertas pela cor escarlate do sangue. Ó Senhor, não o leve. Não o leve. Não o leve. Aquela frase não saía de sua cabeça. Ela ouvia as conversas ao seu redor, os gemidos de outros homens feridos na tenda, as risadas discretas e aliviadas dos que estavam feridos sem gravidade, as expressões reconfortantes dos membros da família; Raabe ouviu tudo isso e compreendeu, mas mesmo assim continuava pensando na frase. Não o leve. Não.
Há cura para ele, Zufe? A pergunta de Miriã fez os pensamentos de Raabe se concentrarem penetrantemente.
Zufe fez um gesto com o rosto parecendo pensativo. É provável que não, mas não impossível. O fígado é um órgão que se regenera. Se Salmom tiver um bom acompanhamento para prevenir a infecção, ele terá chances de sobreviver.
Como?
Ele precisa de muitos cuidados dia e noite. As ataduras precisam ser trocadas quatro vezes ao dia e duas à noite, pelo menos. Use mel, muito mel. Eu suturei o corte e tomei cuidado para que os nós ficassem virados para cima, para que a ferida não abra quando você mudar as ataduras, mas tenha muito cuidado mesmo assim. Passe óleo de oliva na linha para mantê-la macia. Seria bom se tivéssemos vinho e incenso. Isso faria muito bem a ele.
Raabe interviu. Eu tenho os dois, sussurrou ela. Zufe olhou para ela. E você é?
Esta é a Raabe, informou Miriã.
Ah, sim, de Jericó. Já ouvi falar. Você disse que tem vinho? E incenso. Ficarei feliz em ajudar com o que tenho.
Zufe fez um gesto de aprovação. Bom. Isso vai ajudar bastante. Mais tarde, eu mostrarei como vocês devem usar o vinho para limpar a ferida antes de colocar as ataduras com mel.
Outra coisa importante para a qual devemos dar atenção é a perda de sangue. Precisamos fazê-lo engolir algum líquido constantemente. Pelo fato de o fígado ter sido prejudicado, não podemos dar comidas gordurosas. Nada. Deem água de cevada adoçada com mel ou um pouco de sopa, bem salgada. Tirem a gordura de tudo antes de alimentá-lo. Enquanto ele estiver inconsciente, vocês precisarão mexer o corpo dele sozinhas. Conseguem fazer isso?
As duas mulheres disseram que sim com a cabeça, pois estavam assustadas demais para falar. Raabe correu até a tenda para pegar o vinho e algumas especiarias. Apressadamente, com frases curtas, ela explicou o acontecido à família enquanto colocava tudo em um pacote. Depois de alguns instantes, ela achou o que estava procurando: roupas, potes e ânfora estavam espalhados por todos os cantos.
Vá, vá, exortou Izzie. Eu arrumo isso.
Raabe aceitou e saiu. Ela chegou na tenda dos feridos sem fôlego e cheia de preocupação. Entregando o pacote a Zufe, ela se sentou ao lado de Miriã, que permaneceu atenta ao lado da esteira de Salmom.
Zufe bebericou uma pequena quantidade do vinho e o conteve na boca antes de engolir. Bom. E vi que o incenso é puro. Isso vai ser muito útil. Agora, vou lhes ensinar a mudar as ataduras.
Ele desamarrou as ataduras de Salmom e as retirou com muito cuidado. Em alguns pontos, o sangue pisado estava agarrado à sutura e ao pano. Nesses casos, ele desgrudava com movimentos delicados, assegurando-se de que as extremidades da ferida permaneceriam fechadas. A ferida estava coberta por uma densa camada de mel. Zufe ergueu os olhos por um momento para se certificar de que as duas mulheres estavam olhando. O mel tira o veneno da ferida e ajuda a curar infecções. Por isso é tão importante trocar as ataduras com frequência.
Em um vaso de madeira, ele misturou uma quantidade modesta de incenso ao vinho e, mergulhando uma roupa limpa à mistura, ele começou a limpar o mel da ferida. Enquanto ele removia grande parte daquela pasta, Raabe viu que o pus amarelado saía de dentro da parte vermelha, na ferida inflamada.
Zufe limpou aquilo com muito cuidado, mergulhando toda hora a roupa na mistura de vinho. A mistura dos cheiros de sangue pisado e sangue fresco, pus, vinho e das especiarias foi o bastante para fazer Raabe se sentir enjoada, e ela quase não conseguiu conter seus impulsos. Ela mal podia acreditar que aquele era Salmom, e não podia acreditar que o homem saudável que apenas com um olhar silenciava a multidão revoltosa estava deitado naquele momento cheirando à supuração e decadência.
Miriã esticou uma das mãos e segurou os dedos de Raabe de forma esmagadora. Sentindo a pressão, apesar da dor, Raabe também segurou firme aquela mão macia. Juntas, elas observavam o médico preparar uma nova atadura, coberta por uma fina camada de mel selvagem, antes de colocá-la novamente em volta de Salmom. O cuidado do médico não fez o paciente mover nenhum músculo. Ele permaneceu imóvel e pálido, contido pela angústia da inconsciência. Raabe pensou que era uma bênção o fato de ele não ter consciência da própria agonia.
Zufe limpou as mãos ao mergulhá-las no resto da mistura de vinho. Certifiquem-se de limpar as mãos antes e depois de mexer na ferida, assim como eu estou fazendo. Peguem o máximo de mel que conseguirem. Por ele ser quem é, não tenho dúvida de que cada família sob seu comando oferecerá provisões. Se sobreviver a isso, terá de enfrentar uma jornada longa e árdua. E você também, Miriã, enquanto cuidar dele. E entendam que não é uma questão de dias, mas sim de semanas.
Miriã afirmou com a cabeça. Isso não importa. Eu cuidarei dele.
Você precisará de ajuda. Sua melhor amiga, Elizabete, não está esperando um bebê? Ela e a mãe não poderão te ajudar, pois o nascimento da criança está próximo.
Eu ajudo, ofereceu Raabe. Ela ruborizou ao perceber que havia se precipitado. Quero dizer, se você quiser, Miriã. Eu já até aprendi a trocar as ataduras.
Obrigada, Raabe. É claro que vou aceitar a sua ajuda.
Capítulo Dezesseis
Salmom se sentiu sufocado. Mãos o puxavam para baixo e ele tentava se soltar. Salivando, conseguiu abrir os olhos. Primeiramente, a visão estava embaçada e turva. À medida que clareava, ele viu o rosto de uma mulher diante dele. Raabe? Ele piscou mais vezes e se deu conta de que sua cabeça estava no colo dela. Onde ele estava?
O quê?, resmungou ele. Sua garganta parecia arranhada e ele se esforçou para continuar acordado com uma tenacidade intensa. O que você está tentando fazer, me matar?, perguntou ele enquanto um outro dedo curioso o cutucou.
Graças a Deus! Você está acordado! Você sabe quem eu sou? A voz parecia mais alta e mais aguda do que se lembrara. Ele levou a mão fraca e trêmula até a têmpora enquanto a memória voltava. Você está pior do que eu imaginava se não conseguir se lembrar do meu nome.
Ela deu uma risada e, sutilmente, colocou a cabeça dele de volta na esteira. Salmom teve uma sensação de perda enquanto ela se afastava. Eu vou chamar Miriã. Ela vai ficar tão aliviada.
Ele viu a irmã se esticando em uma esteira perto da dele. Seu rosto, tranquilo em descanso, parecia exausto. Deixe-a dormir. Ela está cuidando de mim há muito tempo?
Oito dias e noites. Eu a convenci a tirar um cochilo agora há pouco. Raramente ela sai do seu lado para tirar pequenos cochilos. É a primeira vez que você está acordado e é capaz de formular frases. Todos estão muito preocupados com você.
Salmom franziu a testa. Ele não se lembrava de ter acordado antes daquele momento, e uma lembrança mais urgente tomou conta de sua cabeça. E a batalha?
Vitória esmagadora de Israel.
Salmom fechou os olhos aliviado. Ele fora ferido pouco antes do final da guerra ser definido. Ele abriu os olhos novamente e os fixou em Raabe, perguntando-se o que ela estaria fazendo ali. Se não estivesse enganado, e ele achava que não estaria, ele estava na tenda dos feridos. O que fez a mais nova integrante da tribo ir para um lugar como aquele?
É melhor você terminar de tomar a sopa antes de eu trocar suas roupas. Era por isso que você estava se sentindo sufocado. Eu estava tentando te alimentar.
Você vai trocar minhas roupas?
A menos que você prefira que eu acorde Miriã para fazer isso.
É claro que não. Quero dizer, onde está Zufe? Por que ele não pode fazer isso?
Raabe se ajoelhou perto da cabeça dele para que ele pudesse vê-la sem mexer muito o pescoço. Ela parecia pálida. Porque suas roupas precisam ser trocadas muitas vezes por dia, dia e noite, e Zufe tem outros pacientes. Ele ensinou a Miriã e a mim, e até então temos cuidado muito bem de você.
Miriã e você? Você tem cuidado de mim?
Raabe encolheu os ombros e se virou para pegar uma vasilha. Você precisa beber isso, perdeu muito sangue, e precisamos recuperar sua força para combater a infecção. Você teve febre por muitos dias.
Era natural que Miriã pedisse ajuda a Raabe. Salmom sabia que sua irmã tinha muito afeto por ela, mas, com tantas outras mulheres que eles conheciam, ela precisava escolher logo aquela? Pensar em estar indefeso perto de Raabe fez Salmom tremer. Ao mesmo tempo, ele admitiu que estava relutante em deixá-la partir. Ele não queria que ela fosse embora. Salmom engoliu seu orgulho da melhor maneira possível. Não está velha, está?
Ela sorriu. Não, é sopa fresca. As mulheres de Judá brigaram pelo privilégio de fazer sopa para você todos os dias. Esta foi feita pela esposa de Micael, mãe de Judite, que fez essa refeição com as próprias mãos perfumadas hoje de manhã.
Então me dê a vasilha. Eu não acho que... Dê a mim!
Eu sinto muito, mas não. Você ainda não pode segurá-la.
Você está muito fraco por causa da ferida.
Salmom quase gritou mandando-a sair. Ele precisava de uma mulher para lhe dizer que estava tão fraco quanto um recém-nascido? Ele engoliu seu mau humor e se lembrou que sua irmã estava exausta. Acordá-la com gritos não seria a melhor maneira de agradecer pelos cuidados incessantes. Ele cravou em Raabe um olhar penetrante como uma faca, prometendo que aquilo teria volta. Ela empalideceu devido ao desprazer dele, mas se aproximou mesmo assim e gentilmente levantou a cabeça dele, apoiando-a em seu colo. A boca de Salmom estava seca e ele havia esquecido das reclamações. Ela levou a vasilha até seus lábios e ele bebeu a sopa, enquanto alguns pequenos pedaços acumulavam no lado da boca. Ele não sentia gosto de nada. Enfurecido pelo fato de estar debilitado e confuso por causa da aproximação estranha de Raabe contra suas costas nuas, ele engolia a sopa ressentindo-se por sua posição ridícula a cada gole. Ela limpou a boca e o queixo dele como se faz com uma criança pequena, e depois o colocou deitado na esteira novamente.
Agora, seus curativos. Você está sentindo dor? Sua voz parecia rouca, e Salmom olhou para ela com um olhar desafiador. Aquela proximidade aparentemente também afetava a ela, e ele fez um gesto de satisfação com os olhos. Salmom esqueceu de responder, e ela o deixou pensando enquanto pegava as coisas que iria usar.
Embora os movimentos de Raabe fossem os mais suaves possíveis, na hora em que as ataduras antigas foram retiradas, Salmom sentiu que o suor escorria pelo rosto. Ele levou a mão até a testa, quando notou a cor de sua pele. Por tudo que há de mais sagrado, a luz está estranha nessa tenda. Você não acha que estou com uma cor estranha?
É o seu fígado. Foi onde a faca perfurou. Zufe nos disse que o fígado pode se regenerar. No entanto, vai levar algum tempo, e até lá você ficará com essa cor amarelada. Mas, nesse momento, precisamos nos preocupar com a infecção. Por isso trocamos as ataduras e limpamos a ferida tantas vezes por dia. O mel tira o veneno.
Onde você conseguiu tanto mel?
Acredito que todas as abelhas daqui até o Egito desmaiam quando veem alguma mulher da tribo de Judá. Sua popularidade impressionou até mesmo Josué, que ora por você duas vezes por dia. Ele disse que, em vez disso, deveria orar pelas mulheres de Israel. Raabe falava em um tom suave, e os lábios se atenuavam enquanto ela falava. Ela está com ciúmes, pensou ele, tentando não sorrir. Salmom viu que estava sendo paparicado.
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Raabe acordou com o som de Miriã e Salmom conversando em voz baixa. Depois de ter ficado sem dormir na noite anterior, ela se entregou ao sono, totalmente exausta. Raabe ainda se sentia cansada e não havia conseguido reunir forças para se mexer, nem teve coragem de interromper aquele momento particular entre os irmãos. Bem, não era tão particular assim, pois ela conseguia ouvir cada palavra.
Só vocês duas cuidam de mim? Vocês não podem achar outra pessoa para ajudar?, perguntou Salmom.
Por favor. Há praticamente filas de candidatas fora da tenda, e você sabe quem é a primeira? Diná.
Que os céus me defendam. Você a mandou embora, não mandou?
Na verdade eu disse que, assim que acordasse, você iria se casar com ela. Diná vem aqui de hora em hora para ver se você já abriu os olhos.
Você não fez isso! A voz de Salmom tinha um tom de verdadeiro terror.
É claro que eu não fiz. Houve um momento de silêncio, e quando Miriã voltou a falar, a voz dela parecia embargada pelo choro. Eu pensei que te perderia. Raabe estava comigo quando Hanani nos deu a notícia, e percebi que, mesmo a conhecendo há pouco tempo, ela tem me reconfortado bastante desde a sua partida. Zufe nos ensinou a cuidar de você e ela aprendeu tudo como se fosse aluna dele desde criança. Eu não sei o que seria de mim sem ela, Salmom. Ela tem sido fiel como uma irmã, e quando minha cabeça ficava confusa de tanta preocupação, ela me lembrava do que deveria ser feito e me ajudava a fazê-lo. Eu até poderia pedir para outras pessoas se juntarem a nós, mas quis ter privacidade enquanto esperava pelo pior. Você se incomoda? Mas eu posso pedir para ela ir embora, se sua presença te chateia tanto.
Raabe prendeu a respiração. Oh, por que Raabe não os deixou ver que estava acordada um pouco antes? Ela teria sido poupada dessa rejeição difícil de suportar.
A resposta de Salmom surgiu de forma lenta. Eu me incomodo por estar doente, e não importa quem cuida de mim. Você não precisa pedir para ela ir embora, e estou feliz por ela ser uma boa amiga. E, assim como você, acho que prefiro o menor número de pessoas reclamando comigo em um momento como este.
Bom. Agora, beba um pouco desta água de cevada. Zufe nos disse que devemos te alimentar sempre que possível.
Eu posso me alimentar sozinho. Vocês duas vão me levar à loucura se não me deixarem comer e me limpar, e fazer sei lá mais o que vocês andam fazendo. Não aguento mais. E outra, traga algum homem para me visitar antes que eu enlouqueça. Enquanto estiverem aqui, eles podem me ajudar com minhas necessidades pessoais de agora em diante. Não quero mulher alguma por perto enquanto isso.
Raabe achou que já havia esperado demais e mexeu na esteira, fazendo barulho suficiente para avisar a Miriã e a Salmom que já estava acordada. Ela se sentiu uma impostora. Bom dia, sussurrou Raabe e saiu da tenda o mais rápido que pôde. As estrelas ainda estavam no céu. Ela havia dormido por tanto tempo. Quando saiu da tenda rapidamente, quase tropeçou em alguém que dormia: Hanani.
O chute acidental nas costas o fez acordar em um instante.
Hanani logo se levantou. O quê? Aconteceu alguma coisa?
Ela se abaixou ao lado dele. Não, não, Hanani. Salmom está acordado e quer ver os amigos. Ele ficaria feliz com uma visita sua. Mas é melhor ser breve. Talvez Salmom não queira admitir, mas precisa descansar.
Hanani se levantou tão depressa que os pés se enrolaram no cinturão. Raabe pôs a mão para firmá-lo pelo ombro. Depois, vá para casa descansar um pouco. Você está aqui desde quando veio nos dar a notícia e nem foi para a tenda se trocar depois da guerra.
Hanani mexeu a cabeça. Por minha culpa, ele está aí, disse ele. Sua voz estava trêmula no momento em que ele empurrava a aba da tenda para entrar. Os olhos de Raabe o seguiram por um instante, e depois, suspirando, ela se virou. Raabe ouviu a história da ferida de Salmom por Josué. Várias pessoas tentaram convencer Hanani de que ele não tinha culpa, e dentre elas estavam Josué e Ezra, mas o jovem não os ouvia. Ele ficou fazendo vigília do lado de fora da tenda dos feridos, se privando até mesmo de comer. Raabe mexeu a cabeça e andou para um pouco mais longe, até chegar a um riacho. Ajoelhando-se, ela se lavou até onde o recato permitia em um lugar público. No calor da noite, a água fria refrescava e acalmava. Raabe não teve mais tempo para pensar desde que começou a cuidar de Salmom. Agora que o perigo da morte parecia ter passado, uma torrente repentina de lágrimas a dominou. Ela liberou a tensão em soluços silenciosos. Ele não morreria. Ele não morreria. Ela tentou evitar pensar no motivo pelo qual a vida e o bem-estar daquele homem tinham tanto valor para ela. O alívio invadiu seu ser e a acalmou.
Quando Raabe voltou para a tenda, tanto Salmom quanto Hanani estavam dormindo, ressonando com suspiros leves e tranquilos. Miriã sorriu. Tenho certeza de que o pior já passou, disse ela.
Sim, eu também. A febre baixou e Zufe deve chegar logo para confirmar nossas esperanças; está quase amanhecendo.
O desafio agora é forçar meu irmão a descansar. Ele é extremamente teimoso, e eu não tenho coragem de lhe dizer por quanto tempo a recuperação se estenderá. Salmom vai ficar louco quando perceber que, na semana que vem, será o único aqui. Miriã riu pensando na situação. Você já viu que ele faz da nossa vida um caos com tantas reclamações, não viu? Em seguida, ela irrompeu em lágrimas e seu corpo inteiro tremeu.
Raabe, que havia desabado minutos antes, envolveu a amiga em um abraço apertado. Ele é uma criança grande! Miriã retomou o fôlego quando parou de chorar, e Raabe a soltou, dando um passo atrás. Ela não podia fazer nada a não ser concordar plenamente.
Ela recolhera ataduras usadas e louças sujas para lavar. Zufe entrou quando Raabe saiu, e ela fez uma pequena reverência a ele. Hábitos enraizados, pensou ela, acabam se afirmando de alguma forma. Apesar de se sentir mais à vontade em meio aos israelitas, ela manteve um pouco de formalidade em seu comportamento. Zufe lhe respondeu com um sorriso e mexeu a cabeça agradecendo antes de entrar para visitar os pacientes.
Raabe demorou com a tarefa a fim de dar mais tempo para Miriã ficar a sós com o médico. Na verdade, ela precisava de um tempo para ficar sozinha. Durante nove anos, Raabe tivera uma vida bastante solitária e desfrutava de muitos momentos de privacidade. Porém, nas últimas sete semanas, ela havia quase se esquecido do significado da palavra, pois havia pessoas em todos os lugares. Raabe mal tinha tempo para ficar sozinha com seus pensamentos, e uma grande exaustão tomou conta dela. Quando foi a última vez que dormira durante a noite?
Ela estendeu as ataduras limpas em alguns galhos para que secassem, e depois entrou novamente na tenda. Zufe já tinha examinado Salmom e saído. Miriã estava ajoelhada perto dele, com o rosto relaxado de uma forma que Raabe não via há dias. Ela deu um longo suspiro de alívio. Boas notícias?, perguntou enquanto se ajeitava perto da amiga.
Miriã fez que sim com a cabeça. A infecção parece ter diminuído, mas ainda precisamos ficar atentas. As infecções podem sempre acontecer, disse ele, enquanto a ferida estiver aberta. Mas, por enquanto, o perigo maior já passou. Temos que mantê-lo sossegado e bem alimentado. Ele pode receber visitas agora, graças a Deus. Isso vai fazê-lo se distrair. Ele ainda não pode se levantar ou andar. Pelo menos não dentro de uma semana. Zufe disse que a recuperação de Salmom foi um milagre, e que agora há uma grande chance de ele ficar completamente curado e de retomar sua vida normal.
Raabe fechou os olhos por um instante. As duas sofriam, sem ousar falar uma para a outra sobre a possibilidade de Salmom não recuperar nunca mais a saúde e o vigor. Seria uma grande perda para tal homem, e talvez fosse insuportável. Abrindo os olhos, ela sorriu para Miriã. Que notícias maravilhosas! Acho que devemos comemorar. Você vai tomar um café da manhã adequado preparado por mim e depois vai dormir por muitas horas, antes que também fique doente. Não quero cuidar de mais um.
Mas e você? Você está tão exausta quanto eu.
Eu durmo quando você acordar. Agora, vejamos o que as boas moças de Judá trouxeram para comermos. Raabe viu que havia farinha e óleo de oliva, e fez pães frescos, servindo-os com queijo, nozes e alguns bolos. As duas comeram até satisfazerem seus apetites e voltaram com as notícias encorajadoras de Zufe.
Hanani dormiu na esteira ao lado de Salmom, e elas não tiveram coragem de acordá-lo, então Raabe separou um espaço para Miriã dormir, na parte de trás da tenda. Ela conseguiu encontrar um travesseiro novo e um lençol dentre as muitas coisas que as pessoas no acampamento levavam para elas. De uma das sacolas, levada por Izzie no dia anterior, ela tirou um frasco de água de rosas. Com um sorriso, derramou algumas gotas no travesseiro a fim de que Miriã ficasse em meio à beleza por algumas horas em vez de sentir cheiro de doença. Por estar muito cansado física e emocionalmente, Miriã aceitou a proposta de dormir sem se impor, enquanto Raabe ficaria acordada, e caiu no sono antes mesmo de a cabeça se recostar no travesseiro.
Raabe voltou para ficar com Salmom. Ela torceu o nariz quando um cheiro estranho a acometeu. Realmente ela precisava insistir para que Hanani fosse se lavar e se santificar assim que acordasse. Como se estivesse ouvindo, ele abriu os olhos e se esticou. Como Salmom está?, sussurrou Hanani.
Muito bem. Zufe disse a Miriã que ele vai se recuperar e correr por aí como nunca antes. Precisamos continuar cuidando dele como temos feito, e nem tão cedo podemos deixar que ele se levante.
Um sorriso surgiu lentamente no rosto de Hanani. Não se preocupe. Eu mesmo posso amarrá-lo.
Mas antes de chegar mais perto dele, você deveria pensar em se lavar, se puder. Vestir roupas limpas também vai melhorar sua aparência. Com isso, você faz bem até mesmo para o doente.
Hanani coçou o peito. Eu esqueci porque não quis sair do lado dele, mas você está certa. É melhor eu me lavar. Voltarei logo.
Bom. Traga Ezra e alguns dos amigos menos desordeiros dele. Agora ele pode receber visitas, mas peça para eles se comportarem. Salmom ainda está muito doente, embora não aceite isso.
Hanani olhou para si mesmo, ou pelo menos para a versão suja de si mesmo, enquanto saía da tenda mais animado. Curvando-se sobre Salmom, Raabe mudou o lençol sobre o qual ele estava deitado e verificou suas roupas. Era hora de trocá-las. Ela pegou o que precisava e começou a remover as ataduras. O sangramento havia parado e, embora ainda supurada, a infecção havia diminuído consideravelmente. Raabe não se sentia mais enjoada ao ver ou ao sentir o cheiro daquilo; ela se acostumara com a rotina de limpar, purificar, lavar, passar óleo e bálsamo e fazer curativos no ferimento, como se aquilo fosse uma parte comum do seu dia. Algumas vezes ela visitava os outros homens que estavam na tenda e, juntamente com Miriã, ajudava os familiares a cuidar deles. Raabe passou a gostar da sensação de ser útil ao tratar dos doentes.
Salmom dormia enquanto ela preparava tudo, fazendo um novo emplastro de mel e, com movimentos experientes, passando-o nele. Ela decidiu limpar a pele dele a fim de remover os últimos vestígios de febre e, mergulhando uma roupa limpa em uma mistura de água gelada e vinho, Raabe começou a limpar seu abdome com movimentos muito suaves, para não acordá-lo. Ela limpou os pés, as mãos e a testa por último, que, segundo aprendera com Zufe, absorve o calor mais rapidamente do que qualquer outra parte do corpo.
Depois que terminou, Raabe enxaguou as mãos na água e no vinho, e inclinou-se por um momento. Ela havia separado os panos sujos e tentou motivar a si mesma a ir lavá-los, mas não conseguiu reunir forças para isso. Sua cabeça abaixou enquanto lembrava da próxima tarefa - esquentar sopa para Salmom e tentar alimentá-lo sem mexer muito ou acordá-lo - uma tarefa impossível.
Um toque macio em sua mão a fez erguer os olhos. Os olhos de Salmom penetraram seu olhar. Você parece acabada, disse ele com a voz pesada pela sonolência.
Ela mexeu a cabeça e sorriu. Fico feliz por você estar acordado. Eu já estava pensando em como dar a sopa sem te acordar novamente.
Obrigado por tudo que você tem feito.
O olhar penetrante a fez pensar em si mesma. Raabe se deu conta de que, há dias, não havia tido a chance de trocar de roupa. Ela estava toda amarrotada e despenteada, pouco atraente sob um olhar mais atencioso.
Foi bom quando você se juntou a Israel, disse ele em meio ao silêncio.
O quê?, perguntou ela com o queixo quase caindo. Raabe esqueceu de pensar sobre a aparência para prestar atenção no que ele dizia. Ela não podia estar ouvindo bem. Aquelas palavras não poderiam ser de Salmom. O quê?, perguntou ela mais uma vez.
Sua boca se amaciou, fazendo surgir um sorriso relaxado. Vi que você desistiu de repetir o que eu falo. Agora você repete suas próprias palavras.
Capítulo Dezessete
Depois de dezoito dias difíceis de inatividade, Salmom se levantou da esteira por tempo suficiente para dar alguns passos cambaleantes em volta da tenda. As pernas tremiam enquanto ele se movia, mas suportavam seu peso, e por isso ele agradecia a Deus. Muitos amigos tentaram animá-lo depois que Zufe permitiu que ele recebesse visitas, mas, pelo fato de sua força não estar com o mesmo vigor de antes, ele dormia no meio das conversas, como uma senhora idosa. Zufe avisou que demoraria semanas até ele se sentir como antes. Josué zombava da impaciência de Salmom e disse que ele deveria agradecer por estar vivo e por Deus ter restaurado sua saúde. Ele sabia que isso era verdade, ainda que não ajudasse a diminuir a impaciência que o atormentava quando ele tinha de depender de ajuda sempre que comia, se sentava ou fazia as necessidades.
Além da enfermidade horrível, a dor o acometia a toda hora. Por dentro do corpo, os cortes na pele, nos músculos e nos órgãos vitais doíam com uma intensidade que o fazia prender a respiração à medida que se movia.
Raabe e Miriã sorriam quando ele reclamava delas, mas não se ofendiam. Salmom estava agradecido pelos cuidados incessantes. Elas sabiam lidar com o mau humor dele, e isso ajudava deixá-lo mais calmo. As duas não queriam fazê-lo se sentir culpado por nada. Com Miriã, com quem ele convivera desde a infância, Salmom sentia um nível de conforto estabelecido pela longa familiaridade. Por outro lado, sua intimidade forçada com Raabe fez surgir um conforto parecido. Ele gostava de tê-la por perto, pois ela não era intrometida ou desajeitada e exigente. Raabe o acalmava sem ter a intenção de fazer isso, e ele gostava de conversar com ela. Muitas vezes, Salmom se surpreendia com suas percepções. Na noite anterior, por exemplo, ela contou para ele como viveu a Páscoa durante o cerco a Jericó, e ele perguntou o que ela queria dizer com aquilo.
Hanani e Ezra me disseram que, no Egito, o faraó não queria deixar o povo partir, explicou ela. Por isso, o Senhor fez recair praga após praga sobre o povo do Egito e, por fim, a morte veio sobre todos os primogênitos da Terra. Eles me disseram que, naquele dia, o povo de Israel recebeu instruções para ficar em casa com as portas fechadas e com a marca do sangue de um cordeiro por cima e pelos lados da porta. Quando o Senhor enviou o destruidor para que este fosse até a terra devastar os egípcios, ele passou direto pelas casas de Israel por causa daquele sinal.
Minha família e eu estávamos em Jericó quando Deus fez recair a destruição e a morte por sobre nossa nação, e nós também fomos instruídos a ficar em casa. Nós não fizemos sacrifício algum nem pertencíamos a Israel, mas Deus escolheu uma corda escarlate, da cor do sangue, para ficar pendurada na minha porta como um sinal que nos preservaria da morte. Trancada em minha casa e rodeada pela morte, embora sendo poupada dela, eu senti um pouco do que os pais e mães de Israel devem ter sentido - que somente Deus segurava as vidas na palma de Sua mão.
Salmom ficava maravilhado com o entendimento intuitivo que Raabe tinha sobre os caminhos de Deus. Suas conversas muitas vezes revigoravam a monotonia que o circundava, e ele também gostava da habilidade de Raabe ficar quieta e ouvir. Embora soubesse que era uma decisão egoísta, Salmom não quis insistir que as duas chamassem outras mulheres para ajudar com os cuidados. Ele preferia poucas companhias e se mostrava relutante ao expor suas fraquezas para qualquer pessoa que pudesse irritá-lo depois com tagarelices desnecessárias.
Seu mundo, geralmente muito amplo e abrangente, havia se reduzido ao espaço de uma tenda. Quando deu os primeiros passos para fora da tenda e viu o sol, no vigésimo dia do confinamento, ele quase chorou de alívio. Seus amigos fizeram uma cadeira especial, confortável, porém firme, na qual ele se sentava e se levantava com mais facilidade. Aconchegado nela, recebia suas visitas.
Apesar das muitas pessoas que o rodeavam e exigiam a atenção dele, Salmom se deu conta de que não via Raabe há horas. Ele pediu que Miriã lhe trouxesse água e perguntou no ouvido dela: Onde está Raabe?
Ela se esticou e cruzou os braços. Com esse monte de admiradoras, você não pode perder uma?
Salmom franziu as sobrancelhas. Onde ela está?, insistiu ele sentindo um enjoo no estômago. A ausência dela o desgastava mais do que gostaria de admitir.
Na tenda das mulheres.
Ah! Ela vai demorar muito?, perguntou ele, incomodado com a decepção de sua ausência.
Miriã revirou os olhos. Vai demorar o quanto for preciso. Ela brincou mexendo na unha. Não se preocupe. Abigail está chegando para me ajudar. Ela pode fazer isso agora que suas necessidades são mais simples.
Salmom virou a cabeça agoniado. O que tinha a ver Abigail com seus cuidados? Ele queria Raabe, e engoliu em seco aquele pensamento. Ele sentia falta dela e a queria de volta. Com uma cara feia, se jogou na cadeira e ignorou aquele assunto que dizia respeito diretamente a ele. O único benefício de ficar doente era que as pessoas fingiam não notar que ele estava sendo grosseiro. À noite, Josué ia visitá-lo, conforme havia feito durante toda a recuperação de Salmom - uma honra e tanto, se considerarmos a lista de responsabilidades intermináveis de Josué. Ele sempre dava um jeito de aparecer depois que as outras visitas já tinham ido embora, e a tenda dos feridos, vazia de todos os pacientes, exceto Salmom, ficava reduzida a quatro ou cinco pessoas. Josué havia estabelecido uma rotina de momentos particulares com Salmom, seguidos por orações. Muitas vezes, Josué chamava Miriã e Raabe para se juntar a ele nas orações.
