Zeitgeist - pouco Espírito para esta época
Você sabe o que significa Zeitgeist? Zeitgeist é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época, espírito do tempo. Trata-se, em suma, do momentum intelectual e cultural do mundo, numa determinada época ou geração - as características genéricas de um determinado período de tempo.
Guarde bem a informação acima, porque ela será útil para compreender a reflexão bíblica que faremos abaixo. Um grande amigo, fazendo um trocadilho com esse termo escreveu que infelizmente tem muito pouco “Espírito nesta nossa época”. E de fato, veremos que esta é uma afirmação bem bíblica.
Exercite sua imaginação
E se...
Imagine uma cidade grande e próspera. Cosmopolita, porém com forte influência agrícola e rural. Seus 12 distritos distribuíam bem a população, de modo a evitar aglomerados urbanos - não há favelas. Mesmo os povoados e aldeias têm alguma prosperidade.
Esta cidade possui uma estrutura política estável, um governo central e uma hierarquia simples que inclui administradores locais. Os distritos também contam com conselhos de anciãos locais que cooperavam com a administração pública. Educação e bem-estar social não são retórica política - são realidades que tornam o índice de desenvolvimento humano (IDH) deste local um dos mais elevados do mundo.
A prosperidade desta grande cidade é reflexo de seu alto desenvolvimento social. Graças ao desenvolvimento matemático, grandes obras de engenharia foram realizadas. Os dois grandes rios que cortam a cidade tiveram parte de suas águas transpostas para irrigar as planícies onde se localizava seus distritos. Os canais de irrigação fizeram desta cidade uma campeã do agronegócio regional; e também serviam como hidrovia de escoamento da safra, além de meio de transporte por meio de pequenas embarcações.
Ademais, a cidade conta com um sólido sistema legal. Suas leis são abrangentes, de fácil assimilação e abordam questões difíceis como falso testemunho, roubo e receptação, estupro, família e moralidade e relações trabalhistas.
A pirâmide social desta cidade é composta basicamente de três classes sociais: os Awilum - basicamente fazendeiros e empresários; os Muskênum - representantes da classe média, funcionários públicos, arrendatários e empreiteiros e, finalmente, os Wardum - trabalhadores dependentes de seus empregadores em busca de sua independência financeira. A movimentação na pirâmide depende de trabalho duro e do bom aproveitamento das oportunidades.
Os cidadãos são tratados com certa igualdade de oportunidade. Mesmo os estrangeiros residentes na cidade conseguem vagas nas escolas e universidades e podiam ascender na pirâmide social. As crenças éticas e morais desta arrimam-se na bondade e na verdade, na lei e na ordem, na justiça e na liberdade, na sabedoria e na aprendizagem, no valor e na lealdade. Atos imorais ou pouco éticos são considerados como uma ofensa divina.
E se...
Você recebesse um convite - uma grande oportunidade - para fazer uma viagem para esta cidade a estudos, lazer, ou mesmo residir por um tempo lá?
E se...
Você descobrisse que essa cidade existiu no passado e realmente possuía um grau de desenvolvimento desse porte?
E se...
Você soubesse que essa cidade foi dominada pelo império Persa - que assimilou praticamente toda sua tecnologia social, sendo sucedido pelo império Grego que o incorporou e aprimorou sendo, finalmente conquistado pelo império Romano que absorveu a civilização grega e, consigo, toda a cosmovisão das civilizações precedentes?
Você se surpreenderia ao saber que a civilização europeia e ocidental foi influenciada e, de certa forma pode ser considerada uma “parente próxima” desta cidade?
E se...
O homem considerado com o “pai da fé” - Abraão - fosse natural dessa região geográfica? Este exercício imaginativo fala de uma cidade que fica na região da Caldéia, onde estava localizada “Ur dos Caldeus” - cidade apontada pela Bíblia como berço de Abraão1.
Relembrando a narrativa bíblica
Abraão ouviu um chamado de Deus para sair da região da Caldéia e seguir a voz de Deus partindo para uma nova terra. Abraão confiou na voz de Deus e partiu rumo a esta nova terra que ele não conhecia. Depois de esperar pacientemente, alcançou a promessa2- não pessoalmente, mas através dos seus descendentes.
Abraão viveu pela fé e morreu sem receber o que tinha sido prometido3. Séculos depois, porém, seus descendentes se tornaram numerosos e, finalmente ocuparam a tal terra-prometida-bem-longe-da-Caldéia.
Enquanto rumavam para lá, os descendentes de Abraão receberam leis. Esta leis permitiam o desenvolvimento de cidades - numa sociedade justa; regulamentavam o desenvolvimento comercial e econômico, privilegiava a arquitetura e a indústria. Os estrangeiros residentes deveriam ser tratados com justiça. A ética e a moral dos descendentes de Abraão arrimava-se na bondade e na verdade, na lei e na ordem, na justiça e na liberdade, na sabedoria e na aprendizagem, no valor e na lealdade.
Os descendentes de Abraão construíram cidades. Nada errado nisso. As vezes começavam bem. Frequentemente erravam, mas eram conduzidos ao arrependimento, acertavam suas vidas com Deus e prosseguiam.