Salmom estava coberto na esteira quando Josué chegou. O dia lá fora o havia cansado mais do que ele imaginava, e Salmom se deitou sobre a roupa de cama feita de plumas, sentindo-se inerte e inútil.
Ouvi dizer que metade de Israel veio te visitar hoje, comentou Josué enquanto se ajeitava no chão, perto de Salmom. Pelo menos, eu os fiz beijar meu anel e se curvar a mim respeitosamente.
Josué ignorou e olhou em volta. Vamos orar. Onde está Raabe?
Na tenda das mulheres. Salmom não conseguiu ocultar o ressentimento em seu tom de voz.
Ela não fez isso por mal, disse Josué com um tom de brincadeira em sua voz. São os planos de Deus.
Eu falei alguma coisa?, repreendeu Salmom. Não sou tão egoísta assim.
Tem certeza?, perguntou Josué e gargalhou. Que bom que alguém aqui está se divertindo.
E o que você vai fazer quanto a isso?, perguntou Josué com uma seriedade repentina e sem o sorriso no rosto, parecendo ter algum intento.
Salmom escolheu se fazer de desentendido. Fazer o que sobre o quê? Como você disse, são os planos de Deus, afirmou ele.
Josué lançou um olhar austero a Salmom. Sobre os seus sentimentos por Raabe. Eles também fazem parte dos planos de Deus?, perguntou ele.
Salmom virou a cabeça. Ele pensou na ideia de desmentir a alegação de Josué, mas concluiu que seria perda de tempo. Josué não era um homem que desistia ou mudava de ideia com facilidade, e Salmom tinha duas opções: recusar-se a falar sobre o assunto ou desabafar com o homem que respeitava acima de qualquer outro. Ele respirou fundo e disse: Não sei o que fazer.
Você a ama?
Salmom fugia daquela pergunta como as ovelhas fogem dos leões da montanha. Mas, mesmo assim, elas sempre eram apanhadas no final. Poderia ele amar uma prostituta de Canaã? Poderia isso poluir a descendência de Judá? E, ainda assim, a mulher que ele passara a conhecer, a amiga fiel que colocava os outros antes de si mesma, falava a verdade e mostrava bondade mesmo sob pressão e provocações, a mulher cuja ternura salvara sua vida não se parecia em nada com a zonah que ele imaginava. Seu pensamento ficou turvo quando ele opôs essas questões - quem Raabe era e o que Raabe havia feito.
Ele mexeu a cabeça. Eu não sei, Josué. Estou confuso.
A confusão não faz parte dos planos de Deus. Você deve olhar para o seu coração e encontrar a razão disso. Deixe-me dizer uma coisa. Se achar que a ama, eu te apoiarei caso queira a escolher como esposa. Eu a admiro, Salmom, e, como eu disse desde o começo, o próprio Deus a trouxe até nós. Portanto, você tem a minha bênção. Mas apenas se amá-la de verdade. Vocês dois não merecem menos do que isso.
Salmom olhou para Josué sem acreditar. O líder de Israel acabara mesmo de lhe dar permissão para casar-se com uma mulher cananeia que ganhara a vida entretendo homens na cama?
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Uma semana depois, Raabe voltou à tenda dos feridos usando um vestido azul-claro de linho com uma expressão fechada. Ela evitou o olhar de Salmom quando passou pela fila de amigos reunidos do lado de fora da tenda e entrou diretamente para procurar por Miriã. Salmom precisou lutar contra o impulso de levantar-se e segui-la. Por que ela não o cumprimentara? Por que ela parecia tão distante? Depois do que pareceu ser um momento interminável, Salmom deu uma desculpa, levantou-se da cadeira e saiu da tenda. Raabe já estava ajudando Miriã ao ouvir as notícias sobre a semana anterior. Salmom ficou tonto e seus passos pareciam os de um homem velho que sofria com hérnia.
Ele ficou diante de Raabe enquanto ela estava ajoelhada no chão pegando ataduras limpas. Seu coração bateu mais forte ao vê-la. Bem-vinda, disse ele.
Obrigada. Ela ergueu os olhos e os abaixou novamente. Você parece melhor. Menos amarelado.
Você parece pálida. Não gostou da tenda das mulheres? Ouvi dizer que é um bom lugar para se passar a semana.
Ela ruborizou. A princípio, ele achou que a tivesse envergonhado. As cananeias não falavam sobre essas coisas abertamente? Depois, uma nova suspeita o fez franzir a testa. Elas maltrataram você? Alguém te ofendeu?
Raabe mexeu a mão no ar. Não foi nada.
Salmom deixou escapar um suspiro irritado. Como nada? O que aconteceu? Diga.
Por favor, Salmom, esqueça. Eu não quero falar sobre isso. Sua voz estava mais baixa e parecia vulnerável. Salmom queria explodir de irritação. Ele não poderia forçá-la a falar e nem poderia obrigar as mulheres de Israel a respeitar a mulher que mostrou lealdade total à sua nação. Ele também não podia forçar seu corpo ferido a curvar-se para consolá-la. Com um resmungo abafado, ele se virou e foi até o outro lado da tenda.
Miriã foi até ele e colocou a mão no braço de Salmom para acalmá-lo. Isso é ridículo, reclamou ele em voz baixa.
Talvez isso seja, em parte, culpa minha. Abi me disse que algumas mulheres se sentiram rejeitadas porque eu escolhi apenas Raabe para me ajudar a cuidar de você. Elas não ficarão contra mim ou contra você, é claro. Mas elas a estão culpando por se intrometer em nossas vidas e duvidam de sua sinceridade. E ela precisa sofrer por causa de sua bondade para conosco? Salmom, você não pode fazer nada em relação a isso, senão vai apenas piorar as coisas. Você precisa acreditar que Deus irá defendê-la.
Salmom cruzou os braços e levantou o queixo. Você quer que eu me sente sem fazer nada enquanto as mulheres de Israel atormentam Raabe porque ela foi bondosa comigo?
Eu quero que você confie em Deus. Entregue nas mãos dele.
Salmom fez um som irritado em sua garganta e saiu.
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Raabe andou sem destino, afastando-se muito mais da tenda dos feridos do que gostaria. Ela queria apenas ficar fora por alguns momentos tranquilos e ao ar livre. Miriã, Salmom e até mesmo Abigail haviam evitado de todas as formas falar sobre os sete dias na tenda das mulheres, fazendo isso tão bem que a deixavam muito distraída. Eles a tratavam como se qualquer palavra errada fosse fazê-la desmoronar, e ela queria esquecer os sete dias horríveis que passara naquela tenda idiota. Raabe queria fingir que ninguém lhe havia desprezado ou escarnecido. Ela queria seguir em frente e não precisava de nenhum tratamento especial nem da piedade alheia.
Aquele pensamento a irritou e seus pés ficaram mais velozes. Naquele momento, o som do choro de uma criança a fez parar de repente. Ela olhou à sua volta e viu que se afastou muito do acampamento, e já estava no deserto. Teria ela ouvido bem? O que uma criança estaria fazendo ali, no meio do nada? Deve ter sido um animal. Ela se esticou. Uma sensação desconfortável tomou conta de sua pele e ela se virou para voltar. Raabe ouviu o choro novamente. Ela não estava enganada; era uma criança. Uma criança assustada. Raabe seguiu em direção ao som.
Tem alguém aí?
Um gemido cortou o ar fazendo suas costas se arrepiarem. Era o som do medo e Raabe começou a correr com um pânico aterrorizante que lhe dava mais velocidade. Eu estou indo, aguente firme. Estou chegando. Onde estava a criança? E o que a assustava tanto?
Ela quase passou direto por uma pedreira quando um ponto colorido no topo chamou sua atenção. Voltando, ela começou a subir. No meio da subida, Raabe viu a cabeça da criança - uma garotinha com grandes cachos estava imprensada em uma fenda das pedras. Pelas roupas, era possível saber que a criança era israelita. De onde Raabe estava, ela só conseguia ver as costas da menina, que não parecia ter mais do que três ou quatro anos.
Não tenha medo, querida. Estou aqui agora. A menina não se moveu nem mexeu a cabeça para ver de quem era aquela voz. Raabe achou aquilo estranho, pois uma criança assustada certamente responderia quando um adulto se aproximasse. O que a mantinha grudada naquele ponto, imóvel e com as costas rígidas? Mais um passo, pensou Raabe, e eu consigo alcançá-la. Raabe colocou o pé em um ponto firme, se esticou para a frente e gelou. Muito perto da menina, havia uma cobra venenosa, típica do deserto, cujo veneno poderia matar em menos de uma hora.
Raabe engoliu em seco com o coração na boca. Ela não tinha nenhuma arma adequada, mas, mesmo se tivesse, ficaria paralisada pelo medo. Cobras a apavoravam. Ela fechou os olhos ciente de que tinha pouco tempo. Deus Todo-poderoso. Tu fizeste esta cobra. Faça-a ir embora. Ela olhou discretamente e percebeu que a víbora permaneceu parada no mesmo lugar, com a língua entrando e saindo da boca. Sua pele era da mesma cor que a areia, e ela não era muito grande nem espessa, mas tinha veneno suficiente para derrubar um homem adulto e seu camelo. Ah, por que Tu não a fazes ir embora? Ouça o meu clamor, por favor! Eu não posso fazer isso.
A cobra se moveu aproximando-se.
Raabe murmurou. Tu queres que eu mate esta coisa, Senhor?, sussurrou ela. Então, mostre-me como. Ajude-nos! Pelo canto dos olhos, ela viu uma pedra lisa, oval e pesada, que estava perto de sua mão. Com cuidado, ela tirou a mão do apoio e pegou a pedra, mantendo os olhos o tempo todo na cobra, que a ignorou e permaneceu rígida e alerta em frente à menina.
Querida, você vai ficar bem, disse Raabe. Eu vou me livrar dessa cobra e depois desceremos daqui juntas para encontrar sua mãe. Tudo bem? A criança mexeu a cabeça com um movimento cuidadoso e olhou para Raabe. Os olhos castanhos estavam arregalados por causa do medo, e ela ficou bastante tranquila diante da criança. Raabe fez um gesto para ela com a cabeça, tentando sorrir com a pedra na mão. Ela relaxou pensativa, e sabia que tinha apenas uma chance. Apenas uma.
Senhor, sei que tenho uma mira horrível, mas, por favor, melhore-a. Mova a minha mão e mova esta pedra. Salve esta garotinha do mal. Ela tirou o suor dos olhos, mordeu os lábios e mirou o alvo. Raabe lançou a pedra, que deu um baque forte na cabeça da cobra. Por uma fração de segundo, a cobra permaneceu parada, mexendo-se depois. Ela ainda estava viva! Ferida, sangrando, furiosa e viva.
Raabe gritou na mesma hora em que envolveu a menina em seus braços e a puxou para cima. A cobra se virou para onde a menina estava com a boca aberta, escarlate e venenosa. Os dentes atingiram o sapato da menina com uma força incrível, mas o sapato estava vazio. Ele havia caído quando Raabe puxou a criança. A cobra, desorientada por causa do ferimento, desperdiçou o tempo mordendo o sapato vazio até que seus sentidos detectaram a menina suspensa pelas mãos de Raabe. Ela desistiu do sapato de lona e atacou novamente, mas dessa vez o pé da criança. Raabe se apoiou apressadamente apenas com uma das mãos do outro lado da pedra, segurando a menina com o outro braço. Por pouco, os dentes não acertaram o pé da criança, e Raabe desceu com mais pressa do que cuidado, arranhando o corpo e os dedos.
Ela continuou correndo depois que chegou no chão, a menininha se agarrava a ela com a força de um adulto. As pernas de Raabe se moviam mesmo quando seus pulmões pareciam explodir de dor. Ela sabia que a cobra havia ficado para trás, mas ainda assim um medo irracional resvalava por todo lugar, caçando-a, pronto para picá-la a cada passo, a fez continuar em frente. Finalmente ela parou, sem fôlego e fazendo quase o dobro do esforço para absorver o ar em sua boca seca. Raabe colocou a garotinha no chão depois de verificar que não havia cobra alguma enrolada por perto.
Você está bem?, perguntou ela tentando parecer calma.
A garotinha fez que sim com a cabeça e irrompeu em um choro lamurioso e barulhento. Raabe a abraçou: Eu sei, eu sei, foi tudo muito assustador. Você teve muita coragem. Qual é o seu nome? O meu é Raabe. E o seu?
A... A... Ana.
Ana, vou contar para todo mundo que você foi muito corajosa. Mas, antes, vou te levar até os meus amigos Miriã e Salmom. Eles irão me ajudar a encontrar seus pais. O que você estava fazendo naquelas pedras no meio do nada, Ana? Você se perdeu?
A pequena menina franziu os lábios e afirmou com a cabeça. Eu saí sozinha. Isso foi errado, não foi?
Raabe sorriu. Um pouquinho.
A areia estava muito quente para o pé descalço de Ana, então ela teve de ser carregada pelo restante do caminho. Pegando a menina no colo mais uma vez, Raabe a levantou carregando a menina em um dos braços. Seus pais devem estar muito preocupados. Vamos encontrá-los.
Raabe levou Ana para a tenda dos feridos na esperança de que Salmom ou Miriã pudesse encontrar os pais dela. Como sempre, Salmom tinha muitas visitas. As conversas pararam de repente quando Raabe se aproximou com Ana no colo. Ela se deu conta de que não estava muito apresentável; suas roupas estavam desgrenhadas, as mãos arranhadas e sangrando, e ela ainda segurava uma menina da Judeia que usava apenas um sapato.
Salmom se levantou da cadeira com um movimento impensado. O que aconteceu?
Raabe resmungou. Ana estava perdida e eu a encontrei enquanto fui dar uma volta.
Raabe me salvou da cobra, afirmou Ana agitando-se para sair dos braços da mulher que a salvara.
Salvou de quê?
Uma cobra horrível ficou na minha frente durante muito tempo, até que Raabe chegou e acertou uma pedra nela. Depois, nós corremos muito. A Raabe corre bem rápido.
Salmom se virou para Raabe. Que tipo de cobra? Você salvou a vida desta criança?
Todos os olhos se viraram para Raabe, e ela ruborizou com aquela atenção. Os pais dela devem estar preocupados. Talvez devêssemos procurá-los.
Um jovem se manifestou. Eu conheço a família dela. Vou buscá-los agora mesmo.
Miriã levou água para as duas e deu um pedaço de bolo para a menina. Ao ver as palmas das mãos da amiga machucadas, ela foi cuidar das feridas. Raabe, exausta por causa da provação física e emocional, preferia desaparecer dentro da tenda, mas todos insistiram para ouvir toda a história daquela aventura. A fim de apaziguar o oceano de curiosidade, ela resumiu os acontecimentos, pontuados pelas explicações mais detalhadas e animadas de Ana.
A uma certa distância, o som do choro de uma mulher interrompeu a conversa. Aparecendo em meio à cena, uma mulher que chorava e seu companheiro pálido, que estava de braço dado com ela, correram por entre a multidão. Minha Ana!, a mulher chorava. Onde está a minha filha?
Ana largou o bolo e foi correndo para os braços da mãe. O pai, a mãe e a filha se uniram tornando-se apenas um, e as lágrimas e risadas se misturavam. Raabe recuou endurecida, como se conhecesse a mulher. Então, aquela era a mãe de Ana. Elisabete fora uma das que mais atormentaram Raabe na tenda das mulheres, e Raabe começou a se afastar conforme era possível. Para ela, aquela não seria uma reunião agradável, mas sim algo a ser evitado a qualquer custo. Logo antes de ela conseguir desaparecer por dentro da tenda, alguém contou para os pais da criança uma versão resumida das aventuras de Ana. Raabe salvou sua Ana, disse um dos amigos de Salmom. Ela está logo ali, e, sem ela, sua filha teria morrido.
Elisabete se virou como se estivesse sonhando. Uma gama de expressões surgiu em sua face: espanto; incredulidade; orgulho ferido. Raabe se enrijeceu e tentou impor aos seus traços uma máscara de suavidade.
Você salvou a vida de Ana? Um tom de acusação salpicava as palavras de Elisabete. Sem dúvida, ela havia entendido que Raabe inventara a história.
Ana, sem saber de nada sobre aquela torrente implícita de emoções, respondeu: Sim, mamãe, ela me salvou. Ela jogou uma pedra naquela cobra feiosa. Eu fiquei muito assustada, mas Raabe me encontrou. Olha, eu perdi meu sapato.
Elisabete baixou os olhos para ver a filha. Por mais que pudesse duvidar da história de Raabe, ela não poderia negar o testemunho da própria filha. Depois de um momento estranho de silêncio, ela disse: Obrigada. Seu rosto estava inflexível.
Espere um pouco, disse Miriã dando um passo à frente. Eu posso saber se você esteve na tenda das mulheres com Raabe semana passada? Raabe se virou desconcertada a fim de olhar para a amiga. Miriã deveria ter desconfiado do motivo por trás da frieza de Elisabete.
O que tem isso?, perguntou Elisabete com um tom grosseiro. Parece coincidência, você não acha? Deus deve tê-la colocado em seu caminho sabendo que ela salvaria a vida de sua filha. Tenho certeza de que você fez amizade com ela lá. Afinal de contas, o Senhor ordenou: os estrangeiros que viverem com vocês devem ser tratados como um dos seus. Amem a ele como amam a si mesmos, pois vocês eram estrangeiros no Egito. Talvez Deus estivesse retribuindo sua bondade para com Raabe ao usá-la para salvar Ana.
Raabe mordeu os lábios para tentar não sorrir e percebeu que novas lágrimas corriam pelo rosto de Elisabete. Sem mais palavras, ela apertou Ana contra o peito e foi embora.
Tchau, Raabe!, despediu-se Ana. Venha brincar comigo.
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Pela manhã Raabe acordou dolorida e arranhada por causa de suas aventuras da tarde anterior, e viu que havia muitas mulheres visitando a tenda dos feridos com presentes nas mãos. Aquilo não era muito comum de se ver. Pelo fato de Miriã não poder deixar Salmom para fazer as tarefas diárias e de seus servos estarem sempre ocupados cuidando dos assuntos da família, muitos amigos e conhecidos levavam comida e outras provisões todas as manhãs, mas aqueles presentes não eram para Salmom nem para Miriã. Eles eram para Raabe. Sonolenta, ela ficou confusa enquanto uma mulher após a outra lhe dava oficialmente as boasvindas a Israel. No início da tarde, pilhas de presentes a cercavam: amêndoas, bolos de mel, lãs, corantes naturais, óleo de oliva, um pente adornado. E as mulheres não paravam de chegar.
Salmom se sentou perto dela quando as visitas diminuíram. Você tem mais convidados do que eu hoje.
Ela mexeu a cabeça. Eu não entendo. O que aconteceu? Semana passada essas mulheres não podiam nem ficar ao meu lado. Agora, elas estão me enchendo de presentes.
Ele pegou a mão dela e a coloca sobre a dele. A palma estava esfolada e machucada em algumas partes, e ele passou o polegar levemente pela superfície. Um arrepio correu pelas costas de Raabe e ela puxou a mão. Salmom se recostou com uma expressão enigmática. Você salvou a vida de Ana e elas sabem que você não ganharia nada com isso. Eu suponho que, finalmente, elas reconheceram que te julgaram mal.
Raabe pensou nos acontecimentos estranhos que levaram àquela mudança de situação. Mal posso acreditar que vou dizer isso, mas tenho que agradecer àquela cobra. Deus não respondeu exatamente às minhas orações, mas Ele certamente me concedeu algo bom pela presença daquela cobra.
O que você quer dizer?
Quer saber a verdade? Ontem eu estava muito decepcionada com Deus. Eu queria que Ele fizesse a cobra ir embora; foi para isso que eu orei, e sei que Ele poderia ter feito isso facilmente. Ele poderia ter feito aquela criatura se virar e fazer uma visitinha aos parentes no Egito ou qualquer outra coisa. Mas, em vez disso, ela ficou parada lá como se fosse uma parte daquela pedra, recusando-se a e mexer, apesar das minhas orações e dos meus pedidos. Por que o Senhor não responderia ao meu clamor? Ele conhece as minhas limitações. Qual seria o objetivo de me fazer enfrentar uma cobra venenosa?
Mas foi ela que aproximou a mim as mulheres de Israel. Por eu ter lutado para salvar a vida daquela criança, as mães de Judá agora pensam coisas boas a meu respeito. Deus poupou a vida de Ana e a minha, mas fez isso de uma forma que me ajudou mais do que eu imaginava se tivesse feito as coisas de acordo com a minha vontade. Naquele momento, eu só pensava na segurança de Ana. Deus tinha um plano maior, um plano no qual eu jamais teria pensado.
Salmom se inclinou para frente até seu rosto ficar próximo ao de Raabe. Ela respirou fundo, incomodada por aquela aproximação. Seus olhos, grandes e castanhos, tinham pequenas manchas escuras. Ela sentiu como se seu coração pudesse ser capturado por aqueles olhos, dominado como um cavalo selvagem nas mãos de um treinador experiente. Ele sorriu de leve, como se estivesse lendo seus pensamentos, e Raabe se virou. Salmom levou os dedos até o rosto dela e habilmente o virou em sua direção. Não vire o rosto. Eu quero te contar uma coisa.
Meu senhor?, resmungou ela.
Eu gosto do seu jeito de ver Deus em tudo. É uma qualidade rara e eu gosto de verdade... disso.
Capítulo Dezoito
Sem sono, Salmom se recostou na pilha de almofadas em suas costas. Era madrugada e ele estava deitado na própria esteira, um luxo que ele desfrutava depois de duas semanas em casa. Josué se recusou a permitir que ele voltasse a fazer as tarefas mais pesadas, incitado pelas precauções cautelosas de Zufe. Assim, Salmom evitava o treinamento militar e as longas viagens. Mas em todos os outros aspectos, sua vida tinha voltado ao normal, e, para seu desespero, ele parecia insatisfeito com uma rotina que parecia completamente satisfatória no passado. Um desejo irritante parecia roer seus ossos, e uma sombra de insatisfação oacompanhava em cada passo. Nada o satisfazia.
Ele bateu em um travesseiro no qual estava encostado, tentando ficar mais confortável. O luxo de ficar sem dor, de ter saúde e de estar livre da tenda dos feridos deveria ser o bastante para lhe proporcionar noites tranquilas de sono e dias cheios de gratidão. Mas, em vez disso, ele ficava cada vez mais inquieto com o passar do tempo. Seus múltiplos pensamentos o faziam andar em círculos sem solução.
Todos aqueles pensamentos e aquelas voltas que tiravam seu sono tinham como foco o mesmo assunto: seus sentimentos por Raabe. Ele passara mais de um mês na companhia dela, e havia se acostumado com sua presença, seus cuidados pacientes, suas deduções inteligentes, seu humor, sua ternura e sua fé, resistente como ferro. Salmom cobriu os olhos com a mão. Desde que voltou para casa, ele a evitava. Salmom mandou seu servo com uma pequena fortuna em ovelhas como um presente de agradecimento pela ajuda dela. Porém, educadamente, ela ficou com apenas uma e devolveu as outras. Aquela, disse ela, seria oferecida a Deus como agradecimento pela segurança de Salmom. Ele ficou envergonhado demais para insistir que ela ficasse com o presente, e sabia que seria uma ofensa fazê-lo, pois seria como se quisesse quitar suas dívidas com Raabe, ou como se quisesse pagar tudo sem retribuir com nenhuma emoção e amizade. Portanto, Salmom manteve suas ovelhas para si. Ele ainda não tinha visto Raabe, ou ouvido seu sotaque nem sentido o toque de seus dedos longos por catorze dias. E o que lhe tirava o sono não era o fato de estar em dívida com Raabe, mas sim... amá-la.
Pronto! Ele falou e admitiu para si mesmo, confessando no mais profundo de sua mente confusa. Ele a amava, a desejava e sentia falta dela. Além disso, aquela separação o estava deixando louco. Ó Deus, o que eu devo fazer?
Se ela fosse um outro tipo de mulher, uma filha de Israel, pura, imaculada, não contaminada, ele teria se alegrado por ter aqueles sentimentos. Mas ele começou a temer nunca se sentir daquele jeito por uma mulher - que ele não fora feito para aquilo. Salmom queria desesperadamente viver aquela paixão arrebatadora, e se apaixonar era um de seus maiores desejos pessoais. Naquele momento, seu desejo havia se tornado realidade, mas ele não poderia estar pior. Como ele se sentiria por ter como esposa uma prostituta cananeia? Como seus filhos viveriam em Israel com uma herança como aquela? O que seria de sua linhagem? Deus não a desprezaria? Ele não a diminuiria? Ele não a destruiria com o passar do tempo?
Mais um soco em outro travesseiro desconfortável fez as plumas se acumularem em um canto amontoado.
E, mesmo com tudo aquilo, Josué disse que aprovaria seu casamento com Raabe. Josué permitiria o que Deus não permite? Era mesmo problema de Deus ou era de Salmom? O ciúme, o orgulho extraordinário, a vaidade, seriam esses os verdadeiros monstros que davam origem aos conflitos? Salmom gostaria apenas de uma esposa que todos aprovassem - uma mulher admirável que despertaria a inveja dos amigos e o desejo dos inimigos? Estaria ele, de alguma forma, com medo de ser reduzido pelo passado dela?
Um movimento forte deslocou as almofadas em seu abdome e Salmom as empurrou para se levantar. Na escuridão intensa de uma noite sem luar, ele foi até a entrada da tenda e tentou acalmar a cabeça ao respirar ar fresco.
O orgulho e o passado de Raabe eram obstáculos intransponíveis. O passado dela não poderia ser desfeito em um passe de mágica, e seu orgulho parecia ser tão imutável quanto aquele passado. Ele era o filho de Naassom, líder do povo de Judá que governava setenta mil pessoas! A irmã de seu pai se casara com Arão, o irmão do próprio Moisés. Salmom era primo de algumas das pessoas mais importantes de Israel. Como ele poderia se prender a uma prostituta cananeia?
Então, qual seria sua escolha? Tirá-la do coração e seguir em frente. Ele poderia fazer isso? A lembrança daquele rosto amável tomou conta da mente dele. Raabe era tão bonita para ele; o jeito que ela se mexia, seu sorriso, o jeito de baixar os olhos quando queria esconder segredos. Ele adorava ficar com ela, e sua companhia era agradável para ele. Ele adorava sua vivacidade pelo Senhor. Uma vez, Josué disse que ela era muito dedicada a Deus; sua paixão pelo Senhor era como a dele, e talvez ainda fosse maior em alguns sentidos. Poderia ele desistir de tudo aquilo por causa de seu orgulho?
Confuso, ele se afastou esquecendo-se de que estava usando apenas uma tanga. As cabras em uma pastagem próxima olharam maleficamente para aquela forma nua que perturbara seu sono e se viraram sem interesse, e seu desdém fez Salmom sorrir. Ele desejou ter o mesmo desdém por seus próprios conflitos.
Poderia ele desistir de Raabe? Vê-la casar-se com outro homem, ser carinhosa com ele, cuidar dele, sorrir para ele, dar filhos a ele? Esses pensamentos o fizeram sentir uma raiva tão forte que ele ofegou. Aquela era uma informação nova para ele: o fato de ele ter rejeitado Raabe não significava que outros homens o fariam. Ela era um prêmio, e ele sabia disso. Poderia ele desistir dela? Não. Não. Não. Seu coração e sua mente gritaram juntos. Ao menos nesse momento eles se uniram.
Deus tinha um plano maior, um plano no qual eu jamais teria pensado, disse ele. Aquele amor, assim como a cobra que Raabe enfrentou, representaria um plano maior de Deus? Mesmo antes de Salmom reconhecer que seu sentimento por Raabe era amor, ele orou para que Deus os retirasse do seu ser; ele orou com o mesmo fervor que Raabe deve ter orado para Deus retirar a cobra. Deus aparentemente não atendeu às orações de Salmom, assim como o fez com as orações de Raabe. Talvez Ele tivesse um propósito.
Senhor, diga-me o que fazer! Conceda-me paz. Não posso mais aguentar isso. Ele voltou para dentro e se deitou na cama. Eu farei o que Tu me disseres. Apenas diga-me. Por favor.
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Dividir uma tenda com treze pessoas estava ficando cada vez mais complicado. Depois de anos de independência, Raabe achava difícil viver sem privacidade. Algumas vezes, a total falta de tranquilidade, alternada às expectativas frustradas, ameaçava sufocá-la.
No entanto, havia um ponto positivo nas exigências de seu novo estilo de vida: ela não se focava tanto na dor que remoía sua alma. Enquanto aprendia as leis de Israel com Salmom sob a sombra das palmeiras e cuidava dos ferimentos dele, Raabe se apaixonou perdidamente. Ela não conseguia dizer o momento exato que isso havia acontecido nem conseguia determinar como cometera um erro tão grande de forma precipitada. Ao sair da tenda dos feridos em direção à sua casa, Raabe sentiu-se incompleta, percebeu que havia deixado um pouco de si com Salmom.
Por sua vez, Salmom parecia ter deixado claro quais eram seus sentimentos. Ele não tinha ido vê-la nem ao menos por uma vez depois que os sacerdotes o declararam puro e o mandaram para casa. Ele enviou um rebanho de ovelhas a Raabe para expressar sua gratidão, mas evitava a companhia dela agora que estava recuperado e podia escolher quem mais o agradava como amigo. Sua rejeição doía mais do que saber que ele nunca poderia amá-la. Na tenda dos feridos, eles pelo menos eram amigos; lá ele parecia ter gostado da presença e da companhia dela. Mas, com a liberdade de um mundo que se abria diante dele, Salmom a descartara assim como fizera com suas ataduras maculadas.
Raabe saiu discretamente da tenda de sua família e seguiu por entre o labirinto de tendas em direção ao deserto. Ainda estava muito cedo e sua família estava dormindo, o que significava que ela poderia sair sem ter de dar explicações. Raabe seguiu o caminho com atenção, fazendo menos barulho possível à medida que andava pelo acampamento enorme de Judá, indo em direção a Zebulom. Com exceção de algumas cabras e pessoas que se levantavam cedo, nada se agitava. Finalmente, Raabe chegou até o limite do acampamento de Israel e encontrou o caminho sinuoso que procurava. Ela descobrira que aquele caminho levava a um oásis que, para sua surpresa, felizmente estava muitas vezes vazio. Em meio à sua vida tumultuada por pessoas, o isolamento daquele lugar representava um refúgio que Raabe buscava frequentemente.
Lá, ela podia pensar em Salmom e em suas emoções complicadas. Como ela se permitira ser tão vulnerável àquele homem? Como ele conseguira ultrapassar as barreiras do seu coração e permanecer lá dentro, como se tudo pertencesse a ele? Raabe havia passado sua vida adulta mantendo os homens a uma distância segura, e talvez tenha flertado afastando-se de forma bastante calculada. Pode ser que ela tenha selecionado suas companhias entre uns poucos e até mesmo, algumas vezes, oferecido sua amizade. Ela entretinha os homens com o corpo, mas sempre guardara o coração. Raabe nunca desistira de seu verdadeiro ser, até conhecer Salmom.
Aquele ladrão! Sem esforços, sem intenções, ele levou o que não queria, e nem ao menos poderia devolver.
O que ela deveria fazer? De que maneira sobreviveria àquele amor impossível? De todos os homens da Terra, por que ela se apaixonara pelo homem que mais a desprezava? Ó Deus, cura-me deste amor, eu Te imploro! Poupa-me de mais esta dor.
Raabe fez a última curva do caminho e, com passos lentos, foi até uma palmeira fina. Ela parou de andar. Um homem descansava encostado no tronco da palmeira, de costas para ela; ele deve ter ouvido sua aproximação, pois se levantou abruptamente e virou-se.
Salmom! Raabe quase se engasgou ao falar o nome. O objeto de seus pensamentos incômodos estava diante dela, extremamente bonito em sua túnica branca impecável.
Raabe?
Por favor, perdoe-me. Não percebi que tinha alguém aqui. Com licença. Ela deu meia-volta com vontade de correr para a direção oposta. Raabe esperava que Salmom não pensasse que ela o estava seguindo.
A mão dele a envolveu pela cintura, e Salmom a puxou para perto de si. Espere, sussurrou ele por entre os cabelos cobertos pelo véu. Espere.
Raabe ficou paralisada. O que ele estava fazendo segurando-a daquele jeito? Seu coração batia tão forte que ela estava certa de que Salmom sentiria. Ela permaneceu imóvel por aquele toque, sem conseguir se virar. Salmom colocou as mãos nos ombros dela e a forçou a ficar cara a cara com ele. Eu estava orando exatamente por você quando apareceu, disse ele.
Os olhos de Raabe se arregalaram. Por mim?
Ele deu um sorriso e se afastou dela. Sim, isso mesmo. Você sabia que eu estava aqui?
Ela negou, movimentando a cabeça com tanta veemência que deixou o véu cair. Não, eu juro. Eu não queria te incomodar. Ele estava orando por ela? Provavelmente ele estaria pensando na dívida de gratidão que tinha com ela, por Raabe ter cuidado dele. Se ele falasse sobre isso, ela se irritaria. O que ela fez foi por amizade, ela o fez sem esperar nada em troca. A insistência de Salmom em recompensá-la a insultava.
Venha e sente-se comigo. Quero conversar com você. Ele puxou sua mão e ela tropeçou, querendo desesperadamente estar perto dele e do outro lado do planeta ao mesmo tempo. Ficar com Salmom era tão sacrificante quanto ficar longe dele.
O que ele teria a lhe dizer? Provavelmente, nada que ela gostaria de ouvir. Raabe se sentou perto dele, encolhendo-se com os joelhos no peito e com os braços envolvendo seu corpo até parecer ter dado um nó muito apertado.
Salmom se recostou na árvore em silêncio. Por muitas vezes, ele abria a boca para falar algo, mas depois a fechava, como se não tivesse encontrado as palavras certas. Raabe o analisava sem conseguir entender seu humor.
Eu estava tomando uma decisão quando você chegou, Salmom finalmente falou. Sua voz ficou embargada. Raabe, eu gostaria de que você olhasse para mim enquanto falo com você.
Raabe ergueu os olhos e um medo repentino fez sua boca ficar seca. Que decisão ele teria que tomar em relação a ela? Salmom estava falando como líder de Judá? Ela estaria ultrapassando algum limite desconhecido? Teria ela desobedecido alguma lei, ofendido ao próximo, cometido um erro mortal, fracassado ao agradar a Deus? O que ela havia feito de errado?
Salmom franziu a testa. E seria útil se você não ficasse me olhando com essa cara assustada.
Eu sinto... muito. Raabe vacilava ao escolher suas palavras. Salmom fez uma cara feia. Este foi um começo embaraçoso.
Ainda estou tentando entender o fato de você estar andando por
aqui.
É verdade, eu não sabia que você estava aqui. Nem sonhando eu ousaria te interromper se...
Ele se inclinou para frente e colocou o dedo sobre a boca de Raabe, literalmente interrompendo suas palavras. Ele deixou seu dedo descansar sobre os lábios dela por um instante e depois o tirou, afastando sua mão de forma relutante. Por que toda vez você interpreta como se eu achasse que você fez algo de errado? Eu não acho isso. Acho que você chegou na hora certa e estou feliz por te ver. Isso só confirma a minha decisão.
Confirma? Que decisão?
Tenho pensado muito em você desde que voltei para minha tenda.
Raabe olhou fixamente para Salmom. É mesmo? Apesar de ter se esforçado ao máximo, um tom de sarcasmo infectava suas palavras. Irritada, ela fechou a mão.
Salmom lentamente sorriu em resposta àquilo. Eu senti saudades.
Então, por que nunca mais foi me visitar? Se quisesse, você poderia ter ido com Miriã. Em vez disso, você me evitou e mandou algumas ovelhas.
Eu te evitei porque precisava de tempo para entender meus sentimentos. Ver você apenas me confundiria ainda mais.
Raabe ficou em silêncio por um momento. Você sente algo por mim?
Certamente você já deve ter notado, assim como eu notei que você não é indiferente em relação a mim.
Ela recuou. O quê?
Olhe-me nos olhos e diga que você não me ama. Raabe percebeu a satisfação presumida que coloria seus olhos escuros.
Ela se levantou com um giro na intenção de ir embora, e a vergonha a congelou. Uma coisa era lutar contra sentimentos não correspondidos por um homem, e outra era ter esses sentimentos revelados, denominados e atirados em seu rosto. Salmom se levantou ao mesmo tempo e bloqueou o caminho.
Você vai me ouvir? Ele agarrou o braço dela e a puxou para mais perto.
Eu já ouvi o bastante. Deixe-me ir! Tenho certeza de que você não trataria uma moça da Judeia dessa maneira.
Não, eu não o faria. Mas eu também não pediria para nenhuma moça da Judeia se casar comigo.
O quê?
É isso que estou tentando te dizer. Vim até aqui esta manhã para pensar e decidir o que fazer em relação a você. Talvez eu esteja sendo presunçoso, mas, quando orei, eu senti a aprovação de Deus. E, pela primeira vez depois de dias, a confusão que me afligia se transformou em uma paz inabalável. Eu já tinha tomado a decisão de ir falar com seu pai quando você chegou, quase desmaiei quando te vi. Muitas vezes eu venho até aqui de manhã cedo, e nunca te vi antes. Mas, justo no dia em que eu decidi fazer das nossas vidas uma só, você apareceu. Ver você naquele momento foi como ter uma confirmação.
A cabeça de Raabe começou a girar, e ela começou a digerir a declaração de Salmom - o significado, as implicações, as consequências. Ele estava mudando todo o futuro dela com aquelas palavras; o impossível tinha acontecido. Salmom se apaixonara por ela. Mesmo sabendo de seu passado, ele a desejava. Como uma pessoa paralisada antes da morte, o entorpecimento aconteceu aos poucos. Seu coração não conseguia acreditar.
Você quer mesmo se casar comigo?
O som alto da risada forte de Salmom encheu os ouvidos dela. Em vez de responder, ele inclinou sua cabeça e a beijou. Para Raabe, cuja boca estava selada com a lembrança dos beijos de muitos homens, aquele carinho foi como um choque. Aquele simples beijo e o toque doce e possessivo da carne de Salmom contra a dela fez parecer como se fosse a primeira vez para Raabe. Pela primeira vez, ela beijava um homem que amava, e foi a primeira vez também que houve afeição, desejo e comprometimento mútuos. Ela sentiu como se aquele fosse seu primeiro beijo, e nenhuma outra experiência se comparava àquela. A sensação de ser aceita a envolvia e a consumia. Salmom levantou a cabeça dela e ela suspirou. Raabe estava pasma e desorientada. Ele a observou em silêncio com seus olhos perceptivos um pouco fechados. Você sempre me surpreende, disse ele dando um passo atrás.
Tantas perguntas surgiram na cabeça de Raabe que ela não sabia o que falar. Você me ama de verdade? Você acredita que Deus aprova esse tipo de união? Qual será a reação de Israel a esta notícia? Você esquecerá o meu passado? Josué, lembrou-se ela de repente. O que ele vai achar?
Josué me disse que aprovaria antes mesmo de eu saber ao certo o que sentia por você.
Raabe se sentiu aturdida. Ela esperava objeções sensatas, para não dizer que esperava uma hostilidade sincera. Apesar de sua afinidade com ela, ter um dos maiores líderes unidos pelo matrimônio com uma ex-zonah seria um precedente desastroso, além de ser também um exemplo repugnante. Como ela conquistou a aprovação de Josué? Não sei o que dizer.
Salmom envolveu a cintura dela com o braço. Diga que aceita se casar comigo.
Envergonhada e surpresa, ela respondeu: Eu aceito me casar com você.
Salmom fez um gesto de satisfação e deu outro beijo nela, um beijo intenso e breve que selava sua alegria diante do corpo trêmulo de Raabe. Quando ele se inclinou para trás, ela se apoiou nos braços dele e riu.
Raabe, tenho que pedir uma coisa. Sim?
Eu não quero esperar muito. Somos uma nação em guerra, e certamente haverá outras batalhas. Em Ai, me dei conta de que não sou invencível; eu não quero desperdiçar minha vida esperando.
Raabe levantou a cabeça. Estou confusa com esse pedido. Acho que você precisa de um tempo para pensar melhor. Ela sentiu a pontada de um sorriso por dentro de sua boca. Pensar que um homem como aquele tinha escolhido unir sua vida à dela era quase inacreditável.
Você está assustada com o meu pedido?, perguntou ele. Talvez eu tivesse que segurar minha língua e ter ido antes falar com seu pai, como deve ser. Mas ver você me fez confirmar minha decisão e eu acabei revelando os meus sentimentos.
Você não revelou os seus sentimentos. Você revelou os meus, obrigada.
Salmom deu uma gargalhada e a puxou para perto de si. Desculpe. O que mais eu fiz de errado?
Agora mesmo, está sugerindo um futuro incerto. Você deveria saber que eu não gosto muito da hipótese de ficar viúva antes de me casar. Então, tome isso como um aviso, Salmom Ben Nahshon. Nem pense em morrer.
Farei o meu melhor para isso. Vejo que sim, meu senhor.
Você não vai virar uma esposa mandona, vai? Eu te chamei de meu senhor, não foi?
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Raabe passou o restante do dia em choque. Em momentos repentinos de descrença, ela se perguntava se não teria sonhado com o pedido de Salmom. Depois, ela se lembrava de seus beijos e nunca teria imaginado aquele sentimento. Raabe sabia que Salmom conversaria com seu pai naquela noite para acertar o casamento e o noivado. Depois disso, a notícia seria oficializada, e todos saberiam que Raabe, a cananeia, se casaria com o líder da tribo de Judá.
Ninguém sabia daquele segredo, e sua família a olhava estranhamente, como se ela estivesse andando atordoada por causa de alguma ferida na cabeça; Raabe não ouvia os comentários nem respondia quando eles a chamavam.
Você está doente, Raabe?, perguntou Izzie no início da tarde.
Obrigada. Através de uma nuvem opaca, Raabe se deu conta, depois de dar sua resposta, que aquelas palavras não correspondiam em nada com a pergunta de Izzie. Como já era esperado, Izzie, confusa, olhou espantada para a irmã.
Espanto, Raabeentendia. Àmedidaqueopedidodecasamento que Salmom lhe fez se assentou, como a areia fina após uma cavalgada, Raabe se perguntou como pôde estar tão enganada quanto aos sentimentos dele. Como ela não percebia sua afeição? Nunca lhe ocorrera que aquele homem tinha sentimentos tão intensos por ela. Uma ou duas vezes ela até se perguntou se ele a desejava. Mas aquele pensamento não lhe deu satisfação, pois ela conhecia seu senso rigoroso de honra e o ressentimento que ele sentiria de si mesmo e dela por essa paixão indesejada e inconveniente. Mas amor? Onde aquilo estava escondido?
Raabe sabia que, no caso de Salmom, deveria preservar o relacionamento com ele. Diante do passado puro e imaculado dele, ela se lembrava de seus pecados mais intensamente. Nem com muita imaginação ela conseguia entender que um homem como ele poderia amar uma mulher do estilo dela. Raabe achava que não estava à altura de Salmom.
Ela apenas conseguiria ter segurança depois que eles se casassem. Certamente, quando aquele amor fosse expresso publicamente e quando fosse firmado o compromisso, ela entenderia que era, na verdade, alguém a ser amada por ele? Eles fariam um ao outro felizes no casamento, acabando com as inseguranças do presente e do passado?
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A luz da lua iluminou o caminho de Salmom quando ele foi visitar o futuro sogro. Com ele estava Miriã, com um sorriso de orelha a orelha, e a sobrinha mais velha de sua mãe, Ester, que parecia pálida e abalada. Dentre os parentes de seu pai, todos haviam inventado desculpas para não acompanhá-lo. Josué seguia perto de Salmom e falava sobre os detalhes do noivado. Ele não apenas reafirmou que abençoaria Salmom e sua escolha, mas também se ofereceu para assumir o lugar de pai do noivo. Sua presença aliviou a dor que Salmom sentia por não ter parente algum por parte de Naassom.
Inri os viu primeiro, logo que eles chegaram ao acampamento. Pela sua expressão centrada, Salmom deduziu que Raabe não havia falado nada para preparar sua família para o pedido. Uma sensação de alegria o dominou; aquilo seria interessante. A família, atraída pela imponência de seus convidados inesperados, se reuniu em torno deles e se curvou respeitosamente. Salmom esticou o pescoço para procurar Raabe e sentiu-se decepcionado quando viu que ela não estava lá.
Com seu ar peculiar de autoridade, Josué pediu para ficar a sós com Inri e sua esposa. Na tenda simples da família, os judeus foram tratados com muita hospitalidade. Josué, bebendo um gole de água de cevada, disse: Inri, estamos aqui por um motivo. Estou aqui esta noite como pai de Salmom, e nós viemos para pedir a mão de sua filha.
Inri olhou como se fosse desmaiar. Mão, meu senhor? Como em casamento? É esse tipo de mão?
Exatamente.
Mas seu servo tem apenas uma filha solteira - Raabe. Trata-se dela.
Inri ficou chocado enquanto desviava o olhar para sua esposa. Meu senhor Salmom quer se casar com Raabe?
Foi isso mesmo que eu disse. Então, se o senhor aceitar, gostaríamos de discutir o acordo de noivado.
O consentimento deslumbrado de Inri, à primeira vista, deixou Salmom maravilhado. Mas a vivacidade com a qual ele concordava com cada palavra de Josué e a vontade de satisfazer todos os desejos de Salmom logo o irritaram. O homem praticamente entregou sua filha de graça. Ele nem ao menos negociou o dote, esquecendo-se do quanto aquela atitude a ofenderia. Ele não pediu para Salmom tomar conta de sua filha, como um pai protetor faria, nem nunca insistiu para ver a filha ser bem tratada. Era como se ele não acreditasse que ninguém mais teria interesse em Raabe. Inri não reconhecia o valor da própria carne e de seu sangue? Por que ele não a defendia? Salmom mentalmente começou a se afastar daquela conversa na tentativa de acalmar sua ira crescente. Quando Josué terminou de falar sobre os últimos detalhes do acordo, o noivo mal sabia o que estava sendo acordado.
Era chegada a hora de procurar Raabe, e Miriã se ofereceu para fazê-lo. Salmom parecia ansioso; pensar em ver Raabe o afastava daquela afronta. Quando ela entrou, ele quase ficou sem ar. Ela estava usando um manto simples cor de creme. Em sua cintura fina, Raabe havia amarrado uma faixa que sobressaía as curvas sinuosas de sua silhueta. Ele se levantou, como mandava o costume, pegou na mão dela e a levou para sentar-se perto dele. Embora seu rosto parecesse tranquilo, seus dedos estavam trêmulos e frios como o gelo.
Raabe. Ele a esperou levantar a cabeça. Seu pai aceitou o meu pedido de casamento. Você também aceita? Obviamente, aquilo era apenas uma formalidade. Raabe já tinha aceitado algumas horas antes, e ele sabia que ela manteria sua palavra.
Aceito. A voz dela estava suave e resoluta. O coração de Salmom bateu mais forte.
Seu pai e Josué estabeleceram um acordo de noivado. Eis o dote. Ele colocou a mão cheia de moedas de ouro sobre as dela, e com um gesto instintivo, ela as segurou antes que caíssem no chão. Na verdade, aquele ouro pertencia ao pai dela enquanto ele vivesse, mas Salmom queria que ela soubesse, de forma concreta, que, para ele, seu valor era imenso.
Tenho outro presente. Este pertenceu à minha mãe. Salmom colocou os brincos delicados de ouro, lazulita e pérola por sobre o monte de moedas. Quando saímos do Egito, os egípcios nos deram algumas peças de ouro e prata, e nós demos a maior parte para uso no tabernáculo. Mas muitas pessoas ainda guardaram algumas peças como recordação daquela fase de nossa história. Eu me lembro da minha mãe usando esses brincos, e eu ficaria feliz de vê-los em você.
Com um impulso quase descuidado, Raabe deixou cair as moedas de ouro que Salmom havia colocado em suas mãos e examinou os brincos cuidadosamente. Você está me dando as joias da sua mãe?
Elas ficarão lindas em você.
Raabe afagou as frágeis contas de ouro e lazulita que pendiam da peça maior, e seus dedos permaneceram por sobre a pérola que havia no centro de cada brinco. Salmom viu que ela estava feliz. Se comparados ao valor das moedas, os brincos não eram nada. Mas, mesmo assim, eles eram mais importantes para ela. Você está me dando as joias da sua mãe?, perguntou ela. Raabe se comoveu com o valor sentimental do presente, e ela o valorizou tanto porque eles iam além do valor material.
Salmom se viu olhando para ela com uma alegria evidente. Seu interesse era visível, e houve alguns sorrisos reprimidos e olhares expressivos direcionados a ele.
Salmom pigarreou e se levantou. Está ficando tarde. Ele estava feliz por ter determinado um tempo curto de noivado. Seriam três meses torturantes. Voltando-se para Raabe, ele fez a promessa tradicional. Prepararei um lugar para você e voltarei novamente para te ver.
Capítulo Dezenove
Miriã, Izzie e Abigail acompanharam Raabe até seu banho mikvah na manhã do dia de seu casamento. O rio Jordão estava tranquilo e, mesmo com a água gelada, dispunha de vários pontos seguros para se banhar. As mulheres foram até um local reservado e arrumaram suas coisas na beira do rio.
Logo que Raabe entrou na água, seus dentes começaram a bater. Ela respirou fundo antes de mergulhar para molhar a cabeça, e tinha certeza de que seus lábios estavam azuis quando ela saiu. Aqui está um gelo!
Izzie sentou-se na margem do rio com os pés na água. Não se preocupe. Seu noivo te esquentará hoje à noite. Todas elas riram, exceto Raabe, que lançou um olhar repreensivo para a irmã. Havia ninguém com quem ela poderia compartilhar a sensação de nervosismo por causa do que aconteceria mais tarde. Quem compreenderia o fato de uma zonah cananeia estar nervosa na noite do casamento? Nem mesmo ela conseguia entender direito a si mesma. Ela sabia apenas que as piadas bobas de Izzie despertavam um medo grande demais.
As mulheres não ficaram por muito tempo no ritual de imersão do mikvah, pois a água estava muito fria. Logo depois de terem se lavado e proferido as palavras de bênção, elas saíram da água e vestiram roupas limpas. Depois, todas acompanharam Raabe até a tenda de seus pais a fim de prepará-la para o banquete de casamento.
Para o casamento, Raabe decidiu pegar emprestado com Izzie um manto tecido com linho de cor azul-clara. Já em sua tenda, Izzie pegou a roupa e Raabe se surpreendeu. Em algum momento, durante as últimas semanas, Izzie secretamente bordou na bainha e na gola algumas pequenas flores brancas.
É para ficar com você, disse Izzie com um sorriso amável. Miriã, que aparentemente fizera parte da conspiração, presenteou Raabe com um cinto feito de flores prateadas.
Eu preparei este cinto para você usar no dia do casamento desde quando Salmom me disse que se casaria com você. Quando Izzie o viu, ela pensou em decorar o vestido de casamento para que tudo combinasse.
Apesar de viver anos vestindo roupas de seda ornadas e coisas de ouro, Raabe nunca se sentira tão bem vestida. Abraçando Miriã e Izzie, ela sussurrou: Eu não poderia ter roupas mais lindas. Nunca esquecerei da generosidade de vocês.
Fizemos isso porque te amamos, disse Miriã. Sabe, é uma pena esconder tanta beleza sob esse badecken. Mas, em Israel, as noivas precisam se cobrir com um véu opaco.
Ele vai ser bem-vindo. Pensar em centenas de pessoas olhando para mim durante horas me faz querer sair correndo. Mas, antes de vocês colocarem em mim, preciso de mais uma coisa. Raabe pegou os brincos que Salmom lhe deu e os colocou. Mexendo a cabeça para fazê-los tremular, ela disse: Agora estou pronta.
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Inri, Joa, Karem e Gerazim carregaram as vigas do dossel de Raabe enquanto ela seguia em direção à tenda de Salmom. Hanani e Ezra, que foram buscá-la com gritos de eis que chega a noiva, seguiam à frente. No meio do caminho, Salmom os encontrou e entrou no dossel com Raabe.
Ele apertou a mão dela. Raabe, que ficava mais nervosa a cada passo, deixou sua mão entre a dele, mas não a apertou.
Eu poderia dizer que você está linda, mas não consigo ver nada. Estou surpreso por você não ter tropeçado e caído. Como conseguiu andar com isso no rosto?
Raabe percebeu que Salmom estava fazendo o melhor que podia para distraí-la e acalmá-la, mas ele não estava conseguindo. Sua aproximação a deixou ainda mais nervosa, mas ela não queria que ele notasse sua tensão. Mais do que qualquer outro na Terra, ela amava aquele homem e queria fazê-lo feliz. Raabe se esforçou para parecer normal quando respondia. Fui seguindo o cheiro do óleo perfumado de Hanani. Acho que ele usou todo o óleo que tinha para o nosso casamento.
Salmom apertou a mão dela novamente. Você consegue ver aquelas luzes brilhando à frente?
Sim.
É um caminho enfileirado com tochas dos dois lados. No fim do caminho, Josué e Calebe estão nos esperando para derramar sobre nós as bênçãos do casamento.
Bom.
Então, eu tirarei seu véu. Perfeito.
Você não está muito falante esta noite. Estou começando a achar que seu pai está me trapaceando, assim como Labão fez com Jacó. Não é a Izzie que está aí embaixo, é?
Não. Gerazim não gostou muito dessa ideia. Certamente, você vai se casar com a Raabe.
É ela que eu quero.
O suor cobria a testa de Raabe por debaixo do véu, e ela estava ainda mais nervosa. O que eu estou fazendo? Isso é loucura. Nunca vai dar certo. Seria tarde demais para sair correndo? Ela pensou no impacto que aquilo teria para Salmom, o homem que ela amava com todas as suas forças. Como ela poderia humilhá-lo daquela maneira? Mas se depois de casados, ela o decepcionasse?
Seus pensamentos estavam tão confusos que ela mal notou que já havia chegado até Josué e Calebe. Os convidados do casamento encheram todo o lugar. Josué começou a proferir as sete bênçãos e Calebe o seguiu. Raabe ouvia dispersamente algumas partes. Para honrar, amar e manter a verdade... Eu abençoo a união... Que eles sejam felizes...
Uma tonteira começou a invadir os sentidos de Raabe. Acabado o momento das bênçãos, ela foi conduzida três vezes em um círculo em volta de Salmom. Raabe se moveu desviando sua atenção do que acontecia, de Salmom e de si mesma. O pânico a cobria como um óleo congelado. Depois, ela parou e Salmom levantou o badecken opaco, jogando-o no chão. Ela piscou para Salmom e ele se inclinou para beijá-la; foi um beijo puro e cheio de promessas. Um leve tremor de segurança a invadiu e, inclinandose para ele, Raabe falou para si mesma que tudo ficaria bem.
As pessoas se alegraram e se amontoaram parabenizando os noivos. Salmom, talvez por ter sentido o corpo estremecido de Raabe, a colocou em seus braços e lhe deu um abraço revigorante. Vamos começar o banquete. Depois, podemos fugir e ficar a sós por alguns minutos. Tenho que te contar uma coisa.
Raabe apenas seguiu Salmom. Ela colocava os pés onde ele colocava os dele, sorria quando ele sorria e levantava seu cálice quando ele levantava o dele. Depois, Salmom a tirou do meio da multidão e, de alguma forma, conseguiu levá-la a um lugar mais isolado.
Sem delongas, ele perguntou a ela: O que houve? Você está tremendo. O que há de errado?
Raabe não sabia o que dizer, pois nem mesmo ela conseguia entender o motivo de suas reações. Acho que tenho medo de você ficar decepcionado e se arrepender de tudo isso, confessou ela.
Salmom lhe deu um abraço forte. Isso não vai acontecer. Ele se afastou ainda com as mãos nos braços dela, fazendo uma ponte entre os dois. Raabe, eu deveria ter falado isso antes, mas estive tão ocupado durante esses três meses, e nós mal conseguimos ficar sozinhos. Eu quero que você saiba uma coisa. Seu passado está morto para mim, e está morto para nós. Nunca mais fale sobre ele. Nunca toque nesse assunto. Eu não quero mais me lembrar dele. Eu te conheço pelo que você é agora, e aquela outra Raabe não existe. Nós construiremos nossa vida hoje e enterraremos o passado.
A boca de Raabe ficou com um gosto estranho. Ela sabia que o objetivo daquele discurso era fazê-la se sentir melhor e mais aceita. Seu marido estava tentando fazê-la se sentir segura, mas suas palavras tiveram o efeito contrário. De que jeito ela poderia enterrar seu passado? De que forma ela o isentaria de suas lembranças? E se ela dissesse ou fizesse algo que, sem intenção, despertasse as memórias daqueles tempos? Em vez de fazê-la sentir-se firme e estável, as palavras de Salmom lhe imputaram uma angústia profunda.
Sem saber que suas palavras fizeram Raabe ficar ainda mais deprimida, Salmom a envolveu em um abraço acolhedor. Temos que voltar para o banquete, senão as pessoas irão embora. Teremos sete dias ininterruptos de festa de casamento, e, se não voltarmos logo para lá, seremos alvo de todas as piadas e obscenidades em Judá por um mês.
Raabe respondeu com a cabeça sem conseguir falar.
Para a noiva, o banquete de casamento parecia um pesadelo. Mais do que tudo, ela queria ir para um lugar tranquilo e pensar nas consequências da declaração de Salmom. Mas não havia como fazer aquilo na noite mais importante de todas. Todos os seus sorrisos eram falsos e todas as suas palavras eram proferidas distraidamente. Ela agia sem sentir, e a única coisa que conseguia era ter medo - medo de não corresponder às expectativas e desejos do marido. Medo de, no fim, ser descartada pela única pessoa que lhe dera aceitação e uma nova esperança no futuro.
Por pior que fosse o banquete, ir para o dossel foi péssimo. Lá, seu casamento seria consumado. Lá, ela seria praticamente uma prisioneira durante sete dias e noites com seu marido. Lá, ela teria de deixar seu passado de fora, impedindo-o de deitar-se em sua cama. Como faria aquilo?
A tenda de Salmom fora preparada para ser o quarto do casal. Miriã decorou tudo cuidadosamente antes de sair para ficar durante dois meses na tenda de sua amiga Elisabete. Como Raabe desejava desesperadamente a presença de sua cunhada! Mas apenas o noivo e a noiva podiam entrar no quarto.
Finalmente sozinhos, Salmom segurou o rosto dela e juntou seus lábios aos de Raabe, beijando-a com uma paixão que ele guardara nos meses anteriores. Minha linda Raabe, sussurrava ele. Das outras vezes, ela se derretia em seus braços e seus beijos eram a experiência física mais maravilhosa que ela vivera. Mas, naquela noite, as palavras dele ecoavam em sua cabeça, palavras que ela já conhecia. Nunca mais fale sobre aquele assunto, disse Salmom sobre o passado dela. Bem, se ela retribuísse apaixonadamente seus beijos, isso não o faria se lembrar? Se ela correspondesse de alguma forma, ele não se perguntaria de que jeito ela aprendera? Raabe havia cultivado um pensamento de que ela não o merecia, desde os primeiros dias de sua união. Na verdade, ele se daria conta de suas imperfeições e ficaria decepcionado e desiludido. As palavras dele naquela noite confirmavam todas essas suspeitas. Na intimidade daquela cama, ele veria as faces refletidas de seus pecados do passado, e Salmom a odiaria por isso.
A cada novo pensamento, Raabe ficava ainda mais paralisada pelo medo. Ela estava petrificada em seus braços e Salmom se sentiu confuso com aquela frieza. No primeiro momento, ele entendeu aquilo como nervosismo normal do casamento e falou palavras reconfortantes. Ele a deitou em uma colcha coberta com pétalas brancas e rosas, e a beijou muitas vezes. Raabe ficava cada vez mais paralisada a cada toque, e quanto mais ele tentava fazê-la reagir, mais ela se fechava.
Finalmente, Salmom se afastou. O que há de errado? Sua voz não parecia aborrecida, mas confusa e preocupada.
A doçura dele passou por sua pele. Talvez ela não estivesse conseguindo retribuir seu amor de forma apaixonada, mas ficar deitada ali como um cadáver também não o agradaria. O que ela deveria fazer? Raabe não conseguia explicar seus sentimentos, pelo menos não sem levar seu passado para a cama com eles. Estou apenas um pouco apreensiva. Não pare.
Salmom não se mexeu. Ela foi até ele e o puxou em sua direção. Forçando seu corpo a ser o mais maleável possível diante daquela tensão incômoda, ela fez o melhor que pôde para mostrar a Salmom que queria. De certa forma, ela queria. Raabe queria dar a ele tudo o que pedisse, mas estava ligada demais às feridas e aos medos para receber qualquer coisa dele. As amarras de sua escravidão e a incompreensão dele estavam ligadas com tanta força que a consumação do casamento seria uma decepção para os dois. Por fim, Raabe se lamentou silenciosamente por ter de dormir perto de seu marido que ainda estava acordado.
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Os sete piores dias de sua vida estavam quase chegando ao fim. A mulher que ele amava havia se fechado em uma concha, trancada e distante. Depois de várias tentativas desastrosas, ele decidiu parar de tocá-la. Ela virava uma pedra de gelo em seus braços. Na primeira vez que ele a beijou, ela se derreteu como se quisesse, mais do que tudo, ser parte da vida dele. Posteriormente, ela o olhava tão maravilhada que fazia o coração dele bater mais forte. Parecia que ela nunca tinha sido beijada antes, e era como se ele fosse o único homem da Terra.
Agora, quando ele a beijava, ela ficava paralisada. Em um primeiro momento, ele imaginou, com uma incerteza angustiante, que talvez ele não fosse tão competente quanto os homens cananeus com os quais ela havia se deitado. Ele teria algum problema? Pelos anos que fora casado com Ana, ele sabia que provavelmente o problema não era aquele, mas, de qualquer maneira, Salmom se sentiu incitado a perguntar. O olhar apavorado de Raabe, cheio de uma consternação aterrorizante, tinha pelo menos de dar fim àquele dilema pessoal.
Então, ele a pressionou para que ela falasse e explicasse o que estava acontecendo, mas ela ficou muda. Suas respostas eram monossilábicas e parecia não haver entusiasmo. Sua Raabe inteligente e viva havia se reduzido a uma sombra de si mesma. O silêncio ficara pior do que sua falta de reação física, e ela estava afastando Salmom de seu coração. Ele sentiu sua frustração virar raiva; sua raiva virou ressentimento, e este foi a gota dágua. Uma a cada duas palavras que ele dizia era sarcástica, e Salmom sentiu vergonha de si mesmo por tratar sua esposa daquela forma. A vergonha apenas o fazia sentir-se ainda mais ressentido. Mas era ele o ofendido, não era? Por que deveria se sentir mal, então?