Exteriormente as cidades dos filhos de Abraão tem poucas diferenças da cidade de Ur dos Caldeus. No entanto, a Bíblia trata a região de Ur dos Caldeus como uma região completamente distinta e opositora à cidade de Abraão.
O chamado de Abraão envolve um aparente retrocesso - um retorno para a vida nômade. Ur dos Caldeus, sociologicamente, representa o estágio mais avançado dos seres humanos. Deus pede que Abraão se “despoje” do desenvolvimento caldeu e mude seu “paradigma de vida”; mesmo que para isso, seja necessário voltar ao estilo de vida de peregrinação. Para esta quebra de paradigma, Abraão deveria lançar mão de algo sociologicamente inusitado: a FÉ. O paradigma de vida de Abraão se torna precursor - mais precisamente - pai de todos os que crêem4 em Deus e caminham de acordo com Sua orientação.
Os séculos foram passando, e Ur dos Caldeus deu a luz à sua filha mais famosa: Babilônia. Babilônia é a cidade descrita inicialmente na introdução deste texto. Uma cidade-estado com 12 cidades-satélites, além de povoados e vilas, todas bem estruturadas e administradas com eficiência.
Os vizinhos de Babilônia rapidamente se encantaram com seu desenvolvimento e sua beleza. No mundo globalizado da época, Babilônia exportava cultura e costumes - seu way-of-life.
Os hebreus também começaram a reproduzir o estilo de vida babilônico. Afinal, eles não eram mais aquele povo peregrino e ‘atrasado’. Um grande rei - Davi - havia estabelecido fronteiras bem armadas e uma capital alta e segura (Jerusalém). Seu filho - Salomão - patrocinou o desenvolvimento cultural sendo, ele mesmo um poderoso rei-filósofo. Estava na hora dos hebreus se modernizarem.
A cidade-fundada-pelo-pai-da-fé decidiu que era melhor ser como a cidade-dos-homens-que-não-precisa-de-Deus.
A resposta de Deus? Jeremias: “Durante vinte e três anos a palavra do Senhor tem vindo a mim [...]. E eu a tenho anunciado a vocês, dia após dia, mas vocês não me deram ouvidos (25:3).” “Toda esta terra se tornará uma ruína desolada, e essas nações estarão sujeitas ao rei da Babilônia durante setenta anos (25:11).”
O exército babilônico conquistou Jerusalém com muita violência. Instigados pelos Edomitas (vizinhos e inimigos de Israel), Nabucodonosor permitiu a morte de crianças, mulheres e idosos - mesmo sabendo que seu exército era muito superior e iria facilmente vencer a guerra. Os que restaram foram levados cativos para a cidade de Babilônia. Para Nabucodonozor, apenas uma ampliação de sua “área de influência”. Para os hebreus, o fim de sua nação.
Passado o furor da guerra, os cativos seguiram rumos diversos. Uns se tornaram escravos e serviram os babilônios. Outros, como Daniel e seus companheiros, conseguiram uma posição relativamente segura naquela terra - se tornaram “funcionários públicos”, administradores, mordomos, etc. Muitos nasceram em Babilônia mas preservaram sua identidade hebraica. Outros foram completamente engolidos pela cultura e se esqueceram completamente de sua herança abraâmica.
Passados os setenta anos previstos pelos profetas, Deus - como fez a Abraão - chama da Caldéia seus descendentes5. Era hora de retornar. Alguns ouviram o chamado para retornar e creram que aquele chamado era o cumprimento da promessa de Deus. Precisariam reconstruir tudo, é claro. Não havia mais segurança humana. Era preciso depender de Deus. A voz do paradigma de Abraão novamente se fez ouvir. Eles creram. E eles foram.
Um salmo para lembrar
Este é o contexto que nos coloca diante do Salmo 137. Aqueles creram no chamado de Deus e retornaram da Babilônia recontam sua história através de uma oração-poema:
1 Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião.
2 Ali, nos salgueiros penduramos as nossas harpas;
3 ali os nossos captores pediam-nos canções, os nossos opressores exigiam canções alegres, dizendo: "Cantem para nós uma das canções de Sião!"
4 Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?
Os hebreus eram reconhecidos na Babilônia por sua reconhecida reputação quanto a qualidade das músicas. Os babilônios pediam: ‘ei, por que vocês não fazem um show de música hebraica para nós? Faríamos um grande festival cultural. Quem sabe podemos até transmitir na BabelTV para celebrar a diversidade cultural da Babilônia?’
Mas aqueles hebreus entendiam que suas canções, eram canções alegres, canções de Sião, canções do Senhor. Eles se recusaram a transformar as canções-do-Senhor em canções-de-entretenimento. O silêncio era sua única dignidade. Cantar naquele contexto, seria um sacrilégio. Sua resposta foi um ressonante silêncio.
Do ponto de vista humano a Babilônia não era um lugar ruim. Espiritualmente, contudo, Babilônia representa a ameaça da secularização - a tentação de se conformar ao jeito-que-as-coisas-são, ao mundo que celebra cada conquista humana como um passo a mais para longe eliminar a necessidade de Deus.