Salmom orou e sabia que Raabe também orava. Mas eles faziam isso separadamente, sem nunca ter compartilhado suas experiências um com o outro. As orações dele não lhe traziam alívio; ele sabia que seu casamento não fora um erro, mas, mesmo assim, estava sendo um desastre. Toda vez que orava, Salmom reforçava a ideia de que o casamento fazia parte dos planos de Deus, e estava satisfeito por pelo menos Deus estar feliz. Mas Salmom não sentia felicidade.
Sua esposa passou pelo espaço que seria a sala, onde ele estava descansando. Nos últimos dias, Raabe o evitava o máximo possível, saindo de qualquer lugar em que ele entrasse com uma rapidez que seria engraçada, se não fosse tão decepcionante.
Ela havia deixado os cabelos soltos até as costas, e seus cachos ficavam avermelhados perto das chamas da fogueira. Quantas vezes ele se imaginava passando seus dedos por aqueles cabelos. Por que ele não podia?, a pergunta surgiu de repente. Ela era sua esposa. Salmom não compreendia o que a mantinha tão afastada, mas ele não se renderia mais àquela situação.
Ele foi andando até ela, que logo ficou paralisada por causa da aproximação. Ao ver um vislumbre de pânico no rosto de Raabe, algo fez seu coração se acalmar. Pegando o queixo dela com a mão, ele levantou o rosto da esposa e o virou para ele. Você me ama. Por que está fugindo de mim?
Ela mexeu a cabeça, mas ele a puxou para si. Você me ama.
Diga.
Eu te amo, disse ela obedientemente com o corpo tremendo. Não assim. Diga como se isso significasse algo para você. Diga assim, disse ele cobrindo os lábios dela com os seus, beijando-a com a força de uma paixão reprimida há muito tempo. Foi um beijo demorado que ficou mais intenso e selvagem e, para sua alegria, ele sentiu que ela ficava cada vez mais maleável em seu abraço.
Raabe, sussurrou ele mergulhando os dedos pelos cabelos perfumados dela. Raabe, minha mulher.
Depois de alguns minutos, ele percebeu que ela havia ficado gélida e paralisada novamente. Ele suspirou com frustração e se afastou. Fale! Fale o que te incomoda. Pare de lutar contra mim!
Ela mexeu a cabeça novamente com o rosto pálido. Salmom a empurrou para longe dele e saiu decepcionado. Ele se casou com uma mulher e estava separado dela por um muro. Tentar conquistá-la era como correr a toda velocidade e bater no concreto. Depois de sete dias, ele já estava com feridas suficientes para a vida inteira.
Capítulo Vinte
O rosto de Salmom escondia sua confusão interior. Depois que a semana do casamento havia terminado, pelo menos ele poderia se envolver nas atividades diárias do trabalho. Nos últimos dez dias, ele havia saído de sua tenda antes do amanhecer e voltado depois que já estava escuro. Raabe parecia ficar pior a cada dia, mais distante e mais fechada. Do seu jeito, ela também tentava buscar conforto no trabalho. Ela cozinhava e preparava refeições elaboradas que ele mal se preocupava em provar. Lavava suas roupas e as consertava, tecia lã e até cuidava dos animais, uma tarefa que o pastor e o servo que ele contratou eram capazes de fazer. Mas, diferentemente dele, ela não estava apenas tentando se ocupar com o trabalho. Salmom percebeu com uma amargura que mal conseguia esconder que ela estava tentando apaziguar a situação. Como se o trabalho duro compensasse o fato de ela ter se afastado dele. Raabe achava que poderia conquistar sua aprovação daquele jeito?
Salmom fez questão de evitar Josué durante aqueles dias, preocupado por achar que ele poderia notar que algo de errado estava acontecendo. Mas seus esforços foram em vão certa noite, enquanto ele voltava para sua tenda. Josué, que aparentemente havia saído de repente, foi andando ao lado de Salmom.
E como está o recém-casado?
Bem, obrigado, mentiu Salmom com uma voz agradável. Então, por que eu fiquei sabendo que você mal fica em sua tenda? Sai antes de o sol nascer e só chega depois que ele já se
foi. Por acaso é desse jeito que um homem recém-casado deve se comportar?
Salmom fez uma cara de desagrado. Se você não se importar, é problema meu a hora que eu saio ou que eu chego.
Eu não me incomodo, tudo bem. Josué envolveu o braço forte de Salmom com sua mão sem manchas de idade. Sabe, há um oásis não muito longe do nosso acampamento. Estou precisando tomar um ar. Você me acompanha, meu amigo?
Salmom não seria enganado pelas palavras amigáveis ou pelo jeito acolhedor de Josué. Ele estava com um péssimo humor e não diria nada. Sem proferir palavra alguma, ele seguiu Josué. Era como se, por consentimento mútuo, eles não estivessem falando sobre o casamento de Salmom no primeiro momento. Eles falaram sobre as doze tribos, sobre questões de estabelecimento, agricultura, política, sobre as possíveis guerras que surgiriam, até que chegaram ao oásis de Josué. Ironicamente, era o lugar onde Salmom havia pedido Raabe em casamento. Ele engoliu sua amargura e sentou-se recostado ao tronco onde havia orado pelo seu futuro.
Josué sentou-se confortavelmente de pernas cruzadas à frente dele. Eu gostaria que você falasse comigo. Vejo que está sofrendo.
Há determinadas coisas que um homem não pode compartilhar. Nem mesmo com você, Josué.
Sem dúvida, você está certo. Mas tem certeza de que esta é uma delas? Ou é o seu orgulho que te impede de conversar comigo?
Salmom apoiou a cabeça contra o tronco descascado da palmeira. Eu não sei. Não sei de mais nada.
Josué estendeu a mão e a colocou no ombro de Salmom. Filho, converse comigo.
Inesperadamente, os olhos de Salmom se encheram de lágrimas - lágrimas de frustração, raiva, desilusão e mágoa. Ele não conseguiu resistir àquela proposta de conforto e sabedoria. Salmom tinha pouquíssima esperança de que Josué mudaria alguma coisa, mas, mesmo assim, pensar em libertar a si mesmo para alguém confiável mostrou ser tentador; então, ele começou a falar, com frases vagas e algumas vezes confusas, mostrando para Josué como estava sendo a sua vida de casado.
Quando terminou, Josué passou a mão na barba. Deixe-me ver se eu entendi. No dia do seu casamento, você falou que Raabe nunca mais deveria falar sobre o passado e nunca tocar nesse assunto, porque você queria esquecê-lo, certo?
Sim. Agora você é testemunha de que eu fiz de tudo que pude para conquistá-la e fazê-la se sentir amada.
Josué cobriu a boca com a mão.
O quê? perguntou Salmom incomodado. Não jogue a culpa disso em mim.
Não é uma questão de culpa. É uma questão de entendimento. Sua esposa precisa saber que você aceita o passado dela, e não que você quer fingir que ele não existiu.
Não vejo diferença alguma nisso.
Mas há uma diferença enorme. Filho, uma mulher precisa se sentir segura. Ela precisa saber que seu marido aceita tudo em sua vida e que, ainda assim, a ama. Ela precisa ser totalmente conhecida, inclusive pelas falhas de seu passado, pelos defeitos de seu caráter e, ainda assim, ser amada; esta é a Terra Prometida do coração de uma mulher. É aí que ela encontra descanso.
E?
Quando você diz à sua esposa que quer evitar qualquer menção ao passado dela, você não está dizendo implicitamente que este é um defeito dela que você não consegue suportar? Que esta é uma parte dela que, para você, é inaceitável? Que você não consegue lidar com isso? Que você não consegue encarar os erros dela e, ainda assim, amá-la? Você não está dizendo que a única maneira possível de amá-la é fingindo que parte da vida dela nunca existiu?
Parece-me que, na melhor das hipóteses, o que você deu a ela foi um amor condicional. O que ela precisa é que você a aceite e a ame do jeito que ela é. Não estou te dizendo para concordar com seus erros, mas ela já sabe muito bem que errou e não precisa de mais ninguém a lembrando disso. Eu quero dizer que você deve olhar para sua esposa com afeição e aceitação, e não para as atitudes dela. Ela precisa ouvir isso de você, e ouvir sempre até que o coração dela acredite nisso. No entanto, você fez Raabe acreditar que ela não pode se sentir segura a respeito do seu amor. É claro que ela não se sente bem o bastante com você, isso sem contar os julgamentos do seu coração. Você ainda fica surpreso pela forma que sua esposa está se comportando?
E existe ainda uma questão muito prática. Quando você diz a uma mulher que nunca mais quer se lembrar de seu passado, isso a coloca em um dilema arrasador. Eu me arrisco a dizer que ela fica paralisada em seus braços porque sente medo de fazer algo que te faça lembrar de que um dia ela já teve outros amantes antes de você, e que, com isso, você a descarte ou pare de amá-la. Você impôs limites ao amor, e ela está tentando respeitar esses limites.
Algo revoltante e complicado surgiu nos pensamentos de Salmom. Com um ressentimento amargurado, ele quis refutar as acusações de Josué e defender-se. Salmom manteve sua boca fechada usando todo o seu autocontrole e, muitas vezes, engoliu a cólera que despertava o desejo impetuoso de se vingar. Josué era sábio demais para interrompê-lo e esperou Salmom se acalmar o bastante para pensar em suas palavras. Elas seriam justas? Essa pergunta se tornou maior do que sua necessidade inicial de vingança. Josué estaria certo?
Quanto mais Salmom pensava, mais ele sentia como se algo tivesse lhe golpeado e tirado o ar de seus pulmões. Salmom começou a se sentir acusado pelas incriminações de Josué. Ele jamais suportaria o passado de sua esposa. Não honestamente.
Salmom resmungou: Enganei a mim mesmo ao acreditar que eu aceitaria a vida de Raabe em Jericó. Agora eu entendo que enterrei o passado, mas que nunca o aceitei. Josué, o que eu preciso fazer? Como vou mudar meu coração? Como vou dar o tipo de segurança que você diz que ela precisa se eu não a tenho em mim? Temer os limites do meu coração é um direito dela. Eles estão lá. Eu odeio o que ela faz. Eu fico arrasado só de lembrar, e não faço ideia de como devo mudar a mim mesmo.
Isso é porque o que você quer não pode ser feito. Pelo menos não por você. Mas para Deus, tudo é possível. Agora que entendeu de verdade o seu coração e aceitou a responsabilidade pelas suas próprias falhas, Ele pode fazer o que deve. Ele pode transformar você.
Eu fiquei tão irritado e ressentido com ela, e, na verdade, eu sou o culpado. Eu não tratei Raabe do jeito que ela merece porque meu amor tem muitas condições e limitações.
Josué levantou uma das mãos. Mas espere. Não foi só você. Raabe também tem sua parcela de culpa. Ninguém pode vir me dizer que uma menina obrigada a fazer o que ela fez aos quinze anos pelo próprio pai não tem cicatrizes na alma. Eu já te disse uma vez, é isso que ela sente com você: que não é boa o bastante. Mas para um casamento funcionar bem, o marido e a mulher precisam reconhecer seu valor para Deus. Mas essa velha mágoa em Raabe pode acabar. Pode até parecer improvável agora, mas Deus pode te usar, Salmom, como uma influência benéfica na vida dela, mas isso se você estiver disposto.
Pensaremserusadocomoinfluênciabenéficapararestauração da vida de sua esposa fez o coração de Salmom bater mais forte. Ele queria isso mais do que tudo. As imagens de ela trocando suas ataduras, limpando as feridas com paciência e purificando a putrefação de seu corpo surgiram em sua mente. Ele conseguiria fazer isso por ela? Ele conseguiria ajudá-la a restaurar seu coração machucado? Mas Deus teria de agir naquele coração endurecido antes, ensinando-lhe a amar de verdade e libertando-o de suas amarras antes que pudesse usá-lo para ajudar Raabe.
Tenho medo de decepcioná-la, confessou ele.
Pois tenha. Não espere que você ou ela sejam perfeitos, Salmom. Os dois cometerão erros nesta jornada. O fato de passar por obstáculos em alguns momentos não significa que o casamento de vocês não dará certo. O que determinará o curso da sua união são as reações diante dessas falhas. Agora, o que você acha de orarmos e pedirmos a ajuda de Deus?
Depois de orar por Salmom, Josué o deixou sozinho para pensar. Já estava muito escuro e Salmom mal conseguia ver a palma das mãos e a árvore definhada que estava diante dele. Uma fraqueza permeou seus membros e ele não conseguia se levantar. Na verdade, Salmom ainda não estava preparado para encarar Raabe. Por força ou instinto, ele entendeu que apenas Deus poderia ajudá-lo naquela batalha. Salmom sabia que, sem orações constantes, ele ficaria desestimulado e distorceria as coisas. Quando ele começou a orar, a imagem de Jericó surgiu em sua mente. Os muros de Jericó - enormes, aterrorizantes, antigos
- invadiram seu pensamento com uma clareza incomum. Esta é Raabe, pensou ele. Ela está presa entre muitos muros - o muro do medo, da rejeição, da solidão, da indignidade.
Mas Deus derrubou os muros de Jericó porque Israel deveria obedecer ao Senhor, e não ao próprio entendimento: ele deveria obedecer a Deus. O Senhor derrubou os muros de Jericó porque Israel persistiu: ele persistiria com sua esposa. Deus derrubou os muros de Jericó porque Ele queria conceder aquelas terras a Israel: Deus queria conceder Raabe a Salmom. Ele acreditava em sua convicção sincera. A liberdade de Raabe fazia parte da vontade de Deus, e aquela vontade os levava a conquistar as vitórias. Assim como ele fora um guerreiro de Deus contra os muros de Jericó, ele também seria um guerreiro de Deus contra os muros que prendiam sua amada esposa. Ele demonstraria a mesma obediência, paciência e persistência, a mesma vontade irredutível de conquistar sua esposa, assim como mostrou na batalha contra as cidades de Canaã. O soldado que havia nele sorria.
Na calada da noite, Salmom lutou contra os próprios julgamentos em relação a Raabe. Certa vez, ele sentiu raiva de Inri por este não reconhecer o valor da filha. Mas, naquele momento, percebeu que ele mesmo deixou de valorizar sua esposa e de reconhecer o valor dela por completo. Ele fez de Raabe duas mulheres: uma amável e querida, e outra manchada pelo pecado e inaceitável. Ela ficou chocada com aquela divisão sem saber como distinguir as duas metades diante dele. Pelo fato de, em seu interior, estar tão envergonhada e diminuída pelo seu passado, Raabe não tinha forças para ir de encontro às recriminações implícitas de Salmom. Ela as considerava justas e guardava para si mesma. Ela acreditava que elas eram a verdadeira representação de si mesma.
Salmom queria amá-la da maneira certa. Ele queria conquistá-la e fazê-la sentir-se segura. Ele queria remover os limites de seu amor até que Raabe sentisse que pertencia a ele e que estaria segura com ele. Por horas, ele orou para que Deus lhe ensinasse a amar Raabe daquela forma. Salmom se arrependeu e confessou. Ele orou até cansar. Depois de algumas horas, dormiu sob a sombra da árvore na qual Deus lhe falou certa vez que ele poderia casar-se com Raabe. Quando o sol brilhou alto no céu azul-claro, Salmom voltou para casa. Pela primeira vez depois de dias, a alegria o acompanhava a cada passo. Ele andou como um guerreiro cujo objetivo é conquistar um território inestimável.
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Raabe deu um salto quando Salmom entrou na tenda deles. Já era manhã. Ele não tinha chegado em casa durante a noite e ela ficara pensando sem conseguir dormir com o passar das horas, apavorada por achar que ele a havia abandonado. Discretamente, ela observava o rosto bonito do marido. Ele lhe parecia impenetrável. Independentemente do humor dele, ela não conseguia decifrá-lo pela sua expressão. Raabe ficou paralisada ao vê-lo sem saber a que atribuir a ausência na noite anterior. No entanto, antes mesmo que ela falasse algo, ele foi diretamente em sua direção.
Salmom ficou muito perto, mas não chegou a tocá-la. Raabe achou aquela aproximação muito imponente, e algo em si mesma queria desesperadamente recuar e dar mais espaço entre eles. Ela resistiu ao impulso sabendo que aquilo o deixaria irritado.
O silêncio dele a obrigou a falar. Você... você comeu alguma coisa? Você quer comer algo? Eu acabei de assar alguns pães. Também tem truta defumada e queijo de cabra.
Deve estar uma delícia.
Aliviada, ela se virou para ir buscar a comida. Ele a agarrou pelo pulso e a aproximou de si. Você pode preparar para nós dois? Pensei que pudéssemos sair do acampamento e passar a tarde a sós.
A sós?
Seu sorriso se estendeu pelo rosto. Foi o primeiro sorriso que ele dava em dias, e o coração de Raabe bateu mais forte ao ver aquilo. Então, essa é a ideia. Você, eu e a comida. Podemos ir até depois da tenda dos feridos. Você costumava andar por ali, se lembra?
Si-si-sim. O que era aquilo? Um pedido de paz? Encorajada, Raabe retribuiu com um pequeno sorriso. Mas a semente de esperança pareceu ter vida curta. Por quanto tempo aquela aprovação duraria? Por quanto tempo antes de ela destruir tudo com uma palavra ou uma atitude errada?
Você gostaria de ajuda com a comida?
Não precisa, eu posso preparar. Obrigada. Raabe se movia lentamente enquanto recolhia um pacote, colocando nele pão de cevada fresco, peixe, queijo e um pote com água. Ela não queria ir, pois sabia que aquilo acabaria em decepção. Ela notou que sua resistência não passou despercebida por ele; Salmom estava bastante observador. Mas, mesmo assim, ele não pareceu perturbado ou irritado. Sentou-se em um tapete assobiando com um som baixo enquanto trocava as sandálias. Quando não pôde mais adiar, ela foi até ele e levou o pacote.
O almoço está pronto. Raabe tentou fazer sua voz parecer despreocupada.
Ah, mas isso não vai dar certo. O quê?, perguntou ela.
Suas sandálias. São delicadas demais para uma caminhada fora do acampamento. Acabarão estragando esses detalhes mais frágeis. Venha aqui.
Raabe o seguiu com o coração batendo mais forte. Ele fez um gesto para que ela se sentasse mais perto, e ela obedeceu. Salmom trouxe as sandálias de caminhada de Raabe e ela estendeu a mão para pegá-las.
Deixe que eu cuido disso. Ele se ajoelhou diante dela e pegou seu pé. Gentilmente, ele desamarrou as sandálias.
A garganta de Raabe secou e ela tentou livrar seu pé. Meus pés estão sujos.
Ele segurou o calcanhar dela com firmeza, sem soltá-lo, enquanto ela relutava. Vendo a determinação nos olhos do marido, ela ficou parada. Ele deu um sorriso cheio de aprovação, tirou suas sandálias e, limpando seus pés com um pano umedecido, colocou suas sandálias mais resistentes.
Não doeu tanto assim, doeu? Por um momento, ele lavou as mãos em um cântaro antes de se levantar. Bem, minha esposa, você vem ou vai ficar aí grudada no tapete pelo resto do dia?
Raabe esqueceu que estava sentada, e uma espécie de confusão invadira sua cabeça. Ele fez mesmo o trabalho dos escravos - lavou os pés dela e colocou cuidadosamente suas sandálias? O que ele seria capaz de fazer, seu marido que representava um mistério para ela? O que ele estava fazendo em casa bem no meio do dia, agindo como se não houvesse nada de errado entre eles? Onde ele passara a noite anterior? Por que ele queria sair com ela? Pelo seu jeito obstinado, ela suspeitava que não descobriria resposta alguma até que ele estivesse preparado para falar. Raabe se levantou e seu coração quase saiu pela boca quando Salmom segurou sua mão, entrelaçando seus dedos com os dela. Ele reduziu o ritmo dos passos imediatamente. Desculpe-me. Eu sempre faço isso com você. Força do hábito, eu acho. Miriã reclama que eu ando muito rápido.
Ele reduziu o ritmo e começou a andar em uma velocidade que fosse melhor para Raabe. Enquanto caminhavam, ele entreteu a esposa falando sobre seu trabalho e expondo os desafios das instalações e da agricultura que aguardavam sua comunidade em um futuro bem próximo. Ele a agradava o tempo inteiro e pedia a opinião dela pensando em suas respostas com um interesse muito sério. Quando eles saíram do perímetro de Israel, Raabe estava mais calma.
Salmom escolheu um caminho que levava a um pequeno córrego que fluía do Jordão. Vamos para o outro lado. Há algumas acácias bonitas, se me lembro bem.
Raabe deu um passo à frente a fim de afundar o pé na água. De repente, Salmom a segurou pela cintura e a levantou em seus braços. Você não precisa se molhar, disse ele sorrindo.
Automaticamente, ela se sentiu tensa. Estar tão próxima dele era uma tortura, e o rosto bonito de Salmom se abrandou. Fique calma. Eu não vou te machucar, Raabe. Em sua voz, baixa e tranquila, não havia ironia. O alívio tomou conta dela, alívio por saber que suas reações estúpidas e incontroláveis não o afastavam, como geralmente acontecia. Raabe não resistiu, mas também não podia esperar de si mesma que colocasse os braços em volta do pescoço dele.
Do outro lado do riacho, Salmom a colocou no chão deixando o corpo dela escorregar pelo dele lentamente. O rosto de Raabe ficou vermelho, mas, se Salmom notou algo, ele não chegou a comentar. O que você acha daqui? Podemos nos sentar naquela pedra sob a acácia enquanto comemos.
Raabe respondeu com a cabeça. Ela aceitaria se sentar até mesmo em um monte de esterco se ele a tivesse levado, de tão atordoada que estava por causa da atitude dele. Salmom entregou o pão e o peixe a ela, mas Raabe sabia que não conseguiria comer. Ela começou a sentir enjoo só de pensar na comida.
Você precisa comer, está perdendo muito peso.
Raabe não percebia a preocupação de suas palavras e apenas se concentrava nas críticas implícitas. Ele achava que ela estava ficando feia? Ele achava que ela estaria perdendo a vaidade? Ela enfiou um pedaço de pão na boca e o engoliu com determinação. Raabe se engasgou e tossiu algumas vezes.
Beba isso, disse ele entregando um copo cheio da água do riacho. Ela bebeu um gole, depois outro, até parar de tossir. Seria bom se você mastigasse antes de engolir. Sabe mastigar? É quando você leva os dentes para cima e para baixo por entre a comida.
Raabe sorriu apesar de estar se sentindo uma tola diante daquele homem. Deve ser falta de prática. De qualquer maneira, você perdeu peso. É bom ver você comer.
Ele ficou mais cuidadoso e reflexivo com as palavras dela. Não tem sido muito fácil para nenhum de nós.
Não.
Raabe, eu te trouxe aqui porque queria conversar sobre nós. A tenda nos traz muitas memórias complicadas. Para que ficássemos mais à vontade, eu quis que viéssemos a um lugar onde pudéssemos conversar abertamente.
Ela sentiu náuseas ao pensar que teria mais uma conversa com Salmom. Agora, ele a pressionaria para dar respostas que ela não podia dar. Ah, nós realmente precisamos fazer isso, Salmom? Estamos passando um dia tão adorável. Não vamos acabar com ele. Ela se levantou e virou as costas para o marido. Tudo nela queria correr - daquele lugar e daquele homem a sondando com perguntas.
Por trás dela, Salmom falou aparentemente calmo e tranquilo. Não podemos fugir disso. Devemos encarar juntos. Eu não te culpo por você se sentir assim. Eu cometi muitos erros, Raabe, e peço o seu perdão.
O coração de Raabe ficou apertado. Uma certeza dolorosa a aterrorizou. Ele queria se livrar dela - se divorciar dela. Era por isso que ele estava pedindo perdão. Foi esse o erro ao qual ele estava se referindo. Não é de se espantar que ele tenha dormido fora e chegado à tenda de bom humor. Ele já estava decidido. E quem poderia culpá-lo? Toda Israel suspiraria aliviada. Ó Deus, eu não posso suportar. Não posso.
Por favor, não, Salmom, pediu ela com o coração na mão.
De imediato, ele estava ao lado dela. Não o que, Raabe? O que é?
Ela quase implorou para que ele não a abandonasse. Mas ela teve uma vida cheia de súplicas e sabia que elas eram inúteis. Por que se humilhar ainda mais naquele momento? Pelo menos uma coisa que ela poderia tentar salvar eram os vestígios de seu orgulho ferido. Raabe abaixou a cabeça derrotada buscando a Deus no silêncio de seus pensamentos. Concede-me a coragem para deixá-lo partir. Você tem razão, disse ela com voz arrasada. É melhor nos separarmos.
Capítulo Vinte e Um
O silêncio que foi ao encontro de sua frase chocante guardava um trovão nefasto. Raabe ficou surpresa ao ver a expressão de desespero no rosto de Salmom. Ele ficou pálido, e uma fina camada de suor surgiu em sua testa. Por que você está falando em separação? Eu nunca falei nada sobre isso.
Mas é nisso que você esta pensando. Tudo bem. Eu não te culpo. Eu acho que não existe outra solução.
Eu nunca pensei nisso. Nunca pensei nessa hipótese e nunca vou pensar.
Ele nunca havia pensado nisso? Raabe se deu conta com um certo espanto maravilhado de que havia o magoado com sua suposição. Ele estava chateado por saber que ela queria terminar o casamento. E por que ela pensara nessa hipótese tão cruel? Fora em nome de seu orgulho. Raabe reagiu como sempre reagia às más surpresas da vida. Ela escondeu seus verdadeiros sentimentos por trás de uma falsa força e, com isso, magoou o homem que deveria amar e proteger. Para se livrar, ela o magoou.
Eu... eu não quis dizer isso, murmurou ela com a voz rouca de tanto arrependimento. Eu pensei que você queria; foi por isso que eu disse.
Salmom respirou fundo. Ela viu o peito dele se enchendo de ar e crescendo, contendo-o como uma bolha prestes a estourar e, depois, expirando; além do ar, ela pôde sentir a tensão abandonando alguns de seus traços. Venha comigo. Venha e sente-se ao meu lado.
Enquanto ela o seguia, Raabe começou a entender que ele não queria a separação. Salmom não queria abandoná-la. Ela foi tomada pelo alívio a ponto de lhe inebriar os sentidos. Raabe o amava tanto que pensar em perdê-lo era pior do que a morte.
Raabe, Salmom começou a falar quando eles se sentaram cara a cara. O que te fez pensar que eu queria me separar de você?
É que as coisas estão muito difíceis entre nós.
Sim, e parte disso é minha culpa. Mas não é porque o nosso relacionamento está difícil agora que eu irei terminar. O que eu desejo é melhorar e viver o casamento que Deus quer que nós vivamos.
Alguns dos nossos problemas aconteceram por minha causa. Eu errei com você, Raabe. Eu não tive a intenção, mas isso não muda as consequências. Eu estabeleci um limite para você e sinto muito por isso. Eu nunca deveria ter falado que queria me esquecer do seu passado, foi uma bobagem. Agora eu entendo que te coloquei em uma situação impossível. O que eu quero é recomeçar.
Raabe escondeu seus pensamentos. O que ele falou no dia do casamento foi um vislumbre de seus verdadeiros sentimentos. Com aquelas palavras, ele mostrou que não poderia suportar os pecados dela ou os pecados cometidos contra ela. Aquelas palavras representavam os verdadeiros sentimentos de Salmom. Eu gostaria que isso fosse possível, disse ela sem pensar direito. Mas não vejo saída. Você não pode mudar seu coração nem pode mudar seus sentimentos apenas porque quer. O meu passado não será apagado. Como eu gostaria que fosse! Mas ele sempre estará entre nós. Dizer isso em voz alta fez Raabe se sentir mais sem esperanças do que nunca.
Salmom se inclinou em direção a ela. Quem disse que meu coração não pode ser mudado? Deus não mudou o seu? Eu não posso mudar a mim mesmo, é verdade. Mas Deus pode me transformar assim como Ele transformou você.
Eu sou a mesma de sempre. Como fui transformada?
Sua vida está sendo vivida de forma diferente, e isso mostra a mudança da sua alma. Você não vê que seu desejo intenso por Deus mostra o quanto Ele te transformou de dentro para fora? Confie em Deus se você não pode confiar em si mesma. Certamente, você não acredita no meu amor - eu sei disso. Você acha que ele fracassará, e que chegará ao fim a decepcionando assim como seu pai fez com você.
Nunca ocorrera a Raabe que a falha de seu pai se refletiria na relação com seu marido. Ela seria mesmo, como fora insinuado, incapaz de confiar em Salmom porque, quando confiou em seu pai, ela aprendeu que nenhum amor dura para sempre? Ela estaria castigando o próprio marido pelos pecados de seu pai? Raabe apoiou a cabeça entre as mãos e suspirou.
Salmom estendeu a mão e mexeu no queixo dela. Vai ser preciso mais do que palavras, eu sei. Você é minha Jericó, terei que ser muito persistente para te conquistar.
De que você me chamou?, ela se desviou dele. É um nome especial para você.
Eu não quero ser chamada assim, ela reclamou com frieza e se sentiu ofendida pela comparação a uma cidade tão decrépita.
Você não quer saber o porquê de eu te chamar assim antes de me proibir?
Não! Sim.
Foi uma imagem que Deus me mostrou. Talvez você não saiba disso, mas, para Israel, conquistar Jericó era praticamente impossível. Os muros eram muito altos. Ele mexeu a cabeça. Como subiríamos? Como os derrubaríamos? Por fim, Deus fez tudo. Nossa missão era marchar dia após dia, ignorando os sentimentos de desânimo e persistindo ao fazer o que Ele nos mandou fazer. Aqueles muros vieram abaixo não por causa da nossa força, mas sim por causa da força de Deus.
Você é a cidade dentre os muros, Raabe. Devido ao meu preconceito e amor limitado, não tive recursos para te conquistar de imediato. Mas Deus está trabalhando em nós dois. Ele está me transformando à medida que busca transformar você.
Então, você se vê como o homem que Deus escolheu para derrubar minhas defesas. É isso?
Se eu permitir que Ele faça. E se você permitir que eu faça. Parece doloroso demais. Você esqueceu de que eu estava lá quando os muros de Jericó foram destruídos. Você quer que eu
passe por isso?
Se isso significa que você será restaurada, sim.
Raabe se inclinou para trás com o coração batendo forte. Ela se encolheu levando os joelhos ao peito e os apertou com os braços. O que você quer fazer?
Salmom olhou para ela de forma decidida, a perfurando com a precisão de uma das facas de Zufe. O que for preciso.
O medo tomou conta de Raabe e ela sentiu que estava ficando pálida. Não sei se posso fazer isso, Salmom.
Você não precisa fazer nada além de aprender a confiar em mim. Aquele que abriu as águas do rio Jordão tem poder suficiente para restaurar nosso casamento. Eu não pretendo desistir, e com o tempo você vai aprender a acreditar nisso.
Havia uma determinação que o cobria como se fosse uma segunda pele. A força de Salmom acabou com a dúvida de Raabe e ela teve a sensação de que sua vida mudaria para sempre.
Salmom se levantou e estendeu a mão para ela. Raabe a segurou sem hesitar. Ele a levantou em um movimento rápido, o que a fez perder o equilíbrio e se apoiar no peito dele. Seus braços a envolveram por um momento maravilhoso, segurando-a, e, em seguida, logo que ela conseguiu recuperar o equilíbrio, Salmom a soltou. A distância fora um alívio para ela, que precisava de um espaço entre eles para se sentir segura. Embora ciente das emoções dela, Salmom não insistiu em carregá-la para atravessar o riacho daquela segunda vez. Abstendo-se de comentários, ele a deixou entrar na água e molhar os pés.
Raabe pensou aliviada que, por enquanto, estava acabado, e que aquela ideia de ele destruir suas defesas estaria aquietada pelo menos pelo restante do dia. Ela achou que havia interpretado mal seu humor tranquilo.
Meses atrás, quando vocês estavam querendo se unir a nós, Miriã me falou sobre o seu pai. Foi ele quem pediu para você virar uma zonah, se não me engano, quando você tinha quinze anos, não é?
Raabe se endureceu perto dele com o coração quase saindo pela boca. Por que ele estava falando sobre aquilo? Sim.
Você quer me contar como foi?
Como marido, ele tinha todo o direito de perguntar o que quisesse a ela. O que haveria de mal em contar a ele? De qualquer maneira, ele já sabia o pior. Não foi ela quem insistiu em revelar os fatos de sua vida antes de se unir a Israel? Ela não arriscou seu futuro em nome da honestidade? Então, o que a impediria naquele momento?
Com Miriã, Raabe dizia apenas o que queria. Ela permanecia no controle, falando a verdade, mas dosando-a. Os fatos sobre os quais ela falava não revelavam seu conflito interior nem sua vergonha. Aquilo seria difícil demais. Raabe sentia como se tivesse magoando a si mesma ao ter de dizer tudo. Mas Salmom queria saber; entender o que se passava na alma dela.
Raabe pensou na decisão de seu pai naquele dia fatídico, a decisão que mudara o rumo de seu futuro. Ela ainda tremia ao se lembrar. Seu próprio pai a considerava descartável. Com uma clareza inesperada, Raabe percebeu que tinha aprendido a concordar com ele. Sua mente o acusava por ter pecado contra ela e o responsabilizava por uma violência que ela jamais cometeria para com um filho. No entanto, no fundo, ela se deu conta de que acreditou na conclusão de seu pai. Ela era descartável. Ela merecia ser descartada, e temia que Salmom percebesse isso ao ouvir sua história. Se seu próprio pai não teve consideração por ela, por que Salmom, depois de ouvir tudo, acharia que sua esposa era digna de valor?
Enquanto eles andavam pelo deserto em direção ao acampamento de Israel, ela sentiu o calor do corpo dele e o seu braço tocando levemente no dela, sentindo a dependência incontestável de sua força. Salmom esperava pelas respostas com uma paciência incomum.
Ele queria que ela confiasse nele. Mesmo depois de confessar que seu amor era limitado e que talvez não conseguisse entender a destruição de sua vida no passado, ele queria ter a confiança dela. Não, ele não. Deus. Ele queria acreditar que Deus estava trabalhando nele e nela.
Era uma questão de fé, então? No passado, ela arriscou sua vida em nome da fé. Raabe havia se convencido totalmente de que o Senhor derrubaria os muros de Jericó e faria o povo de Israel conquistar seus inimigos. Ela não poderia deixar de acreditar que aquele Deus era grande o bastante para conquistar o seu coração e o de Salmom.
As escolhas, então, eram as seguintes: confiar em Deus ou confiar no medo monstruoso do coração dela. E Salmom tinha de fazer a mesma escolha. Era preciso que os dois se dedicassem para que o casamento desse certo. Raabe não poderia controlar as escolhas de Salmom, mas poderia controlar as próprias.
Ela parou no meio do caminho. Eu vou te contar, Salmom. Vou falar sobre o que você quiser saber em relação ao meu pai.
Os olhos de Salmom se encheram de ternura. Ele a levou para uma pedra e os dois se sentaram sob o sol da tarde, pois não havia árvores por perto. Com frases quebradas, lentamente Raabe foi contando sua história. Ela evitou olhar para os olhos do marido com medo de ver frieza ou distanciamento. Ela falou sobre o pai e sobre as circunstâncias que influenciaram em sua decisão decepcionante. Ela não falou muito sobre Zedeque, o homem que contratara seus serviços quando ela estava apenas com quinze anos; ela sabia que ele teria seu dia de prestação de contas. Salmom não deixaria aquele assunto passar despercebido, imaginou ela. No entanto, naquele momento, ela só tinha forças suficientes para falar sobre a escolha de seu pai e de seu papel nos acontecimentos que se seguiram.
Salmom ouviu sem interromper, exceto quando fazia algumas exclamações. Quando Raabe revelou que se recusara a trabalhar no templo, embora aquilo pudesse facilitar muito sua vida, ele afirmou: E mesmo assim você resistiu à idolatria. Não é de se admirar que Deus tenha separado você para Ele.
Era a primeira vez que Raabe contava sua história para alguém. Era purificante falar sobre o assunto, mas outras emoções maculavam o alívio. Exaustão. Vergonha. Culpa. Ela se sentiu exposta e vulnerável. Mantendo o corpo rígido, Raabe se afastou de Salmom. Separar-se dele por escolha própria não doeria tanto quanto ser rejeitada.
Pare com isso, vociferou ele. Pare de se afastar de mim. Salmom a abraçou. Fique comigo.
Raabe se recostou em seu peito com o coração batendo mais forte. Salmom não havia se ofendido. Embora soubesse que ela havia se entregado à proposta do pai sem nem ao menos implorar para que ele mudasse de ideia, ele não a julgou. Ela ajudara seus pais para que eles pudessem ficar com os maiores benefícios financeiros. Salmom sabia disso e, ainda assim, a abraçava com seus braços macios cheios de ternura.
Com um movimento acanhado, Raabe tomou a atitude mais corajosa de toda sua vida. Ela estendeu sua mão para pegar a mão do marido. Isso lhe custou mais coragem do que quando ela escondeu os espiões de Israel, protegendo-os dos soldados do rei. Foi preciso cada milímetro de sua força interior para fazer aquele movimento em vez de esperar que Salmom o fizesse.
Ele agarrou os dedos de Raabe com uma força que quase esmagou suas mãos. Minha esposa corajosa, sussurrou ele e a beijou. Salmom a beijou sem soltar sua mão trêmula, até que ela se entregasse a ele.
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Era sábado e Israel descansava. Ninguém cozinhava. Ninguém trabalhava. Raabe aprendera a adorar o sábado, apesar de, nos primeiros dias depois de ter saído de Jericó, ficar um dia inteiro sem fazer nada com tantas tarefas pendentes parecesse mais frustrante do que reconfortante. Com o tempo, ela entendeu que o sábado era uma expressão do carinho de Deus para com ela. Depois disso, descansava com prazer independentemente das coisas importantes que ela teria de ignorar.
Então, ela se sentou sob o sol fraco do outono com as pernas esticadas e começou a recitar tranquilamente o Shemá enquanto cobria os olhos com a mão direita: Ouve, ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um.
A terra se mexeu levemente. Por baixo de sua mão, Raabe abriu os olhos. Aquilo era estranho; nunca acontecera das outras vezes que havia recitado o Shemá. Distraída, ela começou mais uma vez. Ouve, ó Israel...
A terra se mexeu novamente, mas dessa vez com mais força. O grito de Salmom enquanto ele saía correndo da tenda fez Raabe se esticar. É um terremoto!
A terra voltou a tremer, e daquela vez tremeu sem dúvida alguma. O terror dominou seus sentidos; distraidamente, ela percebeu que as ovelhas estavam se perdendo, saindo dos estábulos pela força dos tremores. Os gritos ficaram mais fortes ao redor deles.
Salmom se atirou ao lado de Raabe e a abraçou. Está tudo bem. Está tudo bem.
Protegida entre os braços do marido, ela começou a sentir que o medo a deixava. Raabe sabia que Salmom não tinha poder algum de controlar a terra e não poderia fazê-la parar de tremer. No entanto, sua presença a fez sentir-se protegida. Ela se agarrou a ele com força por algum tempo.
Acho que acabou, disse Salmom se afastando um pouco. Você está bem?
Sim. E você? Salmom respondeu distraidamente que sim com a cabeça enquanto observava os arredores. Não parece ter causado muitos prejuízos. Foi um pequeno terremoto.
Uma das ovelhas perdidas cheirou o ombro de Raabe. Ela riu, e o alívio fez sua voz ficar mais relaxada. Ela quer voltar para casa.
Salmom sorriu e acariciou a ovelha. Vai ser uma tarefa difícil agora. Felizmente, as ovelhas conhecem a voz de seus pastores. Mas hoje ainda é sábado. Elas vão ficar soltas, isso não vai lhes fazer mal. Cuidaremos delas depois que o sol se pôr.
Alguém deveria ter avisado à terra que hoje é sábado, disse Raabe ironizando, indignada pela interrupção repentina de suas orações do dia de descanso. Ela acha que pode fazer essa barulheira no Dia do Senhor.
Salmom sorriu levemente. Ele abraçou Raabe mais uma vez e uma sensação de paz a invadiu. O próprio Salmom era uma força muito parecida com um terremoto, abalando seu mundo. Ainda assim, ninguém a fazia sentir-se tão protegida quanto seu marido.
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Pouco tempo depois, a paz no lar de Salmom Ben Nahshon teve um fim. Ele havia tido muitos dias difíceis no trabalho ao lidar com uma disputa entre dois homens teimosos que ameaçavam a tranquilidade na tribo de Judá. Suas horas estavam sendo longas e cheias de conversas penosas que faziam seu corpo se arrepiar da cabeça aos pés. Salmom detestava aquele lado de seu trabalho como chefe dos mil homens. Ser mediador o desgastava e quase acabava com sua paciência. Sem se dar conta, ele levou uma parte de sua frustração para casa; aquilo não saía de sua cabeça. As muitas horas de trabalho interferiam em seu momento de oração, e por estar desgastado física e emocionalmente, Salmom estava propenso a brigar com sua esposa em um momento em que estivesse desprevenido.
No meio da noite, um grito o acordou. Devido aos instintos de guerreiro, ele se levantou com uma precaução instantânea. Salmom percebeu que o grito era de Raabe, que estava tendo um pesadelo.
A princípio, ele mexeu gentilmente na esposa, e depois com mais força quando viu que ela não acordava. Raabe! Raabe!, chamou ele com uma expressão de preocupação. Ela acordou com um soluço, e Salmom se inclinou para pegar uma candeia que estava perto. Raabe tremia e estava coberta por uma camada de suor. Ele tocou na testa dela e percebeu que sua pele estava muito gelada. Seus olhos, enormes e vagos, olhavam para o nada.
Foi um pesadelo, disse ele abraçando-a gentilmente. Preocupado, ele notou que ela estava fria como gelo. Puxando uma ponta do cobertor para aquecê-la, ele a envolveu tentando dar uma sensação de segurança ao seu corpo, que ainda tremia.
Ela concordou com a cabeça. Ele a abraçou envolvendo-a como se ela fosse uma criança. Foi sobre o quê, você pode me contar?
Raabe se endureceu e se afastou. Não foi nada. Costumo ter muitos pesadelos.
Fale sobre este. É melhor não.
Salmom deixou escapar um suspiro de irritação. Eles estavam vivendo uma trégua depois da conversa no deserto algumas semanas antes. Ele não a pressionou a contar mais detalhes sobre seu passado. Porém, apesar da recente relação amistosa entre os dois, Salmom esperava mais confiança da parte dela. O que ele teria de fazer para conquistá-la?
Quem estava no pesadelo?, insistiu ele.
Raabe mexeu nos lábios. Salmom percebeu que sua pele estava seca. Zedeque.
Ele reconheceu imediatamente o nome. O ourives. Aquele para quem seu pai te vendeu.
Por um tempo.
Ele abusou de você? Por mais que tentasse, ele não conseguia transmitir tranquilidade na voz. Havia algo a mais em cada palavra. É por isso que você tem pesadelos com ele?
Não. Ele... foi bastante gentil.
Entendo. E é por isso que você acordou gritando no meio da noite.
Acordei gritando porque eu não o queria! Eu não o queria, mas fiz o que ele pediu. Exatamente tudo que ele pediu, você entende? Recompensei todas as moedas que ele pagou. Não me recusei a fazer nada. Ela tirou o cobertor, mexendo-se com agitação, e não mais com medo.
Salmom sentiu seu corpo gelar. Tarde demais, ele se deu conta de que não estava pronto para aquilo. Ele não estava preparado para amar a esposa em troca de suas escolhas brutais. Imaginar que ela obedeceu sem resistir o deixava louco. Ela aceitara a situação. Salmom tentava sentir compaixão por ela, mas o melhor que podia fazer era silenciar as palavras acusadoras que ameaçavam sair de seus lábios.
E depois, quando os três meses se passaram, ele me descartou sem olhar para trás. Ela cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. Ele não me quis mais.
O coração de Salmom bateu tão forte que ele mal conseguia ouvir a própria voz. Você o amava? É isso que está me dizendo?
Ela levantou a cabeça com o rosto gélido e manchado pelas lágrimas. Amar? Ele me dava nojo.
Eu pensei, disse ele com a voz fria como o gelo, Eu pensei que se livrar de um homem como esse seria um alívio, e não motivo para chorar. Eu não te entendo, Raabe.
Ela se jogou na cama como se as pernas não aguentassem mais sustentar o corpo. Eu não o amava, mas era melhor ter ficado com um homem só do que ficar com vários. No fim das contas, acho que eu não era boa o bastante para ele. Zedeque estava satisfeito depois de três meses comigo.
A cabeça de Salmom ficou extremamente confusa. Pensar em outro homem tocando em sua mulher enquanto ela não se manifestava o deixou enjoado, e pensar que ela estava agoniada por causa daquela rejeição o irritou. Raabe deveria ter pensado em maneiras de fazer Zedeque desistir dela, e não ficar tão deprimida devido ao fim da relação. Salmom sabia que deveria confortá-la naquele momento, mas não conseguiu. Sem falar nada, ele pegou um manto para vestir mais tarde e saiu. Apesar de ter ficado arrasado com o choro de Raabe, ele continuou seguindo em frente.
Ao chegar à estrebaria das cabras, ele se sentou no chão apoiando-se na cerca. O cheiro forte de estrume quase invadiu seus sentidos. Salmom sentia mal-estar devido à confusão que o abatia como uma tempestade de vento. Fechando sua mão cheia de calos, ele socou o chão uma, duas, três vezes, até que a dor o trouxe à realidade, fazendo-o parar.
Ele se encolheu levando os joelhos à barriga e apoiou neles sua cabeça. Por poucos minutos, continuou sentindo raiva de Zedeque, de Inri, de Raabe e da vida. De Deus. Por que Tu fizeste isso comigo? Por que Tu a deixaste viver daquela maneira? Por que Tu a trouxeste para minha vida?
O silêncio foi ao encontro de sua fúria. Salmom engoliu em seco tentando evitar que as lágrimas corressem. Pouco a pouco, ele foi parando de sentir o calor da ira. Salmom parou de reclamar e começou a falar. Depois, a ouvir. Quando começou a orar, seu coração mudou e ficou mais tranquilo. Salmom percebeu que, sempre que lutava aquela batalha, ganhava mais uma parte da terra. Ele nunca voltava para onde estava antes. As coisas pareciam acontecer com ele como da primeira vez - as mesmas acusações, o mesmo amor condicional. Mas quando ele os superava, como naquele momento - sendo guiado por Deus e com Ele - Salmom sabia que seus sentimentos passavam por uma mudança verdadeira. Uma mudança permanente. Depois de algum tempo, ele voltou para a tenda e para sua esposa, que continuava chorando no chão, perto do cobertor amarrotado.
Seu coração ficou apertado ao vê-la. Houve tantas ocasiões nas quais ela deve ter chorado - chorado muito. A guerra, a destruição de sua terra, a mesquinhez dos novos vizinhos, seu amor secreto por ele. Ainda assim, ela foi comedida em relação às suas lágrimas. Naquela noite, ela chorava como se não fosse mais parar.
Ele se ajoelhou perto dela e disse: Perdoe-me, Raabe.
Ela mexeu a cabeça e chorou ainda mais, e ele sentiu como se seu choro o despedaçasse por dentro. Você não vai me perdoar?
Não. Quero dizer, sim. Não há nada para perdoar.
Mas é claro que há. Não te apoiei como deveria, mas agora eu estou aqui. Não sou como Zedeque, viu? Estou de volta para ficar com você.
Ela mexeu a cabeça novamente sem dizer nada.
Raabe, para mim é difícil ouvir você falar sobre outros homens, não posso negar isso. E esta noite foi ainda mais difícil, pois estou exausto e porque não orei. Isso não é desculpa - é mais uma explicação. Fiquei com raiva quando eu não deveria ter ficado, e o pior é que provavelmente farei isso outras vezes. Mas, minha querida, eu voltei. Estou aqui e quero você. Eu te quero para sempre, e não sou Zedeque.
Por favor, Salmom, podemos esquecer isso? Vamos voltar a dormir.
A expressão amedrontada no rosto de Raabe mostrou a Salmom que ele teria de encerrar o assunto aquela noite. Ela estava muito frágil para entender o que ele dizia e para internalizar a verdade em suas palavras. Ele se afastou sentindo-se um pouco perdido. No dia seguinte, ele conquistaria aquele terreno e mais. Josué havia avisado que ele fracassaria com Raabe, e que ela também o faria com ele. A vitória, lembrou-se Salmom, não tinha muito a ver com a perfeição entre os dois. Em vez disso, a vitória surgiria de suas reações diante das derrotas.
Tudo bem. Conversamos em outro momento. Venha para a cama. Ele queria, com um desejo ardente, pegá-la no colo e levá-
-la para a cama, que agora estava fria. Mas sentiu que, no estado em que ela se encontrava, nenhuma forma de intimidade a faria sentir-se menos perturbada.
Com movimentos estranhos, ela voltou para a cama. Contendo-se, ele teve um autocontrole imenso para não ajudá-la a levantar-se ou segurá-la. Ele se deitou perto dela tomando cuidado para evitar o contato físico, e não tinha intimidades com Raabe desde suas tentativas frustrantes e estranhas nos primeiros dias de casados. A história que Raabe havia lhe contado sobre seu pai o convencera de que ele precisava merecer a confiança dela antes de sua cama de casal virar um lugar mais acolhedor aos dois. Portanto, ele conteve seus desejos. Ainda assim, Salmom deu algumas investidas para ensinar à esposa a gostar de seu toque. Suas carícias ocasionais não a faziam mais ficar paralisada, e ele já sentia o corpo dela reagir quando ele beijava seus lábios. Naquela noite, ele havia perdido uma parte da terra. A perda o desgastava, pois ele sabia que era por sua culpa. Salmom jurou com determinação que recuperaria o que perdera.
Ele levou um tempo considerável para dormir. Quando acordou, era tarde. Seu café da manhã já havia sido recolhido e sua esposa tinha saído.
Capítulo Vinte e Dois
Raabe precisou de todo o seu autocontrole para manterse parada quando se deitou ao lado de Salmom. Ela não conseguiu descansar e se sentiu apavorada pelos acontecimentos da noite anterior. Era suficientemente humilhante acordar gritando como uma louca, e seu marido deve ter pensado que estava sendo atacado por cananeus na cama antes de perceber que era apenas sua esposa travando uma luta difícil contra seus pesadelos. Como pensar não era o bastante, ela falou sobre suas desgraças.
Pobre Salmom. Até quando um homem honrado aguentaria? Ele não expressou sua ira, mas ela sentiu que sua raiva crescente o acompanhava. Ele havia saído de perto dela e estava chateado. Raabe sabia que ele voltara sentindo-se culpado e mal por tê-la deixado chorando. Sua determinação bem-intencionada de ficar com ela fez com que ele voltasse, mas ele vira um vislumbre de seu verdadeiro coração, e nenhuma boa intenção poderia servir como desculpa para isso. Em um momento de fraqueza, ela revelou sua verdadeira natureza para ele. Salmom foi confrontado com a terrível verdade de que sua esposa era uma prostituta tanto no corpo quanto na alma. Não era bom ficar com ela. E, naquele momento, ele percebeu isso; apenas o arrependimento o mantinha ao lado dela, dormindo até a madrugada.
Raabe começou a orar com um desespero silencioso, dizendo palavras que ela já sabia bem. Bendito és Tu, nosso Deus. Mas ela não conseguiu se concentrar nas bênçãos comuns; os lamentos em seu interior precisavam ser expressos do seu modo. Senhor, minha esperança acabou - acabou. Sou uma decepção e estou distante do meu marido, do meu futuro e do Teu amor. Mas Tu podes restaurar a minha vida. Tira-me desta sepultura de desespero: conceda-me uma vida e uma esperança novas, eu peço.
Suspirando, ela se levantou sem fazer barulho para preparar o café da manhã de Salmom, e depois saiu da tenda com os pés descalços, carregando as sandálias nas mãos para ter a certeza de que não o acordaria.
Felizmente, ela havia combinado com antecedência de encontrar-se com Miriã, o que lhe deu a desculpa perfeita para evitar falar com seu marido novamente. Antes de sair, ela deixou um recado com o servo sonolento que alimentava as cabras, para que dissesse a Salmom o que ela iria fazer. Como uma covarde, Raabe escapou antes que Salmom tivesse a chance de começar uma nova discussão. Ela não queria vê-lo e, durante aquele dia, ela teria um refúgio. Depois, precisaria voltar para ele e suportar o fardo de seu desprezo velado.
Duas vezes por semana, sem falta, Miriã preparava comida, remédios e ataduras para sair do acampamento de Israel e ir até a tenda dos doentes. Ela ajudava qualquer um que estivesse por lá, e muitas vezes nunca os tinha visto antes. Os membros da família, exaustos pelos intermináveis cuidados, aceitavam a colaboração de Miriã com alívio. Zufe e outros médicos respeitavam as habilidades da jovem e confiavam alguns casos complicados a ela.
Durante seus longos dias cuidando de Salmom, Raabe também se sentiu atraída pela tarefa de cuidar dos doentes. Ela descobrira que tinha talento, e saber que poderia ser útil para outro ser humano a maravilhou. Saber daquilo ajudava a superar qualquer repugnância à doença, e então ela pediu para se juntar a Miriã em suas visitas semanais aos doentes, e aquele seria seu primeiro desafio.
Miriã foi correndo ao encontro dela logo que a viu e deu um abraço que faria qualquer um se sentir bem-vindo. Eu senti tanto a sua falta.
Raabe sorriu, separando em um canto de sua cabeça os pensamentos relacionados ao marido, desejando livrar-se deles o quanto antes. Mas nós nos vimos anteontem.
Tempo demais. Você tem ideia do quanto eu sempre quis ter uma irmã?
Raabe gostava muito de quando Miriã se referia a ela como irmã e de quando ela mostrava preferir sua companhia em vez das outras mulheres. Bem, minha irmã, você está pronta para curar algumas pessoas doentes?
Curar, é isso mesmo? Você estabeleceu grandes objetivos para o primeiro dia.
Acho que você consegue fazer isso.
Miriã revirou os olhos. Até o fim do dia, eu vou é te dar um remédio para diminuir essa sua alta expectativa.
A disposição da tenda dos doentes intrigou Raabe logo que ela entrou. Feita de pele de animal tingida com um tom escuro de cinza, a tenda era uma das maiores que ela já tinha visto. Por meio de aberturas nas paredes da tenda, o ar fresco circulava pelo espaço. Cada abertura tinha uma aba que poderia ser fechada quando estivesse frio ou a temperaturas severas. Fileiras de esteiras bem cuidadas se alinhavam ao chão de forma ordenada, separadas em alas por cortinas feitas de pelo de cabra. Os pacientes ficavam em alas específicas de acordo com sua doença. Naquela tenda, havia uma sofisticação que fazia a tenda dos feridos parecer minúscula. Surpreendentemente, poucas esteiras estavam ocupadas, dado o tamanho da população de Israel. Algumas pessoas inválidas gemiam de dor, e seus lamentos já estavam fracos. Outras se sentiam bem o bastante para carregar seu fardo em silêncio. Ainda havia outras que dormiam, refugiando-se na inconsciência. O coração de Raabe amoleceu ao ver o sofrimento deles.
Um cheiro estranho invadiu a tenda - um misto de incenso que constantemente era queimado como higienizador combinado a um mau cheiro de suor, urina e comida estragada. Apenas aquele cheiro acabaria com as esperanças de qualquer um. Ao lado da maioria dos pacientes, os membros da família se agachavam com olhos cheios de preocupação e falta de sono.
Miriã, já acostumada com a aparência e os sons da tenda, parecia imune a tudo.
Raabe sentiu que a vontade de cuidar deles não a havia abandonado. Com passos rápidos e intuitivos, ela aprendia a fazer novas coisas a toda hora. Ela percebeu que Miriã era bem recebida em todos os lugares que ia, mesmo quando estava com estranhos. Em meio aos doentes ela havia conquistado uma reputação, e os pacientes que já estavam lá há mais tempo a recomendavam aos recém-chegados. Miriã, de Judá, é a melhor pessoa para cuidar dos doentes. Será abençoado se ela cuidar de você.
O respeito de Raabe pela jovem que ela chamava de irmã crescia à medida que ela observava suas ações cuidadosas. Miriã não tinha de estar lá, mas ela escolheu ajudar os mais necessitados daquela sociedade. Não havia culpa por trás de sua bondade. Raabe desejou ter pelo menos a metade daquela bondade e ternura, assim como sua nova irmã.
No caminho de volta ao acampamento, já à tarde, Raabe falou sobre sua admiração tentando expressar o grande respeito que sentia pela grande mulher que Miriã era.
Acho que você está enganada, respondeu ela rindo daqueles elogios. Você fala como se, de alguma forma, eu não estivesse vivendo o destino de Adão e Eva, e tivesse chegado a este mundo quase perfeita. Mas isso é uma grande mentira. Minhas falhas encheriam um templo.
Ah, por favor! Que falhas?
Miriã parou de andar. Você está falando sério?
Claro que sim. Você é pura e boa, e não é orgulhosa. Você nunca me julgou, mesmo sabendo tudo sobre mim. Além disso, é engraçada, bonita, bondosa, receptiva. O que mais você quer? Todos gostam de você, e você tem um monte de admiradores.
Eu gosto muito disso. Na verdade, inconscientemente eu muitas vezes me preocupo com o que os outros pensam de mim. E isso, minha irmã, é uma forma de orgulho que Deus desaprova. Eu deveria me empenhar para agradar a Deus e gastar menos tempo e esforço tentando conquistar os elogios daqueles que estão à minha volta. O Senhor tem uma ou duas objeções quanto a ficar em segundo lugar.
Você disse que eu não te julgo. Como posso fazê-lo se estou condenada à minha própria idolatria? Raabe, você não sabe que, quando Deus pede o sangue nos sacrifícios para cobrir as impurezas e a rebelião do povo de Israel, Ele está pensando em mim e em você também? São os padrões de Deus que regem o meu coração, e não uma ilusão de justiça inventada por mim para fazer o que faço. E, diante desses padrões, eu falho todos os dias. Raabe demonstrou incompreensão em seu rosto. Você está exagerando. O que foi que você fez de tão errado assim? Por outro lado, a minha vida... você não pode se comparar a mim.
E não estou comparando. Eu me comparo ao padrão sagrado que Deus estabeleceu para nós. O seu problema é que você se compara a mim, e, com isso, acha que é uma fracassada. Mas o seu padrão está distorcido. De certa forma, cada um de nós está decadente diante de Deus, e a maravilha está nas distâncias que Ele percorre para salvar todos nós de nossa decadência.
As duas caminharam em silêncio pelo restante do caminho, cada uma envolvida em seus pensamentos. Para Raabe, a confissão de sua cunhada a respeito de seus defeitos e pecados serviu como uma revelação. Ela nunca adivinharia que Miriã tinha aquelas sensações, justo ela, que parecia ser a personificação da confiança. Ainda mais curiosa era a percepção que Miriã tinha de Deus. Um Deus que estava tão insatisfeito com Miriã quanto com Raabe. Um Deus que exigia prestação de contas de toda a nação de Israel e julgava cada um dos pecadores, provendo uma forma de acabar com aquele pecado. A ideia de que, diante desse Deus, era igual a Miriã a confundiu.
Já na metade do acampamento de Judá, Raabe se despediu de sua cunhada. Em um impulso, ela decidiu visitar a família, que não via há muitos dias. Sabendo que aquilo seria a desculpa perfeita para adiar o momento em que ela ficaria a sós com seu marido, ela seguiu para a tenda de sua família com mais vontade que o normal. Quando terminou de cumprimentar a todos, Izzie a chamou para um lugar mais reservado.
Venha até aqui, tenho uma novidade, os olhos de Izzie brilharam quando ela agarrou a mão de Raabe e começou a puxá-la de um jeito estranho em meio à confusão de tendas em volta delas. Raabe lançou um olhar desejoso para a tenda dos pais. Ela havia passado a manhã trabalhando e, por quase quarenta minutos, andando pelo deserto. A possibilidade de outra caminhada cansativa pelos becos de Judá a fez se sentir pesada.
Izzie, estou cansada.
E rabugenta, afirmou Izzie com uma motivação espantosa. Para onde você está me levando?
Para lugar nenhum. Quero apenas um pouco de privacidade. Em Israel?
Você venceu. Tudo bem. Eu falo aqui mesmo. Ela parou e segurou as duas mãos de Raabe. Vou ter um bebê!
Raabe ficou de queixo caído. Depois de tantos anos de esterilidade, todos concluíram que Izzie não teria mais filhos. Ela reagiu com alegria. Verdade? Isso é maravilhoso!
Izzie deu pulos. Estou tão feliz! Foi uma bênção do Senhor. Ele abençoou a mim e a Gerazim. Raabe, meu coração quase saiu pela boca, estou muito feliz.
Raabe abraçou a irmã e deu pequenos giros dançando. Sua cabeça deu voltas com a alegria da surpresa. Izzie começou a andar novamente segurando uma das mãos de Raabe, que esqueceu do cansaço e da sede. A alegria a dominou. Enquanto as duas caminhavam saltando pelos becos estreitos, Izzie falava sobre os acontecimentos que a levaram a engravidar, e a história estarreceu Raabe.
Antes do seu casamento, Gerazim e eu decidimos levar um cordeiro ao Tabernáculo e oferecer ao Senhor, como oferta devido ao pecado do nosso filho... nosso maior pecado. Eu estava desesperada para pedir Seu perdão, embora não acreditasse muito que Ele me perdoaria.
Ela colocou a mão no peito como se ele latejasse por dentro. Meu filho. Meu querido filho. Quando penso no que fiz, mal consigo suportar. Quem me dera eu tivesse ouvido você. Sempre carregarei a dor daquela perda.
A mão que estava no peito descansou em seu lado e o rosto assumiu uma expressão visionária. Gerazim e eu fomos ao Tabernáculo com um cordeiro imaculado, o melhor que tínhamos, e o entregamos ao sacerdote. Minhas pernas tremiam de tanta apreensão, e eu imaginei que o sacerdote cuspiria no meu rosto e me expulsaria quando comecei a confessar o que fiz. Ele não fez isso, embora seus olhos se arregalassem um pouco. Quando acabou com os ritos, ele me abençoou e foi como se cada palavra dele fosse uma pedra abrasadora que eu engolia. Eu chorei e me senti como se estivesse queimando. Mas aquela sensação estranha passou dando lugar a uma tranquilidade que nunca havia sentido antes. Minha mente, meu coração, meu ser e meu corpo estavam em paz. Não sei por quanto tempo fiquei nesse estado de calma. Enquanto eu sentia tudo isso, uma convicção invadiu minha alma
- a convicção de que Deus havia perdoado a mim e a Gerazim. Não consigo explicar, sei que não mereço. Mas foi assim que aconteceu.
Eu pensei que havia acabado, e para mim teria sido o bastante. Experimentar o perdão pela primeira vez desde o dia que ofereci meu filho como sacrifício foi maravilhoso demais. Ainda assim, o Senhor tinha mais para me dar.
Eu concebi naquela mesma noite. Esperei desde então para me certificar de que não contaria a ninguém. Gerazim ficou sabendo desde o início, claro, mas você é a primeira a saber, sem contar com ele.