No Novo Testamento a hostilidade entre Jerusalém e Babilônia é símbolo do abismo da raça humana, entre aqueles que são do Senhor e os que não são. Nos capítulos 17-21 do livro de Apocalipse, Babilônia é personificada como uma prostituta - ou pior - uma grande prostituta: arauto da sedução, conforto, prazer, paz e segurança. Seu destino, porém, é a queda - “Caiu! Caiu a grande Babilônia!” (18:2). A cidade cananéia da Babilônia já havia desaparecido quando João escreveu o Apocalipse. Seu zeitgeist permanece até os dias atuais.
Os exilados perceberam isto e se recusaram a transformar o louvor a Deus em entretenimento. Fizeram uma promessa a Deus:
5 Que a minha mão direita definhe, ó Jerusalém, se eu me esquecer de ti!
6 Que a língua se me grude ao céu da boca, se eu não me lembrar de ti, e não considerar Jerusalém a minha maior alegria!
A mão era usada para tocar as harpas (v.1) e a língua para cantar os cânticos de Sião. Essas declarações destes hebreus-vivendo-na-Babilônia podem ser consideradas um juramento de lealdade a Deus. Uma profissão de fé dos que atenderam ao chamado para o arrependimento.
Muita coisa precisava ser reconstruída6. Mas aqueles que retornaram reconheciam que precisavam lidar com algo sinistro: seu próprio ódio. Estes hebreus não sabiam o que fazer com o ódio que sentiam pelos babilônios e pelos edomitas que setenta anos atrás destruíram e instigaram a violência contra sua nação.
7 Lembra-te, Senhor, dos edomitas e do que fizeram quando Jerusalém foi destruída, pois gritavam: "Arrasem-na! Arrasem-na até aos alicerces!"
8 Ó cidade de Babilônia, destinada à destruição, feliz aquele que lhe retribuir o mal que você nos fez!
9 Feliz aquele que pegar os seus filhos e os despedaçar contra a rocha!
O que fazer com o ódio? Quando não sabemos o que fazer com alguma situação sinistra demais, incompatível demais com nossa profissão de fé, nossa única saída é orar. Nosso ódio precisa ser orado, não suprimido. Envergonhados pela feiura e horror desse sentimento, nós, em geral, sequer admitimos que odiamos; nós o negamos ou o escondemos. Orar nosso ódio significa admiti-lo diante de Deus, e quando fazemos isto, avançamos na luta contra o mal.
A linguagem usada por estes hebreus admite um profundo ódio, porém estabelece Deus como juiz da questão. Quando eles oram: “Lembra-te, Senhor”, estabelece-se aqui uma linguagem jurídica, invocando a terminologia da lei mosaica (p.ex. Dt 19:15-21). A comunidade que orava o Salmo 137 resolveu o ‘problema do ódio’ designando Deus como juiz da questão - uma forma de viver em paz num mundo hostil à Vontade de Deus.
Reflexões
Não se esqueça que o Zeitgeist de Babilônia está muito vivo. E nós, por sermos um povo que vive pela fé, somos descendentes espirituais de Abraão, sendo por isso, chamados por Deus a viver nesta Babilônia, porém não sendo devorado por ela.
É muito tênue a linha que nos separa deste estilo de vida e é necessário estar alerta. No entanto, eu não pretendo encerrar este artigo com um alerta vago.
Do ponto de vista prático, o que podemos fazer para vencer o zeitgeist babilônico? Ouvir a voz de Deus - desenvolver uma vida de relacionamento com a Revelação de Deus7. Além disso, é preciso reconhecer nossos pecados e nos dispor a confessá-los, sabendo que o sangue de Jesus é suficiente para nos perdoar, e a instrução de Deus é suficiente para nos transformar.
Jeremias nos mostra o desfecho que Deus planeja para aqueles que confiarem em Deus: 10"Assim diz o Senhor: 'Quando se completarem os setenta anos da Babilônia, eu cumprirei a minha promessa em favor de vocês, de trazê-los de volta para este lugar. 11 Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês', diz o Senhor, 'planos de fazê-los prosperar e não de lhes causar dano, planos de dar-lhes esperança e um futuro. 12 Então vocês clamarão a mim, virão orar a mim, e eu os ouvirei. 13 Vocês me procurarão e me acharão quando me procurarem de todo o coração. 14 Eu me deixarei ser encontrado por vocês', declara o Senhor, 'e os trarei de volta do cativeiro. (cap. 29)
Ele vem. Ele virá. Maranata.
1 Gênesis 11:31 Terá tomou seu filho Abrão, seu neto Ló, filho de Harã, e sua nora Sarai, mulher de seu filho Abrão, e juntos partiram de Ur dos caldeus para Canaã. Mas, ao chegarem a Harã, estabeleceram-se ali. Gênesis 12:1-2 Então o Senhor disse a Abrão: "Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. "Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção.
2 Hb 6:15
3 Hb 11:13
4 Rm 4:11
5 [
6 A história bíblica prossegue nos livros de Esdras, Neemias, Ageu, Zacarias e Malaquias
7 Através da Bíblia e da oração