Raabe e Izzie passaram um tempo depois se alegrando pelo bebê, planejando o nascimento dele e pensando em nomes. Muitas vezes, uma delas dava gritos de alegria e envolvia a outra em um abraço apertado.
O sol já havia desaparecido do céu quando Raabe se despediu de Izzie e do restante da família, depois que elas voltaram. Ela teve um dia cheio e confuso. Seu corpo pedia desesperadamente por descanso, mas sua mente gritava. Ela não estava pronta para ver Salmom. Raabe não queria encarar os seus grandes olhos e ver condenação neles, e também não queria olhar seus lábios grossos pressionados, contendo com esforço as palavras. Então, em vez de voltar, ela se sentou atrás da tenda e pensou.
De certa forma, os acontecimentos daquele dia haviam embaralhado muitas suposições em sua cabeça. Ela descobriu que Deus exigia que uma pessoa aparentemente perfeita como Miriã prestasse contas por pecados que, para Ele, eram mais graves do que pareciam para Raabe, enquanto, ao mesmo tempo, Ele perdoava e abençoava pessoas arruinadas pelos piores tipos de atitude, como Izzie.
Raabe suspirou, confusa tanto quanto estava no começo. Ela se deu conta disso quando viu que a lua já estava no céu e de que ela não poderia mais fugir. Pela hora, já deveria ter preparado o jantar do marido. Com passos lentos e pesados, ela entrou.
Raabe encontrou Salmom andando de um lado para o outro na frente da tenda, e ele parou quando a viu. Por onde você andou?, perguntou ele.
Eu pedi para o servo avisar a você...
Ele apertou os dentes até seus ossos quase se deslocarem. Isso foi horas atrás. Miriã já estava de volta desde antes do jantar. Eu fui lá ver. Pelo jeito instável que ele cuspia cada frase, estava claro que a raiva o segurava com garras fortes.
Raabe, precavendo-se, deu um passo atrás. Fui visitar minha família.
Você poderia ter pedido para alguém me avisar. Ele se aproximou até ficar cara a cara com ela. Ela recuou um pouco para observá-lo e percebeu que ele estava tremendo de fúria.
De... desculpe-me, disse ela sem muita convicção e sem se dar conta do motivo pelo qual ele estava tão pálido. Seria porque ela não havia preparado seu jantar? A falta de uma refeição poderia irritar um homem daquela maneira?
Desculpe-me?, gritou ele. Em seguida, fechando a boca abruptamente, ele a agarrou pelo braço e a levou para dentro da tenda. Duas ou três candeias iluminavam o ambiente, e a luz era suficiente para ela ver sua expressão. Com os olhos apertados, as narinas abertas e os lábios pressionados, ele ficou diante dela com as veias do pescoço salientes. Raabe engoliu em seco. Em vez de soltá-la, ele a abraçou com um movimento firme. Você sabe como eu fiquei desde que o sol se pôs sem saber onde você estava?
Você estava preocupado? Era esse o motivo de tanta raiva? Aquela era uma nova revelação. Seus anos vivendo independentemente a ensinaram a ser dona de seu próprio tempo, e nem mesmo os meses vivendo com sua família no acampamento de Israel a prepararam para aquilo. Lá, se pudesse fugir das muitas exigências de seus passos, o tempo era seu. Ela não dava explicações de onde iria ou de quando chegaria. Até onde ela sabia, ninguém se preocupava por ela ter saído por uma ou duas horas a mais.
O que você esperava? Você desapareceu sem dar uma palavra. O que acha que eu pensei? Depois da noite passada, eu... Ele parou no meio da frase e deu um pequeno passo atrás, o que fez surgir um espaço entre eles.
Sua referência à noite anterior fez Raabe ranger os dentes. Depois, ela percebeu que era uma referência de preocupação, e não de acusação. Ele estava preocupado com o bem-estar dela depois daquela noite difícil. Você estava preocupado comigo?, repetiu ela maravilhada. Algo relacionado com aquilo, com o fato de que ele ficara preocupado por causa dela, fez soltar o nó de sua garganta. Peço perdão, disse ela com a voz macia, desta vez medindo as palavras.
Salmom a empurrou para longe dele e virou as costas. Deixe isso pra lá. Acabou.
Mas...
Deixe isso pra lá, já disse. Eu vou dormir. Para a surpresa de Raabe, ele pegou uma manta, um colchão e saiu de perto dela. Abrindo a cortina, foi até o espaço que eles reservavam para os convidados. Boquiaberta, Raabe o seguiu. Ele fez sua cama improvisada com alguns movimentos bruscos e rastejou por debaixo das cobertas. Exceto pela noite em que não voltara, Salmom nunca dormiu separado dela desde o casamento. Nem mesmo depois das piores brigas entre os dois.
Salmom!
Raabe, você precisa do seu próprio espaço. Eu entendo.
Agora você já tem um. Vá até lá e divirta-se. Mas me deixe explicar.
Ele fez um sinal com a mão. Mulher, eu passei o dia inteiro tomando decisões depois de ouvir as explicações dos outros. Estou cansado de explicações.
Raabe deu meia-volta e o deixou. Ela sentiu raiva enquanto voltava para a cama. Seu afastamento irracional e estranho a deixaram com tanta raiva que, por um momento, ela esqueceu de se preocupar com a rejeição. O que o incomodava tanto? Ele perdeu a noção? Por que ele oscilava entre ira, preocupação e arrogância? Foi porque ela chegara algumas horas depois?
Você desapareceu sem dar uma palavra. Sua ausência preocupava o marido. E, durante as horas de espera, ele deve ter ficado ainda mais ressentido por causa da irresponsabilidade dela, desviando-se do medo que o pior acontecesse para a raiva de seu sumiço. Mas insistir em dormir sozinho beirava a infantilidade. Como um homem que aguentou o pior que ela poderia lhe falar se sentiria provocado a tal ponto por causa de um pequeno incidente?
Raabe se revirou na cama. Você precisa do seu próprio espaço, disse ele com a voz calma demais. Ele achou que ela estava o evitando? Na verdade, ela estava. No entanto, ela não estava evitando o homem, sua companhia, sua presença ou sua parceria. Ela amava tudo isso. Raabe estava evitando a decepção, e evitando o arrependimento de ele ter se casado com uma mulher que não era boa o bastante. Será que ele não entendia isso? Teria ele alguma vez a compreendido mal? Ele saiu daquela maneira arrogante porque se sentiu magoado e desprezado? Por ela?
Capítulo Vinte e Três
Sacudir-se na cama não adiantou, e se revirar também não melhorou a situação. A raiva de Raabe há muito tempo desaparecera. Em vez disso, ela lutava contra a ideia estranha de que seu marido confiante estaria pensando na falsa concepção deque ela o havia desprezado.
Certa vez, ele a acusara de esperar que o amor dos dois fracassasse. Bem, talvez isso tenha acontecido um pouco na noite anterior. Ele a deixara sozinha com suas lágrimas demonstrando frieza enquanto saía. Salmom poderia ter ficado ao lado dela. Em vez disso, preferiu saiu.
E quando ela se afastou de casa por todas aquelas horas, será que pensou que ela o estaria acusando como marido? Será que ele achou que ela se afastara de casa porque ele falhou com ela? Que ela o evitou porque estava decepcionada com ele?
Salmom, seu marido feroz que lutou contra o inimigo com uma coragem lendária, que liderava mil todos os dias em tempos de guerra e de paz, cuja confiança parecia inabalável, estava naquele momento dormindo em outro lugar não pelo fato de não desejar sua esposa, e sim porque achava que ela não o queria. Raabe se sentou. Se estivesse certa, ela estaria dormindo na cama errada. E se estivesse enganada, ela estaria prestes a sofrer outra humilhação.
Levantando-se, Raabe ajeitou as vestes e tirou os cabelos dos ombros. Quase sem fazer barulho com os pés descalços, ela foi até o outro lado da tenda e abriu a cortina. Na escuridão, conseguiu definir as formas de Salmom, com as costas viradas para ela. Antes que as dúvidas diminuíssem sua coragem, ela seguiu em frente, levantou as cobertas e deitou-se por debaixo delas. Salmom permaneceu inerte, e seu corpo subia e descia com a respiração, assim como antes.
O que você está fazendo?, resmungou Salmom assim que Raabe relaxou.
Ela deu um pulo com tanto susto que seus dentes bateram. Do-do-do-dormindo na minha cama.
Essa não é a sua cama, disse ele ainda de costas para ela. Minha cama é a mesma do meu marido. Mordendo os lábios,
Raabe forçou-se a levantar a mão. Isso parecia fazê-la pertencer
a alguém. Ela quis mexer a mão e levá-la ao ombro de Salmom. Meu lugar é com você, Salmom. Eu não quero que você se vá.
Ele suspirou. Poucos minutos depois, ele se virou e seu rosto estava tão perto de Raabe que ela sentia a respiração mover seus cabelos. Fique, se quiser. Mas não por obrigação.
Eu queria ficar com você, confessou tentando incutir em sua voz o amor e o desejo, que se tornaram seus companheiros constantes. Em meio à escuridão intensa, Raabe sentiu a mão dele tocando a cintura dela. Com movimentos constantes dos dedos, ele a levou para seus braços e a segurou. Pela primeira vez depois de tantas horas acordada, Raabe sentiu os músculos relaxarem. As coisas que não foram faladas entre eles e que ainda estavam sem solução permaneciam silenciosas e ignoradas naquele momento. Raabe estava feliz por estar com Salmom, envolvida em seu abraço.
Ela sentiu que ele estava tão acordado quanto ela. Minha irmã vai ter um bebê, disse ela compartilhando a notícia preciosa com ele.
Ele apoiou a cabeça na mão. Estou feliz por ela. Izzie ficou estéril por muitos anos, não ficou?
Raabe contou a história de Izzie e compartilhou tudo com ele. Salmom, por que você acha que Deus a abençoou? Ele parece agir de acordo com Sua justiça divina enquanto eu esperava misericórdia e parece derramar misericórdia enquanto eu esperava que Ele aplicasse Sua justiça.
Salmom levou um dos dedos ao rosto dela. Aquele toque simples a fez tremer e notar que ele deu um sorriso fraco antes de mexer em seu rosto. Acredito que nossos pecados pervertem nossas expectativas.
Não entendo.
Quero dizer que, se os feitos de Deus parecem seguir em um caminho que não faz sentido para nós, isso mostra que nossa percepção está errada. Nossas expectativas subitamente são distorcidas. Desejamos as coisas que nos machucam e fugimos das que nos curam. Achamos que Deus é mau e que o mal é bom. Deus trabalha corretamente, mas, para nós, isso é confuso ou, às vezes, parece errado.
Raabe pensou na resposta de Salmom. Você... você acha que a minha percepção sobre o passado também está distorcida?
Salmom ficou em silêncio por um momento tentando escolher as palavras. Acho que ela é um misto de verdade e mentira, o que a faz ser bastante convincente e, no entanto, muito perigosa. Mas é provável que, se você acredita ser merecedora de condenação, talvez o Senhor queira conceder a misericórdia.
Raabe ficou em silêncio. Como sua vida mudaria se ela pudesse, no mais secreto de seu coração, acreditar na promessa que habitava nas palavras de Salmom? Como mulher, esposa, amante, filha, amiga - será que ela se tornaria uma criatura diferente da que era naquele momento se depositasse sua fé na bondade misericordiosa de Deus? Se ela realmente acreditasse que Ele a perdoaria, a aceitaria e a faria ser uma das Suas filhas - sua vida seria transformada?
O cansaço começou a tomar o corpo de Raabe e o sono enuviou seus pensamentos. Em um plano mais superficial de sua mente sonolenta, Raabe sabia que Salmom a abraçava e que Deus também o fazia tão seguramente quanto naquele momento. Em seguida, ela caiu em um sono profundo e ininterrupto.
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Raabe tinha começado a fazer uma túnica de lã para Salmom no dia após o noivado. Ela queria presenteá-lo com algo especial que demonstrasse o quanto ela o estimava, mas tinha poucos recursos. A maior parte das coisas que tinha quando saiu de Jericó foi dada à sua família para a compra da tenda e do rebanho. O que ela poderia dar a um homem que parecia gostar das coisas simples?
Depois, ela notou que Salmom tinha poucas roupas, e que a maior parte delas estava velha e gasta. Ele merecia roupas melhores! Ela pensou em homens inferiores que havia conhecido, homens sem a integridade de caráter que ela tanto admirava no marido, cujo mundo era cheio de riquezas esbanjadoras. Ela estava determinada a fazer algo requintado para ele, algo que demonstrasse o grande valor dele aos seus olhos. Raabe estava determinada a dar o presente a ele antes do inverno, mas infelizmente ela não era muito boa em tecer.
No entanto, Izzie era. A irmã era mais habilidosa, Raabe pensou com um sorriso, enquanto observava os dedos da irmã sobrevoarem uma parte do tecido particularmente difícil. Ela pediu para Izzie ajudá-la enquanto Salmom estava ocupado resolvendo os assuntos de Judá.
Oh. Izzie ofegou de repente e parou de fazer o trabalho.
Raabe se virou para ela preocupada. Você está se sentindo bem?
Vai passar. Ou talvez não. Com licença. Ela correu até um jarro na entrada da tenda e inclinou a cabeça fazendo esforço para vomitar. Depois de alguns momentos desagradáveis, ela se sentou novamente. Em silêncio, Raabe levou para ela um copo de água fresca e um pano.
Passa tão rapidamente quanto chega. Eu me sinto perfeitamente bem agora.
Isso sempre acontece?
Izzie fez um gesto despreocupado com a mão. Nem sempre. Eu passaria o dia inteiro vomitando por esta criança. Vale cada segundo de desconforto.
Logo depois disso, um menino bateu em uma das vigas externas da tenda pedindo permissão para entrar.
Entre, respondeu Raabe.
O menino educadamente tirou as sandálias antes de entrar na tenda. Mestre Salmom me enviou. Ele acha que vai chegar muito tarde hoje e pediu para a senhora jantar sem ele.
Depois de dar um bolo de uvas ao menino por seu trabalho, Raabe se sentou perto da irmã. Esse homem trabalha mais do que qualquer um. Já é a terceira noite que ele não janta.
Talvez ele não goste da sua comida. Eu posso te ensinar algumas coisas se você quiser.
Muito convencida. Carrega uma criança no ventre e de repente acha que sabe tudo. Meu marido gosta muito da minha comida e eu agradeço. Ele tem muito trabalho, esse é o problema.
Izzie ficou séria de repente. Você está preocupada com ele? Raabe encolheu os ombros. Desde que ele esteja comigo, estou satisfeita. Ele trabalha muito, mas há muito a ser feito. Ouvi dizer que Gerazim e meus irmãos também ficaram fora o dia inteiro.
Sim, eles também. Bem, pelo menos você vai ter algumas horas a mais para fazer a túnica. Mais uma semana assim e você termina.
Tarde da noite e apenas com a luz de uma fogueira simples e de uma pequena candeia, Raabe se concentrava na túnica de Salmom, finalmente escondendo-a quando ouviu seus passos do lado de fora da tenda. Ela mal podia esperar pra ver a reação dele quando ganhasse o presente.
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A compilação de muitas noites longas finalmente fez Raabe acordar algumas horas mais tarde na manhã seguinte. Pelos seus olhos turvos, ela viu Salmom sentado em algumas almofadas de plumas, distraidamente comendo bolo de uvas. Ele notou que ela estava acordada e foi andando lentamente até ela.
Dormiu bem?
Ela se levantou apoiando-se em um dos cotovelos. Sim, obrigada. Ocorreu a ela que a presença dele aquela hora na tenda não era usual. Geralmente ele saía muito mais cedo. Você não vai trabalhar?
Não agora. Ele estava diante dela, e Raabe levantou a cabeça para diminuir a grande diferença de altura dos dois. Notando seu desconforto, ele se abaixou na cama com seu quadril perto da perna dela. A aproximação inesperada a confundiu tanto que ela demorou a entender as palavras dele.
Raabe, já se passou uma semana inteira e não resolvemos nossas diferenças. É tempo suficiente. Se não solucionarmos esse problema, será pior.
Raabe omitiu um lamento. Será que ele não viu que ela mal abrira os olhos? Ele não era um homem, mas sim um lobo que investia a cada oportunidade. Posso me lavar antes?, perguntou ela com um tom de rancor na voz.
Se Salmom notou aquele tom, ele não se deixou abalar. Claro.
Ela demorou o mesmo tempo de sempre para se levantar. Ele a observou com olhos frios enquanto ela perambulava até a cortina. Se você não estiver pronta quando eu acabar de comer este bolo, vou te buscar, ele falou lentamente.
Raabe deu meia-volta. A expressão implacável de Salmom mostrou que ele realmente o faria. Com movimentos deliberados, ele pegou um grande pedaço do bolo e colocou na boca. Ela se virou e saiu correndo. Aquele homem enlouquecedor não podia deixar nada passar em branco? Por que ficar se desgastando em um assunto insolúvel logo pela manhã?
Ela se lavou rapidamente e colocou um vestido de lã. Pentear os cabelos exigiria tempo e paciência, e ela estava sem os dois. Raabe afastou seus cachos avermelhados dos ombros na intenção de prendê-los com um cordão quando Salmom apareceu e tirou o cordão de seus dedos frágeis. Acabei de comer o bolo. Aí está você.
Rangendo os dentes, ela se virou para encará-lo. Sobre o que vamos falar?
Zedeque.
Ela fez um gesto com a mão golpeando o ar. Nós já falamos sobre isso.
Nós começamos a falar, mas não terminamos. Eu queria te dizer no que andei pensando, mas não vou fazer isso aqui, parado como uma estátua. Sem esperar para ver se ela o seguia, Salmom entrou novamente na tenda, que estava arrumada com almofadas confortáveis e tapetes coloridos. Raabe o seguiu ressentindo-se a cada passo. Quando ele se sentou em uma almofada, ela decidiu ficar em um tapete. Quando ele esticou as pernas, ela quis encolher as suas. Quando ele se inclinou para frente, ela se inclinou para trás.
Salmom ignorou seus atos revoltosos com a mesma firmeza que teria com uma criança. Vamos conversar sobre o seu pesadelo.
Raabe, que não esperava aquela atitude autoritária com tanta insistência, se levantou. Salmom se levantou na frente dela com um movimento rápido que a surpreendeu. Sente-se. Ele se plantou diante dela como uma parede de músculos e ossos que se recusava a mover-se. Ela perdeu as energias sentindo-se indefesa e sentou-se novamente.
Assim é melhor. Talvez para você.
Verdade. Agora fale sobre o pesadelo. As pessoas têm pesadelos porque temem algo. Do que você tem medo?
De pessoas intrometidas.
Ele a ignorou novamente. Resistir fisicamente não adiantava. Sarcasmo não adiantava. O que faria aquele homem desistir de perseguir seu objetivo? O que o faria entender que ele estava desperdiçando seus esforços e causando muita dor a ela com tudo aquilo?
Você disse aquela noite que teve pesadelos porque cedeu a todas as exigências de Zedeque. Você se rendeu aos desejos dele. O que você disse, embora eu estivesse muito fechado aquela hora para entender, era que você estava envergonhada por ter correspondido. A culpa e a vergonha devem ter te consumido ano após ano, aumentando cada vez mais a cada ato consentido de adultério.
A náusea foi aumentando e obstruiu a respiração de Raabe, e grandes gotas de suor surgiram em sua testa. Não quero falar sobre isso, disse ela rudemente sem conseguir dominar o pânico que a controlava.
Salmom se inclinou para frente. Mas você vai falar. Havia um copo dágua perto de sua mão e ele o levou até Raabe. Beba. Ela se negou com a cabeça. Não me diga não, ordenou ele. Beba.
Ela bebeu, sentindo-se fraca demais para negar.
Está melhor?, perguntou ele enquanto ela dava o último gole.
Não, respondeu ela, mesmo que a água tivesse ajudado a acalmar seu estômago.
Que pena, murmurou ele. Seus olhos estavam obstinados e brandos. Raabe viu que ele continuaria, e ele continuou. Eu acho a culpa um tanto estranha. Às vezes ela é real - a expressão de algo errado que deve ser apaziguado ou perdoado. Porém, algumas vezes nos sentimos culpados por algum defeito que não foi nosso, não foi de fato um pecado. O tipo certo de culpa, aquele que é plantado em nós pelo Espírito de Deus, nos leva ao arrependimento. Ele nos leva à mudança e ao perdão de Deus. Ele leva à paz, Raabe. Mas quando você se sente cada vez mais encurralada pela vergonha e se vê sem saída, sem acesso algum ao perdão e ao arrependimento, você está fechando a porta para Deus e para Sua restauração. Poucas coisas são mais destruidoras do que a vergonha implacável.
Seu problema é que, por dentro, você se sente confusa com a vergonha e a culpa, e, com isso, você não consegue estabelecer a diferença entre elas.
Raabe respirou. Não há nada de errado com a minha vergonha.
Não? Então vamos falar sobre Zedeque. Ele se aproveitou da sua pobreza e da sua necessidade. Se fosse um homem honrado, ele teria ajudado você sem exigir aquele preço egoísta. Em vez disso, ele te usou. Você tinha quinze anos! Ficou presa entre um pai cuja fraqueza superou o amor e um homem cuja luxúria superou a integridade.
Raabe se encolheu. Eu deveria ter resistido a ele. Você mesmo disse isso aquela noite.
Salmom deu um suspiro como se um gigante tivesse pisado em seu peito. Ah, Raabe, nem sempre se pode levar em consideração as palavras de um marido chateado. Esqueça a minha raiva por um momento. Vamos encarar a situação pelo ponto de vista de Deus. Idealmente, isso se aplicaria se você já fosse uma mulher e se tivesse como se impor àquele erro. Sim, você está certa. Você não deveria ter cedido. Mas você era jovem e indefesa. Você aprendeu a obedecer a seu pai e sua mãe, e foi marcada pela necessidade medonha da sua família. E, então, você usou sua inteligência para trabalhar com as normas que lhe foram determinadas. O pecado que você cometeu é nada se comparado aos pecados que foram cometidos contra você.
Raabe queria acreditar nas palavras de Salmom, assim como queria acreditar que ele também acreditava nelas. Sua cabeça começou a aceitar melhor a lógica de seu argumento. No entanto, seu coração não se rendia. Ele insistia em prender-se à vergonha. Raabe não conseguia se livrar da vergonha apesar daqueles argumentos bem-elaborados. Você esqueceu que eu continuei vivendo dessa forma mesmo depois de Zedeque. Mesmo depois que cresci e fiquei independente. Cada palavra, conforme saía de sua boca, tinha um gosto amargo. Por que ela estava falando tudo aquilo para Salmom? Ela estaria tentando fazê-lo odiá-la ou deixá-la?
Eu disse que você precisa determinar quando sua culpa é real e quando ela é imaginária. Miriã me contou sua história, e sempre me impressionei com o fato de uma zonah ter pouquíssimos amantes. Você não poderia ter mais se quisesse?
Raabe evitou olhar para ele. Claro, disse ela irritada por ter de discutir esse assunto com o marido.
Sempre pensei muito sobre isso, Raabe. Você é tão linda; certamente, muitos homens se matariam para ficar com você, não é?
Algo muito parecido com orgulho a acometeu. Sua popularidade fora uma das poucas coisas na vida que lhe dera uma sensação de bem-estar, embora ela fosse passageira. Ali, com seu marido, aquela popularidade não tinha tanto valor; pelo menos não com tantos pecados pendurados como roupa suja diante dele. Os homens me desejavam, disse ela.
E você os negava. Por quê? Você não seria mais rica se tivesse... Salmom parou de falar, buscou as palavras certas e, em seguida, continuou. Se você tivesse um número maior de companheiros?
Por favor! Podemos parar com isso? Ainda não. Responda a minha pergunta.
Ela olhou para ele inconscientemente suplicando. Ele mostrou convicção no olhar. Responda, insistiu ele recusando-se a ceder.
Ela levantou as mãos. Ah, por que você simplesmente não esquece isso?
Responda a minha pergunta. Quanto mais rápido você responder, mais rápido isso vai acabar.
Ela resmungou. Porque eu queria ter o menor número possível de companheiros.
Por quê?
Eu me sentia desamparada - presa em uma vida que eu sabia que não tinha como mudar. Então, tentei limitar o sofrimento. Tentei limitar minha própria transgressão.
Salmom se inclinou e encostou em seu ombro, com os dedos descendo pelo braço dela antes de retirar sua mão. Acho que o Senhor não se esquece de tais escolhas. Ele se lembra dos corações que tentam a todo custo evitar o pecado. Você iludiu a si mesma achando que era indefesa - e que não podia parar. É disso que você deve se arrepender. Você também deve se arrepender dos atos de adultério aos quais essa situação te levou. Mas é preciso abrir mão da culpa que se impõe sobre você como um juiz corrupto, que sempre acusa e condena. Ao aceitar essas condenações falsas, você está as consentindo. O mesmo aconteceu quando eu ajudei os homens de Ai a atacarem a mim mesmo enquanto não os enfrentava. Você precisa começar a lutar contra essa condenação antes de consenti-la.
Eu não sei como. Além do mais, já me arrependi no Senhor e nada mudou.
Isso é porque você não entende Sua misericórdia. Você não acredita, e consequentemente não poderá receber Seu perdão. Você acha que Ele concederia a você a mesma misericórdia que concedeu a Izzie?
Não. Ela olhou desamparadamente para o rosto tranquilo de Salmom.
Ele suspirou. Prometa que você vai pensar no que eu disse.
Raabe deu um grande sorriso. Agora você quer meus pensamentos também.
Ele passou a mão pelos cabelos dela e a puxou para si. Sua boca foi ao encontro da dela com um toque que não tinha escapatória. Perto dos lábios dela, ele disse: Quero você toda pra mim.
Capítulo Vinte e Quatro
Ele era tão irritante. Sempre tocando em assuntos que ela preferia ignorar. Ainda assim, Salmom provava sua firmeza de várias maneiras todos os dias. Até mesmo suas perguntas mais pungentes demonstravam seu interesse por ela. Perturbações à parte, o coração de Raabe o amava mais ainda a cada hora. Ela queria o inundar com alguma demonstração tangível de afeição, mas não conseguia pensar em nada que o agradasse. Um dia, ocorreu a ela o fato de ele não ter tido muitas oportunidades de ficar com os velhos amigos depois do casamento. Quando era solteiro, ele podia se divertir mais casualmente, e Raabe achou que um jantar modesto com os amigos mais próximos poderia agradá-lo. Assim que teve a ideia, ela decidiu pô-la em prática na mesma noite. Raabe sabia que Salmom não gostaria que ela fizesse tudo sem avisar antes, e então ela foi procurá-lo.
Ele ainda estava envolvido no caso difícil entre duas famílias importantes que viviam uma perto da outra, o que agravava o problema, mas isso a ajudou a encontrá-lo com rapidez. Raabe o encontrou sentado do lado de fora de uma tenda marrom luxuosa com os líderes das duas famílias ao seu lado. Um dos homens falava tão rápido que pequenas gotas de cuspe saíam de sua boca, repousando em sua barba e nas vestes de Salmom. De vez em quando, ele gesticulava fazendo movimentos súbitos com suas mãos rubras, falando sobre uma coisa e outra. Salmom permanecia calado com uma expressão vazia. Raabe conhecia muito bem aquela expressão, e significava que ele não estava satisfeito. Ela lamentou pelo homem que cuspia e viu que talvez aquela não seria uma boa hora para incomodar o marido com algo sem importância como um jantar. Ela poderia esperar por uma outra noite. Engolindo sua decepção, ela se virou.
Raabe!
Tarde demais. Ele a vira. Ela se sentiu ridícula naquele momento por ter interrompido uma discussão tão importante para fazer um pedido banal. Ele foi até ela com uma expressão preocupada. Aconteceu alguma coisa?
Não, nada. Desculpe por interromper. Eu ia apenas fazer uma pergunta boba.
Sua interrupção foi bem-vinda, acredite. Faça sua pergunta. Eu pensei que, se você aceitar, poderíamos convidar alguns poucos amigos para jantar. Sua irmã e Ezra, Hanani e Abigail, minha irmã e o marido dela.
É uma ótima ideia. Eu adoraria.
Posso usar uma porção a mais dos grãos para o jantar?
Sua expressão voltou a ficar consternada. Você não precisa perguntar. Os grãos são seus. Faça como quiser, Raabe. Seu tom rude soou como irritação.
A maioria dos homens fica irritado quando as esposas não pedem permissão para usar seus bens.
Salmom se curvou para a frente e levou seus lábios até a orelha dela. Eu não sou como a maioria dos maridos. Você ainda não percebeu isso? E ele saiu antes que ela pudesse responder que havia percebido. E, ah, como ela havia percebido.
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Os convidados chegaram antes do anfitrião, que estava atrasado para o próprio jantar. Quando finalmente apareceu, seu rosto estava muito tenso e seus passos acelerados. Mas, em poucos minutos com seus amigos de confiança e com sua família, ele começou a sorrir e seu corpo relaxou. A alegria invadiu Raabe quando ela percebeu a mudança. Cada momento de preparação do jantar valeu a pena pelo bem que fez a ele.
O jantar, por unanimidade, foi considerado um sucesso. Era fácil agradar os homens israelitas, pois na maior parte de suas vidas eles faziam jantares simples e baratos. E as mulheres queriam aprender a fazer tudo. Já era tarde quando todos foram embora, e Raabe e Salmom foram até o lado de fora para acompanhar seus convidados até uma parte do caminho, como era de costume. Arrumar tudo exigiu tempo de Raabe, visto que ela já havia dispensado o servo para que ele fosse dormir. Ele já tinha ido buscar água fresca, então ela conseguiu lavar a louça com certa facilidade no escuro, usando areia para limpá-la.
Quando ela finalmente se ajeitou e foi para a cama, Raabe viu que seu marido já dormia. Silenciosamente, para não acordá-lo, ela se moveu para perto dele. A última imagem que veio à sua cabeça antes de fechar os olhos foi a do rosto risonho de Salmom diante das respostas espirituosas de Hanani. Ela conseguiu fazer algo que deixasse seu marido feliz.
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Raabe procurou novamente pela esteira, pelos lençóis, pelo chão da tenda e pelas dobras de seu vestido. Nada. Ela mexeu seu véu listrado com um vigor impaciente. Ainda assim, nada. Não havia nem sinal. Ela foi para cama, esqueceu de tirar os brincos e, quando acordou, estava apenas com um deles. Onde o outro poderia estar? Travesseiros remexidos, cortinas reviradas, tapetes do chão verificados por seus dedos que investigavam. Ele não estava em lugar algum. Raabe se deixou cair no chão com o rosto nas mãos. Ela não poderia acreditar que havia perdido os brincos que foram da mãe de Salmom. De tudo o que possuía, aqueles brincos eram o que havia de mais importante para ela. Absolutamente importantes.
Salmom voltou e viu a tenda revirada. Sua esposa estava olhando para o nada e seu vestido estava torto, além da sujeira escura que parecia ter enferrujado seu rosto. Ela estava sem véu e os cabelos caíam em cachos embaraçados pelas costas. Havia um brinco em sua orelha com uma pérola dançando em meio à lazulita. Salmom entrou na tenda e ela não lhe deu atenção. Ele se aproximou e ela continuou olhando para o nada.
Aconteceu alguma coisa?
Ela virou a cabeça. O quê? Não te ouvi. Eu percebi. O que aconteceu?
Ah, Salmom, perdi meu brinco, lamentou-se ela. Esqueci de tirá-los antes de dormir noite passada, e quando acordei eu só estava com um deles na orelha. Já procurei por todos os cantos em vão. Não consigo encontrá-lo!
Eu sinto muito.
Ela fez um som engraçado com a garganta e levantou as mãos em desespero. Ele sentiu que a angústia dela era sincera. Eles não tinham tanto valor assim, Raabe.
Tinham para mim! Eu te ajudo a procurar.
Eu procurei por horas e nada. Ele evaporou. Por onde você procurou?
Eu virei essa tenda de cabeça para baixo. Até mexi nas cinzas da fogueira.
Aquilo explicou a bagunça e a sujeira. Ele se agachou na frente dela. E lá fora? Nós fomos levar nossos convidados e depois você lavou a louça no escuro. Talvez tenha deixado cair antes mesmo de ir para a cama.
Oh. Fagulhas de esperança. Eu não tinha pensado nisso. Vamos lá procurar.
Não, não. Eu procuro depois. Você trabalhou o dia inteiro e deve estar cansado. Venha jantar e eu procuro depois que você terminar.
Era verdade, os brincos tinham valor sentimental para ele. Eles eram de sua mãe, e ele ainda se lembrava dela andando com eles dançando e encostando em seu rosto. Mas o sentimento era superficial. Na verdade, ele preferiria se sentar, beber um copo de água de cevada e comer a comida de sua esposa. No entanto, o desânimo no rosto dela acabou com aqueles planos. Ele se engasgaria com a comida se a deixasse esperar na dor cruciante de sua angústia. Vamos procurar agora, disse ele e a levantou. Seu consentimento sem resistência e a expressão de alívio em seu rosto confirmaram que ele havia tomado a decisão certa.
Salmom decidiu que a melhor estratégia seria fazer uma varredura sistemática da área. Primeiramente, eles passariam lentamente pelos lugares em que haviam estado na noite anterior. O dia foi seco e com areia suficiente para cobrir algo pequeno como um brinco. Portanto, a varredura teria de ser metódica e, para o estômago vazio de Salmom, agonizantemente demorada. Todavia, a busca cautelosa dos dois não teve resultados. Salmom sabia que, depois de uma noite ventosa, nem mesmo cada minuto de busca valeria a recompensa pela qual eles procuravam, mas ele guardou os pensamentos para si mesmo, pois não via razão para desencorajar Raabe antes que isso fosse necessário.
Eles voltaram para os arredores da tenda, concentrando-se no lugar onde Raabe havia lavado a louça. Ajoelhando-se com a cabeça perto do chão, eles varriam a areia. Salmom tentou se lembrar da direção dos ventos naquela manhã e ampliou a direção de sua busca. Ele notou que Raabe havia se sentado novamente na areia, sem esperanças e com uma expressão de abatimento. Não desista. Pelo menos não por enquanto. Ele continuou procurando com uma sensação insistente de que precisava continuar.
Em seguida, seu dedo indicador tocou em algo sólido e gelado. Ele agarrou o objeto e rapidamente tirou a areia. Ali estava! O tesouro de Raabe - esquecido, abandonado, perdido no chão. Pelas pegadas na areia, mais de um par de sandálias havia pisado na joia delicada de ouro e pérola. Ele a observou com uma nova percepção.
Raabe, que estava olhando seus movimentos com um interesse inconstante, se deu conta de que a busca de Salmom dera resultados. Ela suspirou e se levantou rapidamente, indo até ele com uma pressa que derrubou um jarro.
Você achou!, gritou ela. Uhum.
Ela se jogou no chão, ao lado dele, e estendeu a mão para pegar o brinco, mas ele a afastou. Deixe-o, ordenou ele.
O que você quer dizer com isso?
Quero dizer que não vai mais servir. Ficou na areia por uma noite e um dia. Está vendo as marcas? Pisaram nele várias vezes. Está destruído.
Não, não está! Eu não vejo nada de errado. Talvez ele precise ser lavado com cuidado, mas ficará como novo logo que eu fizer alguns ajustes.
As pessoas pisaram nele, eu já disse. Não vale mais nada agora.
Mas é claro que não. As joias não perdem seu valor só porque estão sujas. Ainda é uma pérola, mesmo que tenham pisado nela. O que há de errado com você? Por que você está falando isso? Devolva o meu brinco!
Não até que você entenda.
O quê? A irritação de Raabe intensificava o tom de sua voz enquanto ela estendia a mão para pegar o brinco.
Salmom o manteve longe dela. Você é como este brinco. Você ficou muito tempo no sol. Vamos tomar um pouco de vinho.
Eu não preciso de vinho. Preciso que você entenda. Raabe, você parece valorizar esse brinco acima de tudo. Você aprecia seu valor inerente do ouro e da pérola, mas, além desses dois, o brinco tem um significado maior. Ele tem grande valor para você.
E é por isso que você é como este brinco. Você não entende que Deus olha para você assim como você olha para essa joia delicada? Só que Ele o faz com mais ternura e alegria. Você se lembra da história da criação? Ela nos diz que Sua mão nos formou - formou você - à Sua própria imagem. Aquele que criou você à Sua imagem e que te disse muito bom deve achar que você tem um valor profundo. Para Ele, você é como esta joia.
Você me disse que, apesar do fato de este brinco ter sido perdido, abandonado na areia e pisoteado, ele ainda é muito importante e continua sendo uma joia valiosa. Você também disse que, por mais que as pessoas tenham pisado, ele não teve seu valor diminuído por isso.
Você não vê que o mesmo é válido para você, Raabe? Você pode até ter sido descartada pelo seu pai ou por Zedeque, mas isso não roubou seu verdadeiro valor. Você pode até ter sido pisoteada por muitos outros, mas nada muda quem você é: uma filha de Deus, feita à Sua imagem.
Eu só queria o meu brinco, disse Raabe com uma voz estridente e empalideceu. Por que você tinha que falar em Zedeque?
Salmom sentiu a angústia dela, mas continuou sem dó nem piedade para restaurar a vida de Raabe. Porque eu quero que você se liberte dele. As atitudes de Zedeque fizeram você ser esse brinco. Em vez de ser apreciada e valorizada, você foi jogada na areia, e quando fez isso, ele te deixou lá. Mas ele não se cansou porque você é fatigante, Raabe. Ele não te abandonou porque você não é boa o bastante. Ele te abandonou por causa de seu próprio pecado. Não foi nenhuma falha sua que o fez te abandonar; foi uma falha dele. O mesmo se aplica ao seu pai. Os dois deixaram de reconhecer o tesouro que há em você quando não a valorizaram. Assim como jogar ouro na areia e sair andando, a perda foi deles.
Raabe, olhe para este brinco. Ele está arruinado ou não tem mais valor porque estava na areia? Diga-me que ele não tem mais conserto. Diga-me que você não o quer mais.
Ele a observou e continuou falando. Deus também não pode dizer essas coisas sobre você. Você é o ouro precioso e a pérola insubstituível dele, e você nunca perdeu seu valor interior.
Seus olhos cor de mel se encheram de lágrimas. Raabe estendeu a mão em direção à joia, mas não para agarrá-la ou tomá-la para si, e sim para tocá-la com uma veneração que fez Salmom prender o fôlego. Eu sou este brinco?, murmurou ela com a voz fraca.
Ele respondeu com a cabeça. Com um espanto lastimoso, ela levou o brinco para perto de si e olhou fixamente para o objeto cintilante na palma de sua mão. Havia poucos danos estruturais na joia. Como havia falado, ela precisava lavá-lo e fazer alguns ajustes nos arames delicados que entortaram sob o peso de pés desatentos. Mas o brinco tinha o mesmo valor de sempre. O ouro ainda era ouro, e a pérola continuava sólida e luxuosa. Raabe fechou a mão com o brinco dentro e a levou até o peito.
Algo nela se rompeu - Salmom pode perceber sua desolação. Um som forte escapou de seus lábios, como um gemido sofredor de uma criança ferida e confusa. Seu coração quase se despedaçou ao ouvir aquele som devido à dor resguardada nele contida. Salmom a envolveu em seus braços fortes e protetores, e o corpo dela tremia.
Calma, querida, calma, sussurrava ele. Salmom sabia que aquela dor contida precisava ser liberada, e ele não queria interromper aquele momento antes da hora certa. Ainda assim, ele queria que ela sentisse o conforto à medida que ela libertava seu sofrimento maior. Ocorreu a Salmom que ele nunca mais a julgaria depois daquilo, após testemunhar uma criança sofrida que finalmente conseguira enxergar um vislumbre de sua verdadeira imagem aos olhos de Deus. Ele nunca mais pensaria no passado dela como algo que manchasse sua linhagem pura. Ele nunca mais a condenaria por ter estado com muitos outros homens antes. Deus usou aquele brinco como lição para ela e para ele também. Ele precisava passar por aquilo tanto quanto ela. Raabe era uma joia de valor inestimável para ele, e nada nunca mais poderia diminuir seu valor diante de seus olhos.
Seu tremor convulsivo foi cessando aos poucos e o gemido intenso se transformou em lágrimas. Salmom a abraçava forte enquanto beijava sua cabeça e acariciava seus cabelos. Todos os instintos de proteção foram despertos nele por ela, e uma ternura muito forte brotou em Salmom. Eu te amo, sussurrou ele quase sem perceber que tinha falado aquelas palavras. Elas saíram de sua boca em um ímpeto natural de emoção que ele não pôde conter.
Ela se agarrou a ele com os braços por trás de seu pescoço e de suas costas, pressionando seu corpo contra o dele de uma forma despretensiosa que o enterneceu por dentro. Salmom nunca se sentira tão inteiramente próximo a outro ser humano na vida. Na curva de seu pescoço, ela sussurrou algo que ele não entendeu a princípio, mas depois se deu conta de que ela estava dizendo que o amava, o amava muito, mais e mais. Salmom achou que fosse explodir de tanta alegria que havia em seu interior.
Levou tempo para ele perceber que havia alguém de pé diante deles, pigarreando com aparente abandono. Com um movimento lento, Salmom levantou a cabeça ainda abraçado com sua esposa. Somente quando tentou se focar no rosto de Ezra, viu o quanto sua visão estava turva e percebeu que seus cílios estavam grudados pelas lágrimas.
Ezra?, resmungou ele irritado por ter aquele momento interrompido, querendo que o mundo inteiro desaparecesse e o deixasse a sós com a esposa.
Eu sinto muito por interromper, disse Ezra evitando o contato visual. Josué me mandou buscar os líderes de Judá. Eu vim mais cedo e saí, mas agora precisei te chamar, pois só falta você.
Josué precisa de mim agora? O que houve?
Uma delegação de homens chegou em jumentos algumas horas atrás. Eles querem fazer um tratado conosco e Josué pediu para os líderes se reunirem e o aconselharem.
Uma delegação! Bem, Josué pode tomar essa decisão sem mim. Não posso deixar minha esposa agora.
Ao pé do ouvido, as palavras de Raabe soavam de forma gentil. Vá, meu amor. Você não pode deixar Josué esperando. Estou bem.
Salmom negou com a cabeça. Eu não vou te deixar, a menos que seja extremamente necessário. Ezra, diga a Josué que minha esposa precisa de mim, por favor. Se for urgente, eu vou. Mas se ele puder decidir sem mim, prefiro ficar com Raabe. Descubra mais detalhes sobre essa história e volte para me contar.
Você não precisava ter ficado comigo, disse Raabe quando Ezra saiu. Eu entendo que você tem responsabilidades importantes. Israel precisa de você. O rosto dela estava manchado de lágrimas, e seus olhos encantadores ficaram vermelhos e inchados. Raabe nunca estivera tão bonita para ele. Salmom ainda a abraçava, sem conseguir soltá-la. A ideia de fazer surgir qualquer espaço entre eles parecia insuportável.
Eu irei se for preciso. Nesse momento, não quero estar em nenhum outro lugar, a não ser aqui.
Talvez devêssemos entrar.
De repente, Salmom percebeu que estava abraçado com sua esposa fora da tenda, à plena visão de qualquer vizinho que aparecesse perambulando. A noite já tinha caído, o que tornava tudo mais discreto, mas ele preferia ter um pouco mais de privacidade. Mudando de posição, ele pegou Raabe nos braços e entrou na tenda. Ela o segurou pelo pescoço com a cabeça recostada em seu peito. Em seus dedos longos, na mão fechada, ela agarrava o brinco. Salmom sorriu ao vê-lo - ao vê-la.
Depois que entraram, Salmom se sentou em um tapete, apoiando-se em um pilar e ainda com Raabe nos braços.
Deixe-me pegar um pouco de comida e bebida, sussurrou ela.
Ele quase mexeu a cabeça para negar seu pedido quando lhe surgiu a ideia de que ela deveria estar esgotada de tanto chorar devido à tensão emocional de tudo que havia acontecido. Algo para comer e beber a faria sentir-se bem. Eu pego para nós, disse ele.
Ela lançou-lhe um olhar consternado. Esse é o meu trabalho. Você trabalhou demais e pode ser que Josué lhe chame novamente. Pelo menos isso eu posso fazer para você.
Qualquer outro dia - todo dia - pelo resto das nossas vidas, se você quiser. Mas, hoje, me deixe tomar conta de você. Para sua alegria, ela concordou, embora ele pudesse afirmar que aceitar os cuidados dele daquela maneira fosse difícil para ela. Salmom queria que Raabe entendesse que ela não era um fardo para ele, e que cuidar dela não a faria menos importante em seu ponto de vista. Anos. Vou precisar de anos para fazê-la entender isso. Ele pegou algumas sobras do bolo da noite anterior, queijo e pão. Ela fazia a melhor água de cevada que ele já bebera, e logo Salmom aprendeu onde ela guardava. Levando tudo dentro do vaso de barro, Salmom deixou tudo perto deles juntamente com os copos mais fundos que ele conseguiu achar.
Antes de comer, ele orou a Deus, como sempre. Mas daquela vez ele demorou mais louvando a Deus por Suas provisões, pela orientação e por Sua misericórdia. Ele louvou a Deus por sua esposa, por seu casamento, pelo futuro dos dois e pelos planos que Deus tinha para eles, independentemente de quais fossem. Depois, ele louvou ao Senhor por Ele ter aberto os olhos de Raabe para a verdade. A alegria e a esperança fluíam à medida que ele falava com o Senhor, pois ele sabia que tudo aquilo fora feito por Deus. Somente Ele poderia usar um brinco perdido como instrumento de cura.
Capítulo Vinte e Cinco
Salmom ficou aliviado quando Ezra voltou dizendo que Josué havia desculpado sua ausência e não havia exigido que ele fosse até lá. Ele viu Raabe oferecer ao convidado uma almofada fofa e água de cevada. Salmom franziu a testa; ele queria que ela descansasse aquela noite e não se incomodasse com nenhum afazer. Ele fez uma cara feia para Ezra quando Raabe lhe ofereceu comida e relaxou depois que ele recusou a oferta.
Os homens vieram de uma terra distante, Ezra falou depois de tomar um gole da bebida. Quando Josué perguntou por que eles vieram até nós, eles disseram que a fama do Senhor havia se espalhado por muitos lugares. Eles sabiam que nós tínhamos derrotado Ogue e Siom, e ouviram falar sobre o milagre de nossa saída do Egito. Então, os líderes de sua nação os mandaram até aqui para fazer um tratado de paz conosco.
Como saberemos que eles são o que dizem ser?, perguntou Salmom. Como saberemos que eles não vivem perto? Não podemos fazer um tratado de paz com nações vizinhas.
Josué disse o mesmo. Mas os líderes de Israel inspecionaram as provisões dele. O pão estava mofado, o odre estava rachado e as roupas e sandálias estavam desgastadas pela longa jornada.
Entendo. Suponho que iremos orar e buscar a vontade de Deus antes de responder, certo?
Bem... na verdade, não. Os líderes acharam essas evidências boas o bastante para tomar uma decisão. Eles deram a palavra e fizeram um trato com aquele povo.
Sem consultar o Senhor!
Ezra levantou uma das mãos em um gesto de rendição. Sou apenas o mensageiro. Tudo que sei é que os outros líderes ficaram convencidos com os argumentos da delegação.
Salmom respirou fundo. Perdão. Se quisesse opinar, eu deveria ter ido encontrar a delegação. Ele se virou para Raabe. E eu não me arrependo de não ter ido.
Falando em ir, disse Ezra enquanto se levantava, é hora de eu ir para minha tenda.
Salmom e Raabe se levantaram com ele. Obrigado por me trazer as notícias, Ezra. Eles andaram até uma parte do caminho e depois voltaram para a tenda.
A partida de Ezra fez Salmom se lembrar de que estava tarde e que ele estava cansado. Vamos dormir, disse ele para Raabe observando-a pelas suas pálpebras. Por mais que tentasse, ele não conseguiu manter a voz tranquila. Ela estava rouca pela emoção. Pensar em Raabe e em cama ao mesmo tempo mexia tanto consigo mesmo que ele quase não podia respirar.
Entretanto, ele precisava deixar seus anseios de lado. Ela não estava pronta. O fato de ela ter dado um passo considerável não significava que ele deveria insistir muito. Uma sensação de perda
- e até mesmo de raiva - pelo que fora roubado deles dois o dominou, mas Salmom tomou a decisão de não se deixar abalar pelo desânimo. Seu trabalho era retomar o território que havia sido roubado, exigir da destruição do passado cada partícula da alma, do coração e do corpo de Raabe. Certo dia, com um parente chamado José, Salmom falou sobre tudo e todos que magoaram sua esposa e, consequentemente, a si mesmo: Você achou que fosse por mal, mas Deus o fez por bem. Assim como a cobra que ameaçou Raabe e como o brinco perdido, Deus tinha poder de usar o pior para fazer o bem. No entanto, nesse meio tempo... nesse meio tempo, Ele tinha de se conter e esperar.
A noite havia ficado estranhamente quente e Raabe foi se deitar com ele enrolada em um lençol fino. Parte dele queria a abraçar e experimentar aquela sensação incomparável de proximidade. Mas a outra parte se lamentava com frustração por não poder abraçá-la, a não ser que fosse rapidamente. Mas Raabe tirou a decisão das mãos dele quando se aconchegou contra seu corpo com um movimento tímido de braços e pernas. Ele sabia o quanto aquela demonstração de afeição lhe custava, e sabia que ela temia demais a rejeição para procurá-lo primeiro. Por nada no mundo ele se afastaria dela naquele momento. Mexendo seu corpo, ele a abraçou e a puxou para perto de si. O cheiro de seus cabelos, perfumados com rosas e com algum outro elemento indefinível que lhe era peculiar, tomou conta de sua mente. Sem ter controle sobre a própria vontade, ele passou os dedos pelos cabelos dela e inclinou a cabeça para beijá-la. Não foi um beijo de conforto, de contato gentil ou de pertencimento. Foi um beijo de paixão, desejo e querer. Ele se consumia pelo desejo de tê-la, e aquele beijo transmitiu essa mensagem à medida que ele sorvia tudo que a esposa tinha a oferecer. Mais do que qualquer coisa, ele queria que ela sentisse o mesmo por ele, desejando-o como ele a desejava.
Raabe estava entregue em seus braços. Rendida. Tudo o que havia nela se encaixava perfeitamente nele. Foi preciso uma oração, um clamor silencioso e desesperado ao Senhor, para que Ele o parasse. Ó Deus, concede-me a força para esperar, clamou ele em uma angústia silenciosa antes de se afastar.
Levou um tempo para ele acalmar a respiração ofegante. É um prenúncio do que está por vir, disse ele com um sorriso desigual.
Ela olhou para Salmom com os olhos arregalados. Você... você sabe mesmo fazer isso muito bem, disse ela sem fôlego.
Ele percebeu que ela fora profundamente afetada pelo toque dele e que sentira o que ele queria. A impaciência dele foi aquietada diante da sabedoria. Incapaz de conter o sorriso, ele sussurrou: Você pode apostar, Salmom a beijou novamente, da segunda vez contendo sua necessidade e saboreando a alegria do despertar maravilhoso da esposa. A satisfação de seu corpo teve de esperar, mas sua alma estava muito alegre.
Eu esqueci de te dizer!, disse Raabe de repente sentando-se. O quê? O que você esqueceu?
Meu pai vai dar um banquete para Izzie e Gerazim amanhã à noite. Temos que ir à tenda deles depois do pôr do sol.
Ah. Acho que é muito tarde. Imagino que você queira ir antes para ajudá-los a preparar tudo, não é?
Se estiver bom para você.
Claro que sim. Encontrarei você lá o mais cedo que puder. Salmom achava difícil visitar os parentes de sua esposa.
Ele teve dificuldades para deixar de sentir raiva dos parentes
de Raabe. Pelo fato de saber melhor do que ninguém o preço que Raabe pagou pelas escolhas do pai dela, Salmom achava torturante reunir-se a eles e fingir que tudo estava bem. Algumas vezes, ele tinha vontade de gritar para o homem e a mulher que venderam a filha em troca de ouro, e queria perguntar se eles tinham ideia do quanto suas barrigas cheias haviam custado a ela. Mas anos como líder o fizeram controlar seu temperamento. Porém, a frustração não seria suprimida. Salmom se irritou com a necessidade de ficar calado, apesar de saber que daquela forma seria melhor para a esposa.
Concentrando tudo aquilo em um suspiro, ele puxou Raabe para si e se ajeitou para dormir. Ele não morreria por causa de uma noite de sentimentos reprimidos.
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Raabe passou metade da noite pensando na descoberta inconcebível de que Deus realmente a valorizava. Nem mesmo o curso de sua vida inteira foi o bastante para apagar aquele momento de compreensão de sua mente. Foi como se uma flecha de amor perfurasse sua alma cercada por muros, e ela sentiu pela primeira vez que era amada além da razão, e muito mais estimada do que merecia. Ter um vislumbre do coração de Deus abriu uma porta para a compreensão de que até mesmo um homem como Salmom poderia amar uma mulher do jeito dela. Raabe estava sendo amada por um homem como ele. Há anos ela não tinha mais aquele tipo de esperança. Ela merecia ser amada.
Nesses momentos de revelação confusa e de sentir-se imersa em amor e aceitação, ela ouviu o sussurro que indubitavelmente era do Espírito de Deus em sua alma: Tu és meu presente para Salmom. Tu és o tesouro que eu quis que ele tivesse. Embora ele, sem dúvida, fosse um presente para ela, Raabe percebeu que Deus o abençoou quando a deu de presente a ele, pois, para Deus, ela - Raabe - era um tesouro.
E, então, quando Salmom a abraçou com aquela ternura indescritível e sussurrou que a amava... ela acreditou. Pela primeira vez, ela acreditou nele de todo o coração. Ela se sentiu segura no amor do marido.
Raabe estava madura o suficiente para entender que teria de dar mais passos em sua jornada rumo à plenitude. Ela sabia que outras circunstâncias poderiam abalar sua segurança ou diminuir sua confiança. Mas depois de passar pelos vales mais sombrios, ela compreendeu naquele momento que Deus a faria enfrentar outras batalhas. Ele destruiria outras mentiras que permaneciam em sua alma e, pouco a pouco, a libertaria.
Em Jericó, quando depositou sua fé em Deus pela primeira vez, ela sabia que Ele era poderoso e grandioso. Porém, na noite anterior, ela havia experimentado Sua bondade. Raabe aprendera a depositar sua fé na misericórdia dele, pois Deus concedia Seu amor ao indigno e valorizava grandemente Seus filhos que não mereciam.
Izzie aprendeu essa lição com sua gravidez. Ela apreciaria o senso de gratidão e de maravilha de Raabe como ninguém, e o pensamento de passar a manhã com a irmã fez Raabe apressar as tarefas matinais com um sorriso no rosto. Nem mesmo a tarefa complicada de preparar um grande banquete sob as ordens de sua mãe suprimiu sua alegria. Aquele seria um dia de comemoração
- por Izzie e Gerazim e, no mais secreto de seu ser, por ela e Salmom.
O sol parecia se mover com uma lentidão perversa aquele dia. Nem mesmo a companhia preciosa de Izzie desviava a atenção de Raabe para sua impaciência para estar logo com o marido. Ela sentia falta dele. Depois da aproximação maravilhosa da noite anterior, sua ausência deixou um grande vazio. Raabe falou para si mesma que estava se comportando como uma jovem virgem, sentindo tanta falta de um homem que ela vira pela manhã, mas isso entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Ela não se importava se estava ou não agindo com o desejo impetuoso de uma jovem. Raabe queria estar com seu marido, e naquela noite ele estava demorando mais do que em todas as outras.
Os arredores da tenda da família estavam cheios de convidados logo no fim da tarde, mostrando que estavam bem à vontade enquanto ajudavam as tribos de Israel com os desafios da terra. Um cordeiro temperado e assado deixava um cheiro de dar água na boca pelo ar. Raabe andava distribuindo pães de forma frescos, que serviriam como pratos quando o cordeiro fosse servido. Ela sentiu o estômago roncar e se lembrou de que não tinha comido nada desde cedo, quando havia tomado café da manhã com Salmom. Raabe esticava o pescoço em vários lugares para tentar vê-lo quando ele chegasse.
Joa começou a cortar o cordeiro e Raabe circulou pela festa com uma espécie de bandeja com muitos pedaços de carne. Um homem que lhe parecia vagamente familiar a chamou enquanto ela andava em direção a ele.
Que tal você me dar um pouco de atenção, disse ele com a voz anasalada e com os lábios umedecidos por entre a vasta barba.
Ela se virou com um sorriso espontâneo nos lábios e esticando a bandeja. Para sua surpresa, ela viu que o homem a encarava com uma ousadia imprópria, e seus olhos passeavam abertamente pelas curvas de seu corpo. Seu vestido azul de lã estava recatado, apropriado para uma mãe de família de Israel. Nada em seu comportamento ou em sua aparência a tornava uma pessoa indesejável. Nada, exceto o fato de ela ter sido de Jericó. Raabe ruborizou sentindo a antiga vergonha a invadir por dentro. Depois, as palavras de Salmom vieram à sua cabeça: você é o ouro precioso e a pérola insubstituível dele.
Ele não a cobiçava por causa de alguma falha dela. Era ele quem estava em pecado. Com uma frieza calculada, ela afastou a bandeja e se virou para o homem, sem nem lhe dar resposta. Para sua surpresa, ele a agarrou pelo pulso quase deixando o cordeiro cair. Eu disse que era para você me dar um pouco de atenção, disse ele lentamente.
Se você quer mesmo atenção, ficarei feliz em te ajudar, disse uma voz afiada por trás de Raabe. Salmom. Você se importa de soltar minha esposa? Ou quer que eu te ajude a fazer isso? Seu sorriso refletia exatamente o significado de suas palavras.
O homem soltou o pulso de Raabe como se ele estivesse ardendo em chamas.
Eu só queria um pedaço de cordeiro, explicou ele fracassando ao tentar parecer inocente, apesar de seu esforço significativo.
Acho que você já pegou bastante. Não acha?
Sim, claro, disse o homem que ainda nem havia experimentado a carne.
Então, não há necessidade de você pegar mais, não é? Não, acho que não. Ele olhou para a bandeja tomando
cuidado para não olhar para Raabe e, em seguida, saiu.
Que homem grosseiro, disse Raabe. Eu o teria colocado no lugar que ele merece se você não o tivesse feito.
Eu sei que você teria, mas eu tive o prazer de fazê-lo. Você se importa?
Não. Para dizer a verdade, eu gostei.
Salmom sorriu ao olhar para os olhos dela. Preciso me acostumar a botar alguns dos seus admiradores para correr. Isso vai me ser útil como marido de uma mulher linda.
O coração de Raabe bateu mais forte. Salmom conseguiu elogiá-la depois de uma situação estranha e desagradável. Para ele, ela não merecia o tratamento desrespeitoso daquele homem. Embora ela mesma já tivesse chegado à mesma conclusão e tivesse renunciado a vergonha que permanecia diante de seus pensamentos, a defesa de Salmom confirmou aquela verdade. Ele achava que seu valor tinha chamado a atenção do homem, e não sua impureza. Essa confirmação adicional reforçou a confiança recente e frágil de Raabe, fazendo-a dar um sorriso surpreso. Sim, vai mesmo ser útil, brincou ela.
Antes de Salmom responder, Inri foi até eles com a testa suando. Boa noite, Salmom. Raabe, você quer dançar?
Raabe quase se engasgou na própria saliva. Dançar? Acho que não, pai.
Inri ignorou aquela resposta enfática e se virou para o genro. Salmom, você já viu sua esposa dançar?
Não.
Pois então, deveria. Ela era famosa por suas danças em Jericó. Poucas se comparavam a ela.
Pai! Sua voz estava com um tom irritado. A afirmação de seu pai era verdadeira; Raabe dançava muito bem, e suas danças exibiam mais emoção do que sensualidade, e mais fluidez cativante do que meros rodopios. Raabe não precisou se dar ao trabalho de fazer as danças provocantes, comuns entre as mulheres da vida em Jericó. Ela nunca precisou. Seu estilo de dança, embora decoroso, atraía muitos admiradores de ambos os sexos. Por isso, sua hesitação ao dançar não era baseada apenas no medo de ofender, mas também no desejo de evitar chamar atenção. Ela queria discrição e tranquilidade. Raabe queria se misturar, e não exibir seu talento diante de estranhos. Eu não vou dançar, insistiu ela.
Eu gostaria de te ver dançar, afirmou Salmom com uma voz suave.
Raabe ficou de queixo caído. Ela mal pôde acreditar. Seu pai e Salmom haviam concordado! A sua vaidade feminina a fez ter vontade de satisfazer a curiosidade de Salmom. Ser o objeto de sua admiração lhe proveu uma tentação que ela mal podia resistir. Eu dançarei... mas só para você, ela falou olhando diretamente em seus olhos. Ele prendeu a respiração e sua pele ficou levemente corada.
Ah!, exclamou Inri e saiu de perto dos dois.
Raabe riu. É melhor eu servir logo esse cordeiro antes que esfrie.
Cordeiro? E a minha dança? Espere o momento certo.
Meus cabelos estão ficando brancos de tanto esperar. Talvez assim alguém te leve mais a sério, Raabe exclamou sem a menor simpatia enquanto se afastava. Os convidados pediam a comida deliciosa e a bandeja rapidamente esvaziou. Salmom chamou Raabe antes que sua família lhe desse outra tarefa.
Venha e fique comigo por um instante, insistiu ele levando-a para um canto mais vazio. Ele procurou um lugar desocupado para Raabe se sentar e agachou-se perto dela. Você reparou no orgulho estampado no rosto do seu pai enquanto ele se gabava da sua dança?
Raabe lançou um olhar duvidoso para o marido. Não.
Ele se animou enquanto falava. Seu pai gosta muito mesmo de você.
Ela refletiu em silêncio com aquelas palavras. De certo modo, isso só faz as coisas piorarem.
O que você quer dizer?
Ele me amava e eu confiei nele do fundo do meu coração. Acreditei em tudo que ele falava sobre mim, nas coisas boas e ruins, nas certas e nas erradas, e também acreditei na mensagem implícita em suas ações. Até hoje, eu luto contra a ideia de que ele estava certo a meu respeito. Suas palavras pareciam mais verdadeiras do que as minhas. Se ele fosse um homem ruim, eu até ignoraria suas afirmações e aprenderia a não dar atenção às suas opiniões. Mas, eu acreditei nele a vida inteira. Se não fosse pelo Senhor e pelo teu amor, eu não teria conseguido escapar das falsas convicções que ele involuntariamente conferiu a mim.
Eu não tinha pensado nisso. Admito que eu mesmo tenho lutado contra a raiva que sinto por ele. Uma grande parte de nossas vidas foi impactada pelas ações de Inri, e tenho dificuldades de esquecer meu ressentimento.
Raabe fez um gesto com a cabeça, entendendo o que ele sentia. É esse o problema das más escolhas. Elas invadem a vida de outras pessoas. Aqui está você, um homem de Israel impactado por uma decisão que meu pai tomou onze anos atrás em Jericó. Minha consolação é que o Senhor pode redimir nossas falhas.
Fico feliz em te ouvir dizer isso, Raabe. Você acha que Izzie e Gerazim se sentiriam ofendidos se fôssemos embora? Tenho algo para compartilhar com você.
Raabe sentiu uma pontada de preocupação. É alguma notícia ruim?
O rosto de Salmom ficou indecifrável. Não necessariamente.
É apenas particular.
Raabe sentiu um enjoo diante daquela resposta evasiva. Seja lá qual fosse o assunto que ele quisesse compartilhar com ela, parecia ser sério. Ser casada com um líder de Israel também tinha seus desafios dolorosos. Eu vou falar com a Izzie. Ela entenderá.
,.
Salmom segurou as mãos dela enquanto eles voltavam. Ela percebeu que ele queria chegar à tenda antes de falar e, embora a ansiedade a dominasse por dentro, ela respeitou o desejo dele. Pressionando seus lábios fechados, ela apenas segurou em sua mão. Raabe não conseguiu esperar quando eles chegaram. Antes mesmo que Salmom pudesse acender uma candeia, ela se voltou para ele.
Diga.
Ele acendeu a candeia e se sentou. Estou inquieto em relação aos visitantes que fizeram um tratado de paz conosco ontem. Quero segui-los e descobrir se eles falaram a verdade.
Aqueles do pão mofado e das sandálias desgastadas?
Sim. Algo na história deles me perturba. É por precaução, nada mais. Quero segui-los por dois dias para confirmar essa história.
Raabe pensou nas implicações daquela incumbência. Missões de espionagem para israelitas não eram muito seguras pelos arredores de Canaã. Cada passo dado em direção a territórios ainda não conquistados de Canaã trazia consigo uma vastidão de ameaças. Se os visitantes fossem mesmo o que diziam ser, a parte mais perigosa seria a viagem. Se não fossem, eles provavelmente não encarariam a descoberta com generosidade.
Raabe se casara com um soldado, e os soldados andam em perigo. Como esposa, sua responsabilidade era fazer o trabalho do marido ser o mais fácil possível. Acrescentar suas preocupações ao fardo dele não o ajudaria em nada. Ela mostrou uma aceitação tranquila. Você vai sozinho?
Ezra e Hanani se ofereceram para me acompanhar.
Raabe deu um sorriso assombrado. Eles têm muita experiência como espiões.
A risada de Salmom pareceu forçada. Três é um bom número. Podemos andar rapidamente e nos esconder com facilidade, se for preciso. Estamos há um dia inteiro atrasados, então, nós já vamos.
O que você está pensando em fazer quando encontrá-los? Vou voltar e contar a Josué. Nós não podemos atacá-los porque firmamos um tratado de paz com eles, e o tratado ainda está em vigor. Mas temos que saber a verdade.
Eu posso preparar comida para vocês três? Quantos dias você acha que tudo isso vai durar?
Hanani e Ezra vão levar a própria comida. Quatro dias é o bastante. Vou te mostrar como se prepara um pacote leve. Nossa maior preocupação é a rapidez, e por isso não podemos nos abater com o peso.
Raabe fez um gesto com a cabeça e, em um impulso, deu um abraço apertado em Salmom. Sentirei saudades.
Ele envolveu o rosto dela com as mãos. Sabe, você é maravilhosa. Para ser honesto, eu tinha medo de dizer isso. Odeio pensar em lágrimas ou em inquietação. Isso acontece com alguns amigos meus sempre que eles partem. Eu deveria saber esperar essa reação de você.
Por outro lado, nenhum homem quer deixar uma esposa que não parece se importar ou que fica indiferente. De certa maneira, você expressou a medida certa de ternura e compostura. Obrigado por isso. Faz a minha partida ser mais fácil.
Capítulo Vinte e Seis
Raabe se preparou para dormir envolta em um clima de preocupação. Salmom partiria pela manhã em uma missão perigosa que poderia levá-lo à morte. Talvez ela nunca mais o veria, nunca mais o abraçaria e nunca mais ouviria sua linda voz falando com ela. Raabe não poderia aguentar aquele pensamento por muito tempo, e ficar separada de Salmom durante poucas horas do dia parecia arrebatador. A ideia de separar-se do marido durante dias parecia insuportável.
Raabe foi para a cama e se deitou ao lado dele. Embora parado, a rigidez de seu corpo não deixava o sono chegar. Certa vez ele disse a ela que não conseguia dormir nas noites antes das missões.
Eles ficaram deitados um ao lado do outro por alguns momentos, e nenhum dos dois falava ou se mexia. Com um movimento repentino, Salmom virou para o lado e envolveu Raabe em seus braços. Raabe, sussurrou ele e a beijou. Aquele beijo foi longo, e Salmom o prolongou com uma paciência e ternura sinceras até que ela se agarrou a ele. Com um movimento deliberado, Raabe mexeu o corpo até que estivesse quase inteiramente por debaixo do marido. As mãos dele tocaram as dela e sua respiração ficava cada vez mais irregular à medida que ele beijava a curva do pescoço da esposa.
Raabe foi pega por um desejo irresistível, totalmente novo em sua vida, e por um terror que já lhe era bastante conhecido. Os velhos medos invadiram sua mente; medo de que, nos braços dele e na cama dele, ela se tornasse a Raabe de Jericó. Uma parte dela sentia que se decepcionaria se ele parasse de fazer suas carícias delicadas, e a outra parte temia que ela arruinasse tudo se ele continuasse.
Sentindo a sua hesitação, ele se afastou com a respiração irregular e apoiou-se em um dos cotovelos. Desculpe-me. Você não está pronta.
Raabe envolveu o lindo rosto de Salmom em suas mãos. Não é isso. Você me dá mais prazer do que eu jamais achei que pudesse sentir.
Ele se inclinou para a frente e a beijou na boca. Sua voz estava rouca quando ele levantou a cabeça novamente. Diga-me qual é a sua dificuldade. Ajude-me a entender.
Raabe quase chorou. É tão difícil falar sobre isso.
Eu imagino, mas estou pedindo para você encarar essa dor.
Confie em mim.
Você vai me proteger? Sua voz parecia frágil e infantil.
Inesperadamente, ele a envolveu em seus braços. Você está segura comigo. Apenas fale. Salmom analisou o rosto da esposa à luz fraca da candeia com um olhar determinado. Ela reconheceu aquele olhar, aquele que dissecava seu interior e lia sua mente nos lugares mais escondidos onde ninguém imaginaria que se poderia chegar. Ela se entregou àquele olhar mostrando-se disposta a revelar tudo a ele.
Sua respiração, enquanto ela puxava o ar para seus pulmões abrasadores, estava agitada. No dia seguinte, seu marido partiria em uma missão que atentava contra sua vida, e ela queria que ele partisse sem que parede alguma os separasse. Para isso, Raabe se arriscaria a tudo, inclusive à sua rejeição. Salmom, você foi o único homem que amei. Ela fez um gesto com a mão, que caiu por sobre a cama. Antes de você, tudo em mim era fingimento. Fingimento, atuação, trabalho. Se havia algum prazer, ele era pouco e vinha acompanhado pela vergonha. Sempre que você me tocava, eu ficava apavorada com a possibilidade de minha velha personalidade escapar e de você saber quem eu era. Não sei como devo ser e agir com você aqui nesta cama. Não sei ser esposa.
Então, deixe-me ser um marido para você, ele a acalmou. Deixe-me assumir o controle. Você não precisa fingir aqui. Você não tem que atuar ou fazer nada disso, a menos que haja algo além de amor ou do seu desejo. Não quero nada de você, salvo o que me seja dado livremente.
O meu toque é uma expressão exterior de um amor que toma conta de cada parte do meu ser. Eu quero me ligar a você, e meu corpo reflete os desejos da minha alma. Não tenho interesse algum em usá-la para satisfazer minha luxúria, não quero te usar para nada. O que eu desejo é ter uma intimidade que envolva todos os aspectos do nosso ser, juntos. Deixe-me tocar você assim, e toque-me da mesma forma. Não tenho expectativas em relação a você, meu amor. Não há motivo para atuar. Apenas me ame, e eu sentirei seu amor e ficarei satisfeito.
Raabe ficou em silêncio enquanto procurava entender suas palavras. Com mais coragem do que confiança, ela levantou a mão e a colocou no peito dele. Quero tentar do seu jeito, afirmou ela com a voz rouca.
O olhar determinado de Salmom enquanto ele olhava para ela estava inabalável. Há apenas uma condição. No momento em que você rememorar as velhas lembranças e quando a sua mente transformar meu toque em vergonha, quero que me impeça. Por mais difícil que isso seja para mim, seria muito pior saber no fim das contas que fiz você se sentir confusa ou humilhada. O pensamento de te machucar, de qualquer maneira que seja, me dá dor de cabeça. Você entendeu? Promete que vai fazer isso?
Prometo, sussurrou ela. Raabe sabia que não seria fácil manter aquela promessa. Impedi-lo porque ela não se sentia bem parecia o comportamento mais egoísta que se poderia imaginar. Será mesmo que ele não se ressentiria ou a ultrajaria por ela ter tantas necessidades e exigências? Mas, mesmo assim, ela acreditou quando ele disse que se sentiria pior se ela não as expressasse. Raabe precisava acreditar que Salmom suportaria o peso de sua fragilidade e que ele não desistiria dela.
Como se estivesse quase lendo seus pensamentos, ele sussurrou novamente: Confie em mim, depois a beijou passando as mãos pelos cabelos dela e levantou seu rosto para beijá-la mais intensamente.
Você gosta disso?, perguntou ele a forçando a responder quando ela preferia ficar calada. E disso?, insistiu ele até que ela aprendesse a ser verdadeira em relação ao que sentia. Quero saber do que você gosta. Diga-me, Salmom pediu. Você quer assim? Ou eu devo parar?
Não!, disse Raabe fazendo Salmom rir, com um som absolutamente masculino que a fez arrepiar-se.
Naquela noite, Raabe descobriu o que era ser pura na cama com o marido. Ela aprendeu que havia nada de impuro, pecaminoso ou desonesto sobre ser tocada e possuída por um homem que Deus havia escolhido para ela. Raabe começou a compreender que Salmom não se importava em se prejudicar pelo bem dela. Ele gostaria apenas do que ela pudesse gostar, e não guardava rancores em relação às diferenças entre os dois. Quanto mais liberdade ele dava a ela, maior era sua capacidade de sentir prazer em seus braços. Naquela noite, Raabe deixou Jericó e seus grandes muros para trás.
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Amanhecera muito rapidamente. A despedida de Salmom foi difícil e Raabe pôde ver que parte de si já estava na missão. Ela deu um abraço repentino nele tentando memorizar o contorno de seus lábios contra os dela, a forma de seus braços envolvendo suas costas e a sensação de sua barba e seu peito que parecia envolvê-la totalmente. Depois, ela o deixou partir, sentindo sua impaciência para começar a jornada. Raabe foi com ele até a tenda de Calebe, onde Ezra, Hanani e Miriã já o esperavam. Josué havia conseguido três jumentos para dar aos homens, e estes já estavam apostos pacientemente mastigando forragem. Na frente das outras pessoas, a despedida dos dois foi mais formal e contida. Mas, obviamente, Salmom, sem sentir-se envergonhado, a abraçou e a apertou com uma possessividade apaixonada. Eu voltarei para te amar mais, sussurrou ele no ouvido dela e se foi.
Para alegria de Raabe, Miriã voltou para a tenda à noite e ela ajudou a cunhada a colocar suas roupas de volta em uma arca esculpida de acácia. Para os padrões de Jericó, seus pertences seriamconsideradosescassos, emboraatendessemàsnecessidades das mulheres de Israel. Não obstante, Raabe prometeu a si mesma que faria um novo vestido para Miriã assim que terminasse a túnica que estava fazendo para Salmom.
Teria sido insuportável, Raabe pensou, ter de aguentar sozinha as horas agonizantes da ausência do marido. Mas, em vez disso, ela se viu alegrando-se com a companhia de Miriã. Elas já tinham aprendido a conviver desde os dias que passaram juntas na tenda dos feridos. Nenhuma das duas se incomodava ou se sentia invadida pela outra. Elas eram boas parceiras. Miriã era uma pessoa fácil para se conviver e Raabe era organizada, mas não a ponto de ser autoritária. Elas oravam muitas vezes juntas. Em momentos como aqueles, Raabe se sentia mais perto de Deus e impulsionada pela esperança diante da preocupação constante com o bem-estar de Salmom.
No segundo dia depois da volta de Miriã, as duas se levantaram logo que amanheceu e foram até a tenda dos doentes com as ataduras que haviam preparado no dia anterior. Raabe sabia que aquela distração era bem-vinda.
Para sua surpresa, a maior distração veio de uma fonte absolutamente inesperada: Miriã. De repente, ela começou uma discussão intensa com a esposa de um dos pacientes. Raabe achou compreensível a raiva de sua cunhada, já que a esposa de um paciente chamado Benjamim, que sofria de uma doença terrível, reclamava de tudo e testava sua paciência angelical.
Zufe havia determinado que Benjamim ficaria sob os cuidados de Miriã, esperando que seu cuidado meticuloso pudesse melhorar o estado do homem. Raabe estava cuidando de um menino que dormia perto de Benjamim, quando sua esposa, que havia saído para descansar, voltou para a tenda e viu Miriã cuidando do marido.
O que você está fazendo?, gritou ela.
Com sua tranquilidade peculiar, Miriã respondeu: Sou Miriã, de Judá, e ajudo os doentes. Zufe pediu que eu cuidasse do seu marido.
A mulher mordeu os lábios. Aquele criado incompetente?
Como se eu fosse atender ao que ele diz.
Miriã se enrijeceu. Você gostaria que eu parasse de cuidar do seu marido?
Cuidar? Você chama isso que faz com as pessoas de cuidar? Eu já devia ter imaginado, você fez mais mal do que bem a ele. Tire suas mãos do meu marido.
Miriã fez um gesto com a boca e se levantou. Como quiser. Sua paciência, que já estava se esgotando, acabou completamente quando ela viu a mulher dar alimentos sólidos a Benjamim, que foram expressamente proibidos por Zufe.
Pare de dar isso a ele! Você vai fazê-lo piorar.
E quem você pensa que é para me dizer como devo alimentar meu marido?
Você não está lhe fazendo bem ao dar essa comida. Seu marido precisa de líquidos leves.
Você não vê como ele está magro? E ainda acha que eu devo deixá-lo faminto enquanto está emagrecendo tanto? Vá cuidar da sua vida, sua meretriz da Judeia. Eu sei o que é melhor para meu marido.
Miriã ficou bem próxima à mulher. Se ele morrer, será culpa sua. Nunca vi uma mulher tão grosseira, egoísta e ignorante em toda Israel.
Raabe se levantou certa de que, se ninguém interferisse, as coisas ficariam piores. Felizmente, Zufe percebeu o mesmo e chegou à mesma conclusão. Ele foi até as duas mulheres e, segurando Miriã pelo braço, a afastou. Ela não entende, filha. Esqueça, disse ele.
No caminho de volta à tenda, Miriã permaneceu em silêncio caminhando distraída e com uma expressão preocupada. Quando ela abriu a boca, as duas já estavam nas terras de Judá. Bem, pelo menos agora eu fiz você esquecer a ideia de que eu sou perfeita.
O que você disse que ela não merecia?, Raabe perguntou. A maioria das pessoas teria reagido muito antes.
Não estou dizendo que ela estava certa. O problema foi a minhareação. Elaestavaangustiada, Raabe, echeiadepreocupação com o marido. Eu poderia ter sido mais compreensiva.
Raabe franziu a testa. Miriã, eu estava lá e, acredite, você não estava errada.
Eu sei disso. Mas ela deve responder a Deus por seus erros, e não a mim. Eu deveria ter reagido com misericórdia. É por isso que Deus me concede um sacrifício sempre que faço más escolhas, não é? Então, Ele estende misericórdia a mim. Eu não deveria tratar os outros da mesma forma? Mesmo assim, estou lutando para perdoá-la, Raabe. Eu não quero isso. Estou assumindo as minhas dores, o que me ajuda a me concentrar nos erros dela, e não nos meus.
Raabe estava quieta. As palavras de Miriã despertaram uma velha agonia para ela. Raabe tinha os próprios conflitos contra o perdão e a misericórdia, lutas mais profundas do que a situação atual de Miriã. Ela nunca perdoou o pai. Não verdadeiramente. Ela o ajudara financeiramente e preservara sua vida durante a queda de Jericó, mas durante todos aqueles anos ela ainda guardava rancor, sem esquecer-se do mal que ele havia feito. Raabe tinha quinze anos na última vez em que o chamou de papai.
Sua cunhada estava lutando por dentro porque queria estender aos outros o perdão que recebia de Deus. Mesmo que ela ainda não conseguisse concretizar esse desejo em relação à esposa de Benjamim, pelo menos ela estava lutando para fazê-lo. Deveria Raabe fazer o mesmo pelo pai? Naquele momento, foi a vez de Raabe ficar em silêncio. Perdoar parecia demais.
Naquela noite, depois que elas acabaram de jantar, Raabe compartilhou alguns daqueles pensamentos com Miriã. O tipo de abertura vulnerável exigida para tal conversa representava um território novo para Raabe. A abertura e a vulnerabilidade em sua relação com Salmom tinham começado a influenciar também suas relações com as outras pessoas. Em vez de guardar seus segredos no peito por medo de ser rejeitada, ela os compartilhava com sinceridade. Sentindo-se segura no amor de Miriã, ela conseguiria ser honesta em relação a seus defeitos. Aquela vulnerabilidade era recompensada com uma experiência íntima de pertencimento. Ela se sentia verdadeiramente ligada a Miriã, e quanto mais compartilhava, menos sentia-se sozinha.
Miriã estava pensativa quando Raabe terminou de falar. Acho que você está certa em acreditar que precisa perdoá-lo, mas talvez isso não seja muito fácil. Alguma vez ele já pediu seu perdão?
Não.
Talvez ele nem se dê conta de que precisa disso. Possivelmente, ele arrumou sozinho uma desculpa para sua atitude. Isso significa que você deve aprender a perdoar um homem impenitente. Raabe, não é uma das coisas mais fáceis de se fazer, mas é a coisa certa.
Hum. Só em pensar nisso sinto indigestão.
Vamos pedir ajuda a Deus. Se Ele quiser isso, Ele dará força a você. Eu estou lutando muito para perdoar a esposa de Benjamim, então posso imaginar como isso deve ser difícil para você.
Depois de orar, Raabe saiu da tenda para lavar louça e viu um homem caminhando em direção à sua morada. A forma familiar, o jeito agradável de andar, as pernas compridas e os ombros largos a fizeram arfar. Salmom! Ela largou a louça fazendo barulho e correu em direção a ele. Salmom ficou extremamente feliz quando a segurou em seus braços ansiosos.
Que recepção para dois dias de ausência. Como seria se eu ficasse fora por duas semanas?
Não me faça descobrir, seu bobo.
Ele a beijou intensamente. Achei que eu estivesse sonhando, disse ele, mas eu não estava.
Raabe se agarrou a Salmom, que ainda não queria soltá-la. Venha falar com Miriã. Ela voltou para a tenda e ficará muito feliz em te ver.
Ele sorriu. Não consigo andar com você me segurando assim.
Raabe deu um tapinha no braço dele. Mas é claro que você consegue.
Você está certa, ele declarou e a pegou no colo, fazendo-a dar um grito de alegria. Miriã fez o mesmo de tanta alegria ao ver o corpo atlético do irmão voltando são e salvo de sua missão.
Depois de um jantar com peixe defumado e bolo de uvas, Salmom contou as novidades. Como eu suspeitava, os homens com os quais Israel firmou um tratado de paz vivem muito perto daqui. Eles vieram de Gibeom e de várias outras cidades interligadas.
Gibeom? Mas é a maior cidade!, disse Raabe em um sobressalto.
Uma das cidades mais ricas, e muito maior do que Ai. Salmom suspirou. Tenho mais notícias alarmantes. Descobri que Adoni-Zedeque, rei de Jerusalém, está tentando reunir os reis de Hebrom, Jarmute, Laquis e Eglom para formar um exército enorme.
O que você vai fazer?
Para começar, Josué enviou alguns líderes de volta aos gibeonitas a fim de entender o motivo por trás de sua farsa. De qualquer maneira, já que demos nossa palavra, não podemos lutar contra eles. Mas Josué tem um plano. Ele pretende usá-los como lenhadores e carregadores de água para Israel. A partir de agora, eles serão reduzidos a escravos. Esse é o castigo por eles nos terem enganado.
E quanto ao exército que Adoni-Zedeque está reunindo?, perguntou Miriã.
Salmom olhou para baixo. Grandes exércitos significam apenas uma coisa.
Ninguém disse uma palavra, mas os três sabiam. Guerra.
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Como previsto, os cinco reis amorreus elaboraram sua armadilha. Em vez de atacar Israel diretamente, eles atacaram Gibeom e outras províncias que firmaram o tratado de paz com Israel. Raabe soube, logo que ouviu a notícia, que seu marido iria para a guerra. Israel não ficaria de braços cruzados e permitiria que um aliado fosse destruído por seus vizinhos. As feridas de Salmom na batalha de Ai já haviam sido curadas há muito tempo e ele havia recuperado seu vigor. Nada o faria ficar em casa com ela.
Josué decidiu conduzir o exército tarde da noite, marchando a noite inteira de Gilgal a fim de pegar Adoni-Zedeque de surpresa. Naquela noite, enquanto Raabe não conseguia dormir em sua esteira solitária, sabendo que Salmom talvez estivesse marchando em direção à sua destruição, ela lutou contra um terror que nunca havia sentido. Seu coração não poderia suportar a possibilidade de perder seu marido, e ela sentia como se sua pele não a pudesse conter, como se ela quisesse sair do corpo e deixá-lo para trás, deixando também a intensidade da agitação que a dominava. Seu coração batia tão forte que ela achou que ele fosse sair pela boca. Raabe tentou, mas não havia motivo para tal pânico. Ele não lhe trazia conforto, mas sim uma fúria sem motivo.
De repente, em meio à sua experiência quase insuportável, ela ouviu um sussurro, uma pequena frase: Minha filha. Ela reconheceu aquela voz, aquela combinação de força imensa e amor incomum. Minha filha. O ataque de pânico teve um fim abrupto. Ela não estava sozinha. Pouco a pouco, ela se conscientizou da verdade. Israel não batalhava conforme as outras nações. O Senhor era seu Guerreiro, e Ele andava à frente de Seu povo. Ele abria as portas milagrosas para a vitória. Ela se lembrou de que Deus havia falado com Josué antes de ele partir para a longa jornada, dizendo que o exército de Adoni-Zedeque não seria capaz de resistir ao poder de Israel.
E o mais importante: ela se lembrou que Salmom pertencia muito mais a Deus do que a ela. O Senhor o protegeria, e também protegeria a ela. Seu destino, seu bem-estar e seu futuro não estavam nas mãos de Salmom; eles estavam nas mãos de Deus. Independentemente do que acontecesse a Salmom durante aquele conflito - e durante todos os outros que viriam - Raabe precisava confiar seu destino Àquele que já lhe havia concebido muitas coisas. Ela precisava se lembrar de que Salmom não era seu Senhor, mas sim seu marido.
Ela não conseguiu se livrar inteiramente da sensação de ansiedade ao pensar no homem que amava, mas o medo não a consumiu mais. No mais íntimo de seu ser, Deus havia ficado maior do que o medo.
Na manhã seguinte, Raabe foi visitar a família levando consigo alguns pedaços de bolo de figo que havia preparado no dia anterior. Seu pai adorava aquela receita. Ela o encontrou na tenda da família, mexendo em uma candeia que estava com problema. Uma lembrança surgiu em sua mente quando ela o viu levantar-se e esticar os braços para relaxar os músculos contraídos. Era a lembrança dele a segurando quando ela estava com três anos de idade, girando-a no ar e dizendo: minha filha. Eram as mesmas palavras que Deus havia falado em suas horas de pânico. Ocorreu a Raabe que o Senhor queria que ela entendesse algo. Deus havia preenchido a lacuna deixada por seu pai. Ele havia a amado e protegido quando seu pai não o fez, e Ele queria que ela se lembrasse que, independentemente de sua falha gravíssima, seu pai também a amava.
Naquele momento, a ideia de perdoá-lo e de abandonar a amargura de sua traição não se tornou apenas possível, mas também irreprimível. Ela teria outros dias para sentir novamente seu conflito interior, para lidar com ele novamente e para deixar o ressentimento para trás. No entanto, naquele momento, ela estava pronta para dar aquele passo com uma paz verdadeira. Raabe pensou em como transmitir aquela mudança extraordinária ao coração de seu pai. Se ela dissesse que o perdoava, ele poderia ficar ofendido em vez de confortado. Se, como sugeriu Miriã, ele tivesse justificado suas atitudes, o perdão de Raabe o faria apenas ficar na defensiva, pois soaria como uma acusação. Cada ato de perdão, em sua natureza, soava como transgressão. Seu pai se sentiria julgado em vez de aliviado com suas palavras. Mas, mesmo assim, Raabe não poderia deixar de dizer que qualquer impedimento que houvesse entre os dois havia sido destruído aquele dia.
Com passos leves, Raabe foi até ele e ofereceu o bolo. Para você, papai. Fazia onze anos que ele não a ouvia o chamar daquela maneira.
Ele arregalou os olhos e, por um momento incerto, levantou-se e olhou para ela. Seus olhos se encheram de lágrimas e ele ignorou o bolo. Você me chamou de quê?, ele perguntou com a voz trêmula.
Papai.
Ele estendeu a mão, também trêmula, até a cabeça de Raabe e fez um carinho. Minha filha, disse ele com a voz embargada. Em seguida, se virou e saiu. Raabe deixou o bolo em uma bandeja e enxugou as lágrimas enquanto esticava o corpo.
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Naquele dia, um acontecimento assombroso abalou a nação de Israel. O sol parou exatamente no meio do céu e permaneceu no mesmo lugar por muitas horas. Durante um dia inteiro. As pessoas ficaram maravilhadas, e saíam de suas tendas a todo tempo como se estivessem checando se não estariam sonhando ou tendo alucinações. Ninguém nunca tinha ouvido falar sobre nada como aquilo.
Por fim, quando todos já haviam perdido a noção do tempo, um mensageiro trouxe notícias sobre o exército. Josué orou para que o sol permanecesse parado por sobre Gibeom para que ele pudesse terminar a batalha e destruir o inimigo. Para a surpresa de todos, o sol lhe obedeceu, pois Deus havia honrado o pedido improvável de Josué. Raabe duvidou que o mundo visse algo igual novamente.
E, ainda assim, qual seria o maior milagre? Raabe se perguntava. Não haver pôr do sol durante um dia ou uma mulher perdoar o pecado mais grave que seu pai cometera contra ela?
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Salmom voltou da batalha exausto, mas ileso. Raabe sentiu muita alegria apenas por vê-lo. Orgulhosamente, ela mostrou a túnica que havia feito para ele, dando um fim às horas agonizantes de sua ausência. Ele a vestiu imediatamente e afirmou que aquela era a melhor túnica de Israel, fazendo Miriã rir e Raabe ruborizar. Ela e Miriã comemoraram a volta de Salmom com um banquete. Depois da vitória incomparável de Israel, todos estavam dispostos a celebrar com muitas festas. Depois que os convidados finalmente se foram, Raabe dançou para Salmom pela primeira vez.
Sua dança durou muito pouco tempo. Antes mesmo que tivesse a chance de mostrar a ele um de seus movimentos mais elaborados, ela se viu totalmente envolvida em seus braços.
Eu não terminei, brincou ela. Nem eu, afirmou ele.
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Depois, enquanto eles se aconchegavam confortavelmente nos braços um do outro, Raabe pensou em voz alta: Eu acho que Ezra é um bom homem. Você não acha, meu senhor?
As pálpebras de Salmom, já meio fechadas devido ao sono que se aproximava, se abriram de repente. O quê?
Eu estou falando do Ezra. É um homem admirável.
Temos mesmo que falar sobre as grandes qualidades de outro homem em nossa cama?
Miriã ficaria mais feliz em conversar sobre isso.
Salmom tirou o lençol do peito e se sentou. Miriã? O que Miriã tem a ver com isso?
Bom, eu acho que ela concorda com o fato de Ezra ter qualidades admiráveis.
Miriã é apenas uma criança, rebateu Salmom.
Raabe riu. Pode até ser, mas a maioria das mulheres da idade dela já estão tendo o primeiro filho.
Salmom franziu a testa. É, tudo bem, admito que ela cresceu um pouco nos últimos meses.
Raabe cobriu a boca com a mão e olhou para baixo. Salmom cruzou os braços. De qualquer maneira, o que isso tem a ver?
Ezra parece gostar bastante dela.
Você acha que eu não percebi que esse rapaz vive a seguindo com o olhar há mais ou menos um ano?
Não se trata de um rapaz, querido. Metade das mulheres de Judá gostariam de tê-lo como parte da família, e Miriã também gosta dele.
Ela disse isso? Talvez ela tenha dito.
Salmom agarrou um travesseiro e lançou um olhar penetrante para Raabe. Então, por que o rapaz... está bem, o homem... não toma uma providência? Por que a minha esposa tem que falar sobre isso na paz da minha cama?
Com a cara que você faz sempre que ele se aproxima de Miriã? Ezra não pode esperar uma recepção calorosa com seu olhar vigiando cada passo dele. E seu único pecado é amar sua irmã.
Salmom levantou as mãos. Fique tranquila, mulher. Faça como quiser, então. Ezra é um homem admirável e vou parar de fazer cara feia para ele. Algo mais?
Você é a representação da generosidade, meu senhor.
Salmom se inclinou e beijou sua esposa. Dou graças por você estar do lado de Israel, disse ele. Depois, ele a beijou novamente antes mesmo que ela pudesse responder.
Epílogo
O bebê gritava a plenos pulmões. Salmom o pegou no colo e tentou acalmá-lo. Acalme-se, meu filho, senão sua mãe vai
te chamar de guloso.
Ele é guloso, disse Raabe abrindo um dos olhos. Ele acabou de mamar. Ela levantou os braços e Salmom colocou o filho deles no colo dela.
Shhhh, querido. A mamãe está aqui e vai tomar conta de você.
O bebê começou a mamar fazendo barulho.
Salmom riu. Ele definitivamente não puxou a você. Como se tivesse percebido a deixa, a criança expeliu alguns gases fazendo um ruído estranho que fez seus pais sorrirem. Bem, talvez ele tenha puxado ao seu irmão.
Ah, isso não foi nada. Deixe-o em paz.
Não tenho problemas com isso. Mas talvez a futura esposa dele tenha algumas objeções.
Eu fico imaginando quem será ela. Refletiu Raabe.
Salmom se inclinou até ele e o beijou na bochecha. Filho, o que quer que você faça, espere pela mulher certa. Mesmo que você já esteja velho quando ela aparecer, não tenha pressa. Espere pacientemente.
Hummm. E trate sua esposa bem desde o primeiro momento em que olhá-la. Não faça como certas pessoas que prefiro não dizer o nome.
Eu não sei de quem sua mãe está falando.
Ah, Salmom, eu oro para que ele seja tão feliz quanto nós somos. Eu oro para que Deus o abençoe com uma boa esposa que lhe dê alegria - e um filho para dar continuidade à sua linhagem.
E à sua, sussurrou ele inclinando-se para beijá-la. Esticando-se novamente, Salmom foi até a aba aberta da tenda, por onde os raios de sol transpassavam. Eu fico imaginando as próximas pessoas de nossa linhagem, Raabe. Eu me pergunto que tipo de homem ou mulher nascerá por meio de nós, e que tipo de vida eles terão.
Eu me pergunto como Deus os usará. Sim, Ele usará a maior parte deles.
Bem, pequeno Boaz, já falamos muito na sua cabeça, né? O bebê arrotou e Salmom e Raabe começaram a rir